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Falar
de Teresa Monteiro sem citar Clarice Lispector é quase impossível.
Teresa é uma fonte inesgotável de informações sobre a escritora
que ano após ano influencia gerações no mundo. Sim, todos sabemos
que a obra de Clarice Lispector rompeu fronteiras e provoca abalos
sísmicos na vida de leitores brasileiros e estrangeiros.
Meu
primeiro contato com Teresa aconteceu no verão de 2005. Naquele mês
de dezembro eu reencontrava o Rio de Janeiro, após um hiato de
exatos 20 anos. Em um quiosque na Praia do Leme conversamos pela
primeira vez. Começava ali a jornada para a produção de um
documentário sobre Clarice, tendo como referência as crônicas
publicadas no livro A Descoberta
do Mundo. Indicada por Paulo Gurgel Valente, filho da
escritora, Teresa vinha somar, atuando como consultora na produção,
garantindo a veracidade de datas e informações biográficas. Depois
de inúmeras conversas telefônicas, emails, xícaras de café e
correções, ela foi finalmente convidada por mim para dividir a
criação do roteiro. De lá pra cá são 14 anos de parceria
traduzidos em incontáveis fotografias, passeios pontuais no Rio
de Clarice, nas ruas do Recife e nas ladeiras de Olinda.
Feliz
com a notícia do relançamento do seu livro pela Editora Rocco, Eu
sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector, Teresa
planejou
e estruturou um capítulo dedicado a passagem da escritora na capital
pernambucana. Pensando nisso, no último mês de julho, ficou cerca
de 15 dias hospedada no Hotel Central, localizado próximo ao casarão
que Clarice morou na infância. Bem pertinho da Praça Maciel
Pinheiro, da Rua da Imperatriz e da Avenida Conde da Boa Vista.
Durante esse período visitou os arquivos dos principais jornais do
Estado, conversou com parentes da escritora, entrevistou os
escritores Raimundo Carrero e Augusto Ferraz e visitou o ateliê do
escultor Demétrio Albuquerque. Aproveitou cada segundo dessa
geografia afetiva, sempre pontuando dados, desenhando narrativas para
mergulhar mais e mais sobre trajetória de Clarice na cidade
dos mascates.
Com Demétrio Albuquerque em Olinda - Foto: Taciana Oliveira |
Eu
sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector teve
sua primeira edição em 1999. Na época o nome original de Clarice,
Haia Lispector,
seria revelado a partir de uma pesquisa de Teresa no Arquivo
Nacional, no Rio
de Janeiro, assim
como a carta que Clarice escreveu ao presidente Getúlio Vargas
solicitando sua naturalização. Todo esse material era até então
inédito. Sua biografia, que inspirou a publicação de outras
biografias, há tempos era merecedora de uma reedição. E agora por
ocasião do Centenário de nascimento da escritora, Teresa Montero
amplia esse leque e traz ao público uma edição revista
minuciosamente.
Leonina,
carioca, múltipla, de um sorriso pleno, daqueles que te chamam para
o abraço, Teresa é dona de uma sinceridade espontânea e corajosa.
Seu ofício é praticado com uma devoção quase que religiosa. Nos
últimos anos aprendi um tanto de coisas acompanhando sempre que
possível sua rotina de trabalho. Sou profundamente agradecida pela
oportunidade desse encontro.
E
para celebrarmos na data de hoje o aniversário de Clarice Lispector,
publicamos uma entrevista com a mais pernambucana de todas cariocas:
Teresa Montero
Teresa Montero - Foto: Daniel Ramalho/Divulgação |
por Mirada
Já
existe uma data para o relançamento do livro Eu sou uma
pergunta: uma biografia de Clarice Lispector?
A
Editora Rocco publicará no segundo semestre de 2020. Há 20
anos ela foi lançada e encontra-se esgotada a bastante tempo.
Poderia
adiantar algumas novidades da nova edição da biografia?
