por Taciana Oliveira__

Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória


A Peste não é apenas o livro que deu a Albert Camus o Prêmio dos Críticos, em 1947, e o colocou no patamar da escrita contemporânea, mas também é uma das obras fundamentais para compreender a visão filosófica do autor sobre a estética do absurdo e a revolta. O jornalista e escritor franco-argelino compõe uma alegoria sobre a ocupação nazista, que deve e pode ser entendida como uma paridade crítica a qualquer regime totalitário. Publicado em 1947, A Peste traz uma narrativa em terceira pessoa. O médico Dr. Rieux é o narrador-espectador de uma história que expressa as consequências de uma epidemia provocada pela infestação de ratos em uma cidade.


Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade.


A calamidade coloca a população em estado de caos. Os personagens são reféns de uma situação sem controle aparente. Todas as tentativas de conter o surto respondem pela falta de opções em salvar vidas. O odor dos cadáveres, o isolamento, a falta de esperança perpassam questionamentos sobre existir:


O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de letras de câmbio, de conhecimentos ou de descontos? Compreenderão o que há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela chega assim, num lugar seco.


Oran é uma cidade ficcional da Argélia, mas suas ruas, seu povo e a doença que a cerca é real. A peste permanece ainda entre nós, e se atualiza nesse mundo desconexo, herdeiro de um comportamento fascista e de uma hipocrisia teocrática senil. Camus já ponderava:


Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

Albert Camus
______________________________________________________________



_____________________________________________________________

Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem



por Taciana Oliveira__








por Taciana Oliveira__

Muitos da minha geração só tomaram conhecimento sobre a existência de Quincy Jones depois do sucesso estrondoso de Thiller, de Michael Jackson. Produtor do célebre álbum que dominou as rádios na década de 1980, Quincy já era um nome de destaque no cenário artístico. Conhecer seu itinerário na música é enveredar por acordes e cenas históricas dos séculos 20 e 21, é descortinar o passado recente da segregação racial nos EUA, é enaltecer a genialidade de um homem, que mesmo em momentos cruciais descobriu o caminho para a redenção.

Trompetista, aos 14 anos já atuava em bandas de jazz. Aos 18 anos foi convidado para fazer parte da banda de Lionel Hampton. Nos anos seguintes se consagra como um dos principais arranjadores da música americana. Ganhador de 27 Grammys, produtor e amigo de Ray Charles, Frank Sinatra, Dinah Washington, Peggy Lee e Sarah Vaughan, ele encontrou fôlego para investir na indústria cinematográfica. A Cor Púrpura , dirigido por Steven Spielberg, nasceu da determinação e ousadia de Quincy Jones em atuar na produção executiva e musical do filme.

Sua trajetória é revista no documentário Quincy, dirigido por sua filha Rashida Jones e por Alan Hicks. O filme traz um rico acervo iconográfico e resgata não apenas a personagem do produtor e arranjador. Quincy Jones expõe detalhes da infância, fala dos seus casamentos, do amor incondicional pelos sete filhos, da mãe com esquizofrenia e da rotina prolífica nos estúdios de gravação. Um dos momentos  geniais do documentário é o reencontro de Quincy com os profissionais que participaram da realização de Off the Wall, de MichaeL Jackson. O compositor Rod Temperton, o engenheiro de som Bruce Swedien, o teladista Greg Phillinganes, o baixista Louis Johnson , o baterista John Robinson, o trompetista Jerry Hay, e o percussionista Paulinho da Costa tocam algumas faixas do emblemático álbum produzido por Jones.

Vale lembrar que o pai de Rashida (ela pode ser vista em algumas sequências do filme) também é produtor da série Um Maluco no Pedaço, e organizou o evento de abertura do Museu Nacional de História e Cultura Afro em Washington. O trecho em que Quincy Jones retorna à casa de infância é talvez um dos mais significativos momentos da narrativa do documentário. Contra todos os prognósticos o menino Quincy se transformou em um ícone da música americana, em um pai amoroso. Um homem de uma biografia apaixonante.











*Pra viajar, dançar e se embriagar nessa celebração a Quincy

________________________



Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.


por Taciana Oliveira___





O documentário Virando a mesa do Poder, (Knock Down The House, Direção de Rachel Lears), revela os bastidores da campanha de Alexandria Ocasio-Cortez, fenômeno político que obteve vitória esmagadora nas primárias do Partido Democrata, no 4º Distrito Congressional de Nova York. Alexandria é descendente de latinos, com formação em relações internacionais, mas trabalhava como garçonete para ajudar a família depois da morte do  seu pai: "Ser garçonete me ajuda nesta corrida porque sei como é trabalhar sob pressão 14 horas por dia."