São
muitas. Será um novo livro. Por exemplo, trechos de depoimentos de
amigos e parentes que não foram publicados na primeira edição por
conta das minhas escolhas. Publicar uma biografia é fazer escolhas,
também. Especialmente um material tão amplo como os depoimentos que
na primeira edição foram 88; e agora o número já se expandiu.
Isso vale também para documentos como correspondências e outros. A
viagem dela ao Recife em 1976 também é um momento bastante
importante que será mostrado.
Na pesquisa para o filme A Descoberta do Mundo, a diretora pernambucana Taciana Oliveira descobriu essa história, aliás mostrada de forma tocante no filme. Na biografia ela tem mais espaço para se expandir. Acredito que Eu sou uma pergunta: Uma biografia de Clarice Lispector trará novas leituras sobre esse itinerário literário. Clarice dialogou com a sua época, a ultrapassou muitas vezes e manteve uma troca fértil com o meio artístico (além do literário) brasileiro. Uma das perguntas que a biografia suscitará é o que significa celebrar o Centenário de uma mulher que se tornou uma escritora.
Na pesquisa para o filme A Descoberta do Mundo, a diretora pernambucana Taciana Oliveira descobriu essa história, aliás mostrada de forma tocante no filme. Na biografia ela tem mais espaço para se expandir. Acredito que Eu sou uma pergunta: Uma biografia de Clarice Lispector trará novas leituras sobre esse itinerário literário. Clarice dialogou com a sua época, a ultrapassou muitas vezes e manteve uma troca fértil com o meio artístico (além do literário) brasileiro. Uma das perguntas que a biografia suscitará é o que significa celebrar o Centenário de uma mulher que se tornou uma escritora.
Entrevistando Raimundo Carrero - Foto: Taciana Oliveira |
São
trinta anos mergulhada no universo de Clarice Lispector. É uma
emoção e uma responsabilidade trazer uma nova edição. Muitos tem
se dedicado a pesquisar sua vida e obra em todos os continentes. A
trajetória biográfica também promove essa união de tantas
pesquisadoras, as mulheres são maioria, e os pesquisadores: nós,
brasileiras, com as latino-americanas, as francesas, as
norte-americanas, as espanholas e por aí vai.
Quantos
anos de passeio do O Rio de Clarice? E como ele foi fundamental para
a construção da obra de mesmo nome?
São
onze anos. O livro O Rio de Clarice-passeio afetivo pela cidade
(Autêntica, 2018) foi feito como resultado da prática do
dia a dia. Desde o início imaginei que o passeio deveria virar
livro, pois é uma forma do cidadão, do leitor, se aproximar dos
caminhos clariceanos e do Rio de Janeiro. Quantos gostariam de
fazê-lo mas não poderão vir ao Rio, ou moram no exterior?. E olhe
que há casos de leitores que se deslocaram de outros países e
estados para percorrerem os caminhos. E há os que curtem a leitura
pelo prazer de mergulhar no roteiro de uma escritora que atravessou
quatro décadas na cidade. É muito rico esse olhar.
O Rio de Clarice é um ato político, ele não se esgota em enaltecer a trajetória de uma mulher escritora que fez tanto pelo Brasil, o passeio coloca o leitor diante da cidade. É uma travessia pelos bairros, vendo, ouvindo, sentindo o dia a dia de várias partes do Rio. Eu mesma me sinto assim a partir do momento em que criei o passeio. Acredito que O Rio de Clarice abarca várias instâncias, não estamos falando simplesmente de “adorar a Clarice Lispector", estamos exercitando a nossa cidadania à medida que conhecemos uma cidade sob diversos ângulos. Acompanhados por Clarice Lispector o passeio se torna sempre revelador e transformador. Não importa se tiver somente uma pessoa ou trinta. Já fiz um passeio para uma pessoa com chuva no Jardim Botânico. Imagina o resultado disso em nós.