O filme conta com a participação de outras três candidatas: Paula Jean Swearingen pela Virgínia Ocidental, Cori Bush, pelo Missouri e Amy Vilela, por Nevada. Todas romperam a mola que impulsiona o establishment nas eleições legislativas de 2018. Recusaram a contribuição de empresas nas suas campanhas,  a participação de velhos nomes do Partido Democrata e a atuação da mídia tradicional. Optaram por financiamento coletivo e doações de eleitores. Essas mulheres ousaram levantar pautas como a da gratuidade do ensino superior e da prestação de serviços de saúde, além de sugerir a criação de políticas ambientais de combate à mudanças climáticas e a construção de uma economia justa para os mais pobres.


Alexandria Ocasio-Cortez foi eleita para uma das cadeiras do Congresso, se transformou em sucesso espontâneo nas redes sociais e foi capa da revista Rolling Stone. É importante conhecer o antes e depois de cada candidata. As suas histórias se conectam em trajetórias de perdas e lutas. Cada uma em sua geografia afetiva e no dia a dia da sua realidade social.

O documentário venceu o prêmio da audiência no Festival Sundance. A produção também é cria de uma campanha na plataforma de microfinanciamento Kickstarter. Virando a mesa do Poder resgata em nós a crença que é possível e necessário realizar mudanças. Agora mais do que nunca é urgente perseverar .


_______________________



Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.



por Taciana Oliveira___

No artigo Mito construído II: o desenvolvimento da crônica esportiva brasileira, de Felipe Rodrigues da Costa, o autor pergunta: Teria sido Mario Filho que, trazendo uma nova forma de escrever, um estilo mais simples, sepultou a escrita de fraque dos antigos cronistas esportivos? Seria ele a referência do nascimento da crônica esportiva, incorporando ao gênero, além da nova linguagem, respeitabilidade ao ofício da crônica? 

O jornalista Mario Filho, irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues, é pioneiro na criação de textos que promoveram uma aproximação do jogador de futebol com o leitor. Mas é Nelson Rodrigues, autor do célebre A Pátria de Chuteiras, o responsável pela popularização do gênero. O escritor sabia como ninguém transformar em arte literária sua paixão pelo esporte mais popular do país.

O jornalista Alessandro Caldeira recentemente criou o projeto Afinta, um espaço dedicado ao futebol e a crônica esportiva. Nessa edição publicaremos uma crônica e uma pocket entrevista com o autor.

A crônica esportiva é um gênero visitado por figuras célebres como Nelson Rodrigues e Armando Nogueira. Nelson a imortalizou como gênero literário. Fala pra gente dessa sua paixão pelo jornalismo esportivo. Nelson está certo quando afirma que “No futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” ?

Eu acho que a minha paixão pelo futebol começou quando eu era criança. Sempre fui muito viciado em futebol, mas sempre preferi jogar. Lembro que eu tinha um jogo de botão e ficava montando campeonatos com representação da realidade. Criava times, jogadores, montava escalações, enfim, em dia de jogo eu não assistia futebol. Eu ouvia no rádio e ia acompanhando enquanto meus times de botão tinham seus campeonatos particulares. Depois que passou a infância e a adolescência, tive uma fase que gostei mais de tática, estatísticas, modelos de jogos e tudo mais.... Só que nunca me sentia verdadeiramente bem com isso, não sentia que a representação do futebol estava nisso porque se perde um pouco a humanidade sentida durante o jogo. A partir daí eu decidi aceitar o que realmente acredito, que é não só ver a bola, como ela vai até os jogadores, mas sim o que os jogadores fazem com ela... Seus comportamentos, seus sentimentos diante da bola.

Afinta é o teu projeto pessoal. Um espaço para quem acredita na capacidade de transformar o futebol em arte. Escrever sobre futebol ainda é um execício afetivo sobre algo que define alma do brasileiro?

Eu acho que o brasileiro tem muito interesse pelo futebol, de falar sobre futebol. Embora esse interesse tenha diminuído por questões afetivas e culturais. Mas vejo ainda assim muitos escrevendo como uma forma de interagir com quem se interessa. Ainda mais hoje em dia que as redes sociais, como o Twitter, permitem se falar sobre qualquer assunto livremente.