O Rio de Clarice é um ato político, ele não se esgota em enaltecer a trajetória de uma mulher escritora que fez tanto pelo Brasil, o passeio coloca o leitor diante da cidade. É uma travessia pelos bairros, vendo, ouvindo, sentindo o dia a dia de várias partes do Rio. Eu mesma me sinto assim a partir do momento em que criei o passeio. Acredito que O Rio de Clarice abarca várias instâncias, não estamos falando simplesmente de “adorar a Clarice Lispector", estamos exercitando a nossa cidadania à medida que conhecemos uma cidade sob diversos ângulos. Acompanhados por Clarice Lispector o passeio se torna sempre revelador e transformador. Não importa se tiver somente uma pessoa ou trinta. Já fiz um passeio para uma pessoa com chuva no Jardim Botânico. Imagina o resultado disso em nós.
Com Cristina Pereira no Espaço Clarice Lispector |
Cite
um texto de Clarice que traduza o nosso momento atual
A
crônica Eu tomo conta do mundo publicada no Jornal do Brasil
em 4 março de 1970. Há um momento em que ela diz: Hão de me
perguntar por que tomo conta do mundo: é que nasci assim, incumbida.
Será
essa a missão do escritor?
Agradeço
ao Mirada a oportunidade. Desejo vida longa e muita
inspiração clariceana para que o Mirada leve a nossa
literatura como uma ponte para andarmos por caminhos democráticos e
solidários
Clarice Lispector |
*Ah!
Em breve novidades sobre o filme A Descoberta do Mundo. Aguardem!
Teresa
Montero
é
professora, atriz e biógrafa. Doutora em Letras pela PUC-Rio, com a
tese Yes,
nós temos Clarice: a divulgação da obra de Clarice Lispector nos
Estados Unidos,
professora dos cursos de licenciatura em Letras e Teatro da
Universidade Estácio de Sá, dedica-se a divulgar o legado de
Clarice
Lispector
há 28 anos. É idealizadora e guia dos passeios O
Rio de Clarice e O Rio de Carmen Miranda que
integram o projeto Caminhos
da Arte no Rio de Janeiro,
criado em 2008. Organizou diversas obras de Clarice
Lispector
e, no campo da biografia da escritora, seu Eu
sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector
(Rocco, 1999) tornou-se um trabalho pioneiro ao reunir uma pesquisa
inédita com 88 depoimentos. Foi também co-roteirista do
documentário A
Descoberta do Mundo
(2015), dirigido por Taciana
Oliveira
____
Taciana
Oliveira é
mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada
por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona
memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem
quiser ouvir: Ter
bondade é ter coragem.
por
Taciana Oliveira__
Divulgação por Fredy
Antoniazzi__
A Coleção BH. A cidade de cada um comemora 15 anos, recontando a história da capital com o livro Arraial do Curral del Rei
A
poeira das obras que ergueram a nova capital de Minas Gerais no
século XIX ainda encobre a história sofrida do povoado que lhe deu
origem. Este é o tema de “Arraial do Curral del Rei”, da
escritora Adriane Garcia, 34° título da coleção sobre Belo
Horizonte criada em 2004, pela Conceito Editorial. Escrito em
versos, uma inovação entre as narrativas da série, o livro de
intensa força poética é, segundo a autora
“uma espécie de romanceiro, que dá voz aos habitantes que a
história não registrou, apenas expulsou”. O evento será
no dia 9 de novembro, a partir das 10h30 da manhã, nos jardins
internos do Palácio das Artes.
Na
ocasião, os editores José Eduardo Gonçalves e Silvia Rubião vão
reunir autores, personalidades e leitores que ajudaram a dar vida à
coleção ao longo desses 15 anos de sucesso. A escolha do local é
também bastante representativa. Além de ser o grande templo da
Cultura mineira, o Palácio das Artes é integrado ao Parque
Municipal, patrimônio ambiental criado no projeto original da
cidade, que já foi tema da série. No mesmo evento, serão lançadas
também as novas edições dos livros Cine
Pathé e Pampulha, revistas
pelos autores Celina
Albano
e Flávio
Carsalade,
respectivamente.