O poeta Paulo Emílio Azevedo diz que "Arquibancada de estádio de futebol é igual missa de domingo - um senta e levanta danado esperando Deus marcar um gol pra libertar o delírio" Pra você futebol é uma liturgia, uma celebração?

O brasileiro tem uma conexão muito grande com o futebol. A cultura brasileira permite isso. Não é difícil encontrar um brasileiro que tenha o sonho de ser jogador, e isso se deve muito à nossa formação nas ruas. Normalmente são os meninos ou meninas que saíram de uma família pobre que tem esse desejo. O futebol te permite ser o que quiser. É aonde o brasileiro tem a capacidade de sonhar e transformar em realidade através da bola. Sempre tivemos uma tendência maior em jogar do que assistir futebol. Brasileiro gosta de sentir o jogo na prática. Mas isso mudou com o passar dos anos por estarmos presenciando um choque cultural. Muitos "cientificistas" idolatram o que vem de fora e expulsam o que vem daqui, rotulando como algo simples e pobre. Isso gera um desinteresse, a torcida não se identifica com isso. Eu vejo o futebol como uma celebração. É no campo que o brasileiro se sente livre para ser o que quiser.


_________________________________________________
O Drible Interrompido

por Alessandro Caldeira

O interesse desmedido pela vitória deixou o brasileiro alheio à tradição da gestualidade corporal na cultura do País.


Certa vez, numa quadra escolar onde amigos organizavam as “peladas” todas segundas-feiras, o garoto que mais gostava de driblar recebeu uma advertência de seu companheiro de equipe: “Não faça muita firula”. Assim que acabou o jogo, o garoto comentou perto de mim: “Eu não sei jogar bola”, convencido de que seu estilo de jogo era errado.

Ao mesmo instante, senti como se alguém tivesse tirado o sonho daquele garoto, como um mágico limitado na criação de truques menos ilusórios.

No entanto, quem via o pequeno franzino jogar, logo se sentia diferente perto dele. Em outras palavras, era como se o público obtivesse uma nova descoberta quando a bola grudava nos pés daquele garoto. Os comentários de quem o assistia eram os melhores possíveis: “Esse garoto tem talento”. “Não dê muito espaço, senão já viu! ”. “Ele não fica nervoso na frente de marcador algum”.

A expectativa que a “torcida” gerava em cada toque na bola daqueles pés pequenos e magros o transformava em uma “celebridade”, o público notava-o, aquele era o momento em que ele podia interagir com outras pessoas e tornar-se conhecido sem precisar falar, porque é esse o objetivo do futebol: a conectividade social entre aqueles que estão presenciando o jogo, dentro e fora da quadra.

Mas, de repente, após aquele comentário que veio como uma faca em seus pés, o futebol do menino sumiu junto com a vontade de ser notado através de seu talento. Assim, o garoto se viu pisando em uma “terra estrangeira”, deslocado em um espaço que não comportava seus sonhos.

Entre os brasileiros, o drible virou uma espécie de ritual profano, uma dança Lundu. Parafraseando Nelson Rodrigues: Brasileiro é menos brasileiro no Brasil. E a cena ocorrida naquela quadra fez-me imaginar o peso daquele garoto em se sentir culpado por apreciar o lúdico, o imaginativo, ou seja, por conservar o estilo brasileiro.
Se Garrincha, Pelé e Rivelino tivessem no futebol de hoje, eles teriam se aposentado sem ter dado um drible sequer na vida, impedidos de exercerem sua arte por excelência por terem que ceder à obediência da “ciência-tática”.

Porém, não é novidade entre os “cientificistas da bola” a concordância de que o futebol evoluiu e por isso não tem drible, ou de que o futebol precisa ser mais competitivo, negando o drible como recurso que leva à vitória.

Mas eu contra-argumento dizendo que, na verdade, o futebol não evoluiu, nós é que perdemos a essência do jogo brasileiro porque não entendemos nada da nossa cultura, substância que se manifesta dentro e extracampo, e que valoriza a nossa tradição lúdica.

É mais fácil ver o brasileiro sair de seu País de origem e virar um alemão, espanhol ou inglês relatando uma certa “cultura futebolística” que aprendeu no exterior como se fosse ensinar aos brasileiros um esporte novo.

O último jogo da Seleção Brasileira, por exemplo, contra a Rep. Tcheca, surgiu um comentário criticando a forma como o Brasil está se preocupando demais com a tática, justificando que esse era o principal motivo pelos jogadores do País não terem mais a capacidade de driblar.

Não demorou muito para os cientificistas da bola estufarem o peito e refutarem a opinião dizendo que o brasileiro não pode ser mais individualista porque o futebol mudou.

Porém, a impressão que eu tenho é de que o futebol não mudou, mas a forma como queremos interpretar o jogo brasileiro sem entendermos a cultura do nosso país e as influências que dela decorrem.

Tomemos o Carnaval como exemplo: imaginem um carnaval sem dança, sem todo seu processo lúdico e, assim, limitando suas gestualidades corporais, o que aconteceria de imediato? O público jamais teria a capacidade de interagir com aquilo que está acontecendo porque perderia a capacidade de sonhar em conquistar o mundo dançando.

A mesma coisa é o futebol brasileiro: o jogador precisa ter espaço para desfilar suas gestualidades para que não só ele, mas também o público sinta prazer em estar participando. Sem isso, o jogador perde a sua força e seu talento, desconexo com o público e abandonado dentro de si.

É o drible do jogador brasileiro que resulta na sua interação com o torcedor. É a despretensão do jogador que desperta a aproximação com as suas origens e o faz renascer de uma vida outrora desconhecida.
Em suma, cada jogador é um garoto impedido de driblar porque a competitividade e a vontade de apenas passar a bola para ganhar, respeitando a mãe-tática, é tão mais forte quanto a nossa vergonha por termos uma cultura.
________________________________
Acesse as crônicas de Alessandro Caldeira em Afinta
Visite a Rede Social: Página no Facebook

_________________________

Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.









______________________






                 
Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.











por Taciana Oliveira____


Enquanto lia Antônio LaCarne a chuva ameaçava cair sobre o Recife. É um dia cinza em um país sem metáforas, de um governo insuportável, de uma tristeza inaceitável. Volto para leitura de Exercícios de Fixação (A.R Publisher Editora, 2018) e acolho as personagens. Nesse caleidoscópio de sentimentos posso ser cada uma delas. Mas posso também não ser.


A cidade que o engole no cinza de tempestades imprevistas no céu, como quem se enfeita para chorar sem motivos. Os prédios mais altos do mundo não choram. – Trecho do conto Cair demais.


O autor nos brinda com uma narrativa agridoce, uma escrita sem falsas simplicidades: LaCarne é artesão de uma prosa poética, mas nada é o que parece nessa tessitura melancólica. Todos estão nus, inclusive o leitor. A sensação de abismo é um pretexto para a respiração. Seus contos emergem do vazio para além da palavra. São como fotogramas de quem não se deu conta que possui o delicado ofício da observação. É preciso coragem para enxergar.

Em Shangai não me espera, o narrador responde com uma fluidez rítmica. O conto nasce manifesto e epifania. Já em Arlete no vazio há uma solidão clariceana, uma amargura dormente, fincada na construção de uma personagem que arde de desejo na aridez de sua existência. Na obra o autor não se furta em expor contradições, desafiar preconceitos (Lápis de cor é bem mais que um conto sobre bullying e homofobia) e cutucar sem sutileza a hipocrisia que devora a sociedade (Encanadores não desentopem enganos).


Destaco ainda que Exercícios de Fixação não é um livro pra se guardado na estante. Como a Via Crucis do Corpo de Clarice Lispector e Morangos Mofados de Caio Fernando de Abreu, é uma obra que precisa ser reverenciada na sua ousadia narrativa e temática:

Os deuses te ferem, mas não me decoram asas. O mar percorre os continentes. Quero que você me leia enquanto mastiga um mamilo e joga uma dor para escanteio. Sou livre enquanto posso. Shangai não me espera. Os travesseiros são as minhas pedras. Não estou triste com o fim da história que é este começo. Desde já os olhos se infiltram, imploram por penhascos infrutíferos, deixam as pernas de quem espera sempre abertas. Durante a encruzilhada, damos marcha à ré, calculamos a quantidade de dentes e nos apaixonamos por pessoas improváveis. – Trecho do conto Shangai não me espera.

O escritor Antônio LaCarne é uma grata surpresa em dias de tamanha apatia. Um exercício para sair da zona de conforto e acordar os homens.


_______________________


Antônio LaCarne escreveu Salão Chinês (Patuá, 2014), Todos os poemas são loucos (Gueto Editorial, 2017) e Exercícios de fixação (A.R Publisher, 2018).