Flávio Carsalade e Celina Albano |
Desde
setembro de 2004, a coleção
BH. A cidade de cada um
vem construindo a memória afetiva da cidade por meio de textos
literários escritos por pessoas de diversas gerações, escolhidas
por sua grande identificação com os temas trabalhados. Tendo como
ponto de partida suas vivências pessoais, eles falam sobre bairros,
lugares, fatos e personagens diversos, sem o compromisso de se
prenderem à historia oficial, gerando grande empatia entre os
moradores e admiradores da capital mineira. O
livro Arraial do Curral
del Rei tem o patrocínio
do Hospital Mater Dei, por meio da Lei Municipal de Incentivo
à Cultura, e conta com o apoio cultural da Rede Globo Minas.
Fazem
parte da coleção os seguintes 33 títulos: Lagoinha,
de Wander
Piroli,
Mercado
Central,
de Fernando
Brant,
Estádio
Independência,
de Jairo
Anatólio Lima,
Rua
da Bahia,
de José
Bento Teixeira de Salles,
Fafich,
de Clara
Arreguy,
Parque
Municipal,
de Ronaldo
Guimarães,
Praça
Sete,
de
Angelo Oswaldo de Araújo Santos,
Livraria
Amadeu,
de João
Antonio de Paula,
Sagrada
Família,
de Manoel
Lobato,
Pampulha,
de Flávio
Carsalade;
Cine
Pathé,
de Celina
Albano;
Caiçara,
de
Jorge
Fernando dos Santos;
Carmo,
de
Alberto
Villas e
Lourdes,
de
Lucia
Helena Monteiro Machado;
Colégio
Sacré Coeur de Marie,
de
Marilene Guzella Martins Lemos;
Carlos
Prates,
de Humberto
Pereira;
Morro
do Papagaio,
de Márcia
Cruz;
Maletta,
de Paulinho
Assunção,
Montanhez,
de Márcio
Rubens Prado;
Santa
Tereza,
de Libério
Neves;
Serra,
de
Nereide
Beirão;
Padre
Eustáquio,
de Jeferson
de Andrade;
Centro,
de Antonio
Barreto;
Mineirão,
de Tião
Martins;
Colégio
Estadual,
de
Renato Moraes;
Santo
Antônio,
de
Eliane Marta Teixeira Lopes;
Viaduto
Santa
Tereza, de João
Perdigão;
Funcionários, de Maria
do Carmo Brandão,
Colégio Municipal, de José
Alberto Barreto,
Renascença, de Ana
Elisa Ribeiro;
Anchieta, de José
Márcio Vianna
e Campus da UFMG, de
Heloísa Murgel Starling.
Para saber mais: www.bhdecadaum.com.br
A
autora
Fotografia: Ricardo Laf |
Adriane
Garcia
nasceu
em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação
em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a
desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da
primeira cidade planejada da República, com destaque para as
questões de esquecimento e memória.Tendo vivido sempre na periferia
(norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a
exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros
Fábulas para adulto perder o sono (vencedor
do Prêmio Paraná de Literatura, 2013,
ed.
Biblioteca do Paraná),
O
nome do mundo
(ed.
Armazém da Cultura,
2014), Só, com peixes (ed.
Confraria do Vento, 2015),
Garrafas ao mar (ed.
Penalux, 2018).
Um
poema
IX
É
por milagre que as serras minam
Seus
pés molhados começam riachos
Da
pedra chorosa – fixa mudez
A
esperança de voz das águas
O
mundo começa no Acaba Mundo
Minha
Mesopotâmia sem história
Sem
Tigre, sem Eufrates, cerâmica
Eternamente
argila das encostas
As
suas primeiras casas, rústicas cafuas
Desenho
de criança, sapê e pindoba
A
lamparina acesa – quem esses seus mortos?
Nada
sei do bem e do mal que lhes habitou
Sei
que o fio escorre – o vale
Sei
da capela para gente de passagem
Sei
que se desejava boa viagem
Aos
que partiam e não voltavam mais.
*Poema incluído em Arraial do Curral del Rei, de Adriane Garcia
Serviço
Evento
pelos 15 anos da Coleção BH. A cidade de cada um e lançamento
do título Arraial do
Curral del Rei, de
Adriane Garcia
Local:
Jardins internos do Palácio das Artes, av. Afonso Pena, 1537 –
Parque Municipal
Data:
Sábado, 9 de novembro de 2019
Horário:
de 10h30 as 13h30
Preço:
R$25,00 Entrada franca
#poesiabrasileira
#memoria
por Taciana Oliveira__
Poeta, artista visual, produtor cultural e editor literário. Baga Defente é múltiplo e incansável. Há tempos que a gente queria publicar essa entrevista. Há tempos que ela precisava acontecer. Equilibramos nossas agendas e o resultado de nossas conversas compartilhamos agora.
por
Taciana Oliveira__
Um bate-papo virtual com a escritora calí boreaz, a nossa entrevistada do mês na coluna Desassossego.
_______________________________
calí boreaz - Foto: Henrique Chendes/ SESC MG |
como
diria Hamlet, ou a minha avó, tudo acontece exatamente como tem de
acontecer.
nasci
num outono português, num hospital da marinha nos arredores de
Lisboa, pois meu avô foi marinheiro. minhas origens remontam todas
ora ao Ribatejo — a lezíria — ora, mais a norte ainda, à Beira
Baixa — a serra. cresci a olhar para o rio Tejo, primeiro ali pelos
arredores de Lisboa, depois em Santarém, para onde nos mudamos
quando eu tinha uns 13 anos. com 17, retornei sozinha à capital para
fazer faculdade de Direito. depois, quando já não aguentava mais o
tédio da faculdade e só pensava em escrever poesia, pensei em mudar
qualquer coisinha para ver se a adrenalina aumentava... e então
aventurei-me a leste, em Bucareste, na Romênia, na língua romena, a
qual desconhecia completamente. achei isso perfeito: um ponto zero.
lá, além de completar o último ano de Direito num intercâmbio
universitário, estudei língua e literatura romenas e tradução
literária, tornei-me tradutora de romeno. voltei a Portugal e, em
meio a muitas idas e vindas entre Lisboa e Bucareste, especializei-me
em Direito da Imigração e passei a trabalhar, em Lisboa, num
instituto governamental de suporte jurídico ao imigrante, para além
de realizar traduções e interpretações simultâneas para a
embaixada da Romênia, polícia e tribunais. traduzi um romance
também, do escritor romeno exilado nos EUA, Norman Manea. logo
depois, talvez por sentir que a vida estava outra vez a ficar muito
encaixada, pensei novamente em desarrumar tudo: assim, atravessei o
Atlântico rumo ao sul, e pelo Rio de Janeiro fiquei até hoje — já
são quase 10 anos. tornei-me brasileira também, inclusive na voz.
ou seja, ganhei uma espécie de bilinguismo. traduzi outro romance do
romeno, já para português do Brasil. estudei teatro, escrevi e
realizei peças, ganhei um prêmio de melhor atriz, fui indicada a
outros, enfim, passei a dedicar-me completamente a esse ofício, que
eu, na verdade, queria desde muito pequena e que andara a adiar... ou
não. como diria Hamlet, ou a minha avó, tudo acontece exatamente
como tem de acontecer.
por
Fernando de Souza__
APRENDENDO A VIVER COM A SOLIDÃO DO MORRER
APRENDENDO A VIVER COM A SOLIDÃO DO MORRER
morte,
não sejas orgulhosa
apesar
de alguns te chamarem terrível e poderosa
tal
não serás
aqueles
que pensas teres deixado para trás
não
morrem, pobre morte,
nem
a mim podes levar
após
um breve sono, acordamos eternamente
e
a morte deixará de existir,
morte,
tu também morrerás
(John
Donne)
Emma Thompson |
por Fernando de Souza__
..Não
dá pé, não é direito
Não
foi nada, eu não fiz nada disso e você fez um
Bicho
de sete cabeças
Não
dá pé, não tem pé nem cabeça
Não
tem ninguém que mereça, não tem coração que esqueça...