____________________










                                                    ***


Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem

por Cristina Huggins___


De tanto olhar as grades, seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na Terra:
grades, apenas grades para olhar.
Rilke, A pantera



Os versos do poeta expõem o triste fim de uma pantera, cerceada de seu ambiente natural. Para o felino, a liberdade é pretérita; seu presente, a jaula de um zoológico. Contrastes entre uma cidade do passado, mais generosa e hospitaleira, refúgio e conforto de seus habitantes, e outra, atual, inóspita e tirana com os cidadãos, permeiam a memória dos mortais que residem na urbe registrada por Taciana Oliveira.
Quantos gritos cabem no silêncio dessa cidade? O média-metragem da diretora é também uma pergunta que rouba o sossego. No filme, a cidade é melancólica, assombrada pelo descaso e pela incerteza. Suas personagens, “panteras-bípedes”, aprisionadas nessa urbe nada gentil, deambulam pelas ruas, atormentadas em meio à nostalgia e à angústia. Uma delas vagueia até esbarrar na mesma porta. Confere a residência, velha conhecida, e tomba o corpo fatigado na mesma cama. É noite. É dia. É noite. É dia. É noite. É dia... Desperta, sufocada por um cotidiano linear.
Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto”, escreveu Machado de Assis. Taciana mostra o rosto de sua cidade. Ousada, evita obviedades. Escolhe uma vereda tortuosa para dialogar com o espectador. Dispensa a narrativa esperada, conduzida pela palavra, e constrói uma crônica imagética que flerta com a música. Na tela, passeiam tipos insones, alucinados, atordoados, perdidos; mas igualmente solidários, generosos, puros e, às vezes, confiantes. Ela incorpora cada um deles como alter egos e convoca a sociedade à reflexão.
O destemor e a singularidade da cineasta chamam a atenção. É preciso valentia para fazer perguntas lancinantes e cortar o próprio músculo. Ela tem essa coragem. Não receia sangrar. Como Saramago, brada aos sete ventos: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”. Seu trabalho é faca amolada. Fere, mas também emancipa. As cores incidentais, a generosidade de pessoas de uma comunidade humilde e a inocência de uma criança-anjo — punctum de uma cena hostil —, entremeadas no cenário sombrio do filme, acenam para respostas e uma esperança de cidade harmônica possível.

Neste e-book, estão reunidos frames e fotografias da diretora, textos de convidados, e de escritores selecionados por ela para integrar a edição. Apreciar esse material é empreender uma jornada pela visão de Taciana sobre viver e conviver nas metrópoles de hoje. O e-book e o média-metragem fazem parte dos trabalhos levados ao público pela Galeria do Meio-dia, projeto da Garagem 94, em 2018. 

________________________________________

Cristina Huggins é especialista em Linguística aplicada(UFPE). Tem formação em Estudos Hispânicos (Salamanca, Espanha). Sua experiência inclui ensino, pesquisa, produção de textos e tradução.
__________________________


Abaixo você pode assistir o trailer do filme e  visualizar o catálogo da exposição.







Por Aliás Editora e Taciana Oliveira__


O livro Paginário, Alías Editora – resultado das narrativas obtidas durante a Oficina de Escrita Literária – “Leitores, livros e as histórias de cada um”, que teve a mediação de Anna K Lima – será lançado no dia 10 de maio, sexta-feira, em programação que acontecerá no Espaço O POVO de Cultura &Arte. O título “Paginário” quer dizer “as páginas preferidas dos nossos livros”.

A publicação reúne 23 autoras e autores que participaram da formação – realizada em outubro do ano passado. Nessa materialização entra a Editora Aliás, que tem como diferencial publicar somente mulheres, que foram maioria na oficina de escrita. Outra mulher assina a capa do livro, a artista visual e escritora cearense Raisa Cristina.

Fotografia: Pâmela Soares



Os autores: Ana Argentina Castro Sales, Antonia Gabriela de Araújo Alves, Delma Fonteles, Delmisa Fonteles, Domingos Sávio Mariano Filho, Fabrício Saldanha Arnaldo, Francisca Maria Alcântara de Holanda, Gálbia Angélica Goiana da Silva, Jessika Thaís Sampaio Lopes, João Manoel da Silva Queiroz, Jose Flávio Januário Dos Santos Filho, Juliana Braga Guedes, Liliana Ricardo Alves, Lisiane de Oliveira Forte, Magda Helena de Araújo Maya, Marcello Camelo Ancanfor Magalhães, Pâmela Cardozo Soares, Rafael de Mesquita F. Freitas, Rebeca Maria Gadelha Mendes Matias, Thiago Noronha Pinto, Tania Maria Castro Sales, Yvonne Miller e Neyara Furtado Lopes.
Para adquirir Paginário: Aliás Editora


Saiba como nasceu o projeto e o que pensam os escritores. Dá um play nos vídeos e mergulhe nessa história.