(Zé
Ramalho)
A
expressão popular “bicho de sete cabeças”, assim como “fazer
muito barulho por nada”, refere-se à (infindável) capacidade
humana de projetar seus medos, ansiedades e angústias em situações
aparentemente sem grandes repercussões factuais. Este “bicho”
nos lembra a Hidra de Lerna, monstro da mitologia grega, também com
várias cabeças, e que tinha a capacidade de regenerá-las toda vez
que uma era cortada, crescendo outras em seu lugar. Via de regra, o
grande problema dos “bichos de sete cabeças” é justamente este:
assim como a Hidra, eles tendem a tomar proporções maiores do que
as reais, especialmente quando mal ou não resolvidos...
Neto, personagem interpretado por Rodrigo Santoro, vive com seus pais e sua irmã mais velha, e frequenta o Ensino
Médio. É um adolescente comum, com as dificuldades de
relacionamento com os pais, dúvidas e conflitos, como outros de sua
fase. Usa maconha esporadicamente com seus colegas, por lazer (ou
falta dele!), embora mantenha conservados os vínculos familiares,
sociais, escolares, etc. Certo dia, Neto e seus amigos, num ato de
rebeldia, vandalizam e picham um prédio, somente ele é preso pela
polícia e solto mediante a presença de seus pais: ele, autoritário;
ela, passiva. A partir deste evento e da posterior descoberta, por
seu pai, de um cigarro de maconha no bolso de sua roupa, a vida de
Neto vira de cabeça para baixo, com sua internação compulsória
num hospital psiquiátrico, autorizado por sua família, para um
pretenso tratamento para dependência química - apesar de nenhum
exame laboratorial, avaliação psiquiátrica ou psicológica ou
sequer entrevista ser realizada durante sua internação – baseado
exclusivamente na administração de medicamentos e exposto à
realidade de pacientes dos mais variados problemas de saúde mental e
de graus de gravidade clínica. Após um período de
ressocialização malograda, acontece uma segunda internação noutra
instituição, com efeitos terapêuticos e sequelas psicológicas
igualmente desastrosas. A nova internação nem surte os “resultados
esperados” (por quem?) como, ainda por cima, desestabiliza ainda
mais a saúde mental de Neto, novamente entregue a um tratamento
desumano, irresponsável e ineficaz. O que não era, até então, um
grande problema, agora o é. Um bicho de sete cabeças.
O
filme Bicho de sete cabeças (direção de Laís Bodanzky, 2001 ) nos possibilita várias
reflexões. Numa esfera subjetiva - embora representativa da
realidade de muitos jovens, tomando Neto como seu representante -
pensamos nas experiências de descoberta e de rebeldia durante a
adolescência, os conflitos geracionais presentes nas dinâmicas
familiares, causados pelo autoritarismo, repressão, incompreensão e
falta de abertura, e os impactos destas relações na vida afetiva e
no comportamento dos adolescentes. Podemos refletir também na
dificuldade em aceitarmos o “diferente” (eufemismo para
“perturbador” ou “indesejável” tanto nos indivíduos de
conduta transgressora juvenil como naqueles acometidos por
psicopatologias, por apresentarem comportamentos “excêntricos”
(outro eufemismo, desta vez para “inadequado”, “incômodo” ou
“desagradável?). Ambos os “perfis” são frequentemente
rotulados como desviantes e, em consequência, estigmatizados e
marginalizados.
Entretanto,
há uma reflexão – senão uma crítica – imprescindível neste
filme: trata-se de um símbolo da luta antimanicomial no Brasil.
Bicho de sete cabeças é baseado no livro Canto dos malditos, de
Austregésilo Carrano Bueno, que conta suas experiências de
internação em hospitais psiquiátricos, similares às de Neto.
___________________________________
Fernando de Souza é psicólogo em formação, mestre em Letras e bacharel em
Comunicação pela UFPE. Publicou artigos acadêmicos em Psicologia,
concorreu e recebeu alguns prêmios de poesia entre 1991 e 1995.