Sociedade dos Poetas Mortos, Direção de Peter Weir, 1990

por Erica Guerra e Ronney Diniz

Sociedade dos Poetas Mortos é um drama dirigido por Peter Weir e estrelado por Robin Williams. Foi um dos filmes mais marcantes do cinema norte-americano da década de noventa e faz uma crítica ao sistema de ensino tradicional.

A história se passa nos Estados Unidos, no ano de 1959, numa instituição de ensino tradicional chamada Academia Welton, considerada um das melhores escolas da época. O drama gira em torno de John Keating (Robin Williams), um professor e ex-aluno da instituição que lecionava na Chester School, em Londres, e é chamado para substituir o agora aposentado professor de Literatura.

A escola para rapazes de ensino médio tem cem anos de história e possui como ideal didático um ensino rígido e inflexível como o que se vê no universo militar. A filosofia de ensino está baseada em quatro pilares: a tradição, a honra, a disciplina e a excelência. Inclusive no próprio uniforme dos alunos que utilizam ternos com vários brasões.


por João Gomes__


Wilson Freire


por João Gomes__


No meu aniversário passado, recebi de presente um livro de uma amiga tão apaixonada por livros quanto eu. Na dedicatória, Ecilda aproveitou o título de uma só palavra para escrever: “Querido João, espero que este livro te tire o Sono e te leve para o mundo dos sonhos.” Após uma afetuosa visita sua, mexendo nos livros da estante da sala, chegamos no volume de capa dura, de cor azul noturno, publicado pela Alfaguara à altura da qualidade literária do autor com tradução do japonês de Lica Hashimoto e ilustrações de Kat Menschik. Perdemos muito tempo não lendo ao menos os livros que ganhamos de presente, uma vez que os que compramos passa pelo desejo de ter às vezes muito maior do que o de ler, já que não precisamos comentar com alguém o que achamos.

Então li Sono, de Haruki Murakami, obra que fica entre o conto e a novela pela sua concisão característica do gênero e tão genial na prosa limpa do autor. Em resumo, podemos dizer que a protagonista cujo nome não sabemos não dorme há dezessete dias. “É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir.” Quando passamos dessa oração em um parágrafo de abertura, iniciamos o desespero de uma mulher que perdeu a capacidade de dormir. E é com muita empatia já de cara e nenhuma cura, que passamos a viver a rotina tão monótona da protagonista junto com seu marido, um dentista dono de uma clínica próximo ao edifício em que moram, e seu filho pequeno a quem sempre se despede da mesma maneira ao levá-lo à escola. Falando assim, mais parece que o enredo é um Japão que já conhecemos, todo certinho, que não fossem os tremores de terra nada tira do lugar.

Mas não, a prosa de Murakami não é para fazer dormir. Até poderia ler um capítulo de cada antes mesmo de me recolher no escuro do quarto. Mas não, é impossível ficar apenas com uma fatia, como a banda de um Rivotril, e deixar mais do que está sozinha a narradora que nos confessa seu sofrimento sem vitimismo algum. Então ela decide não contar nada para ninguém, tomando proveito que o sono do marido e do filho é tão pesado quanto o de uma pedra. E quando falamos aqui em 17 dias sem dormir, é 17 sem dias sem dormir mesmo, sem pregar os olhos um segundo sequer, sem soneca no meio da tarde, ou o trocar o dia pela noite tão comum entre os insones. Mas pode também ter sido um surto psicótico, fazendo-a perder a contagem exata, podendo também ter sido algumas horas. Falando assim, é assombroso, kafkiano, como se tivesse se transformado num outro tipo de ser, uma barata, ou alguém que vegeta ou um mineral.

À medida que a narradora vai avançando, podemos pensar que o fato de não dormir foi apenas o mote para que ela compartilhe sua experiência, como fazem os comediantes em algum stand up temático. Não que seja humorada, ela é a típica estudante de Letras que desde criança teve uma vida voltada para a leitura, a ponto de gastar toda a mesada com livros. Isso me fez lembrar o público leitor de Murakami, que é mesmo um genial best-seller, e não somente por essas identificações banais, mas pela abordagem diante da vida num realismo repleto de cenas estranhas. Assim como eu não resenharia este livro da forma comum como é feito por autoras de blogs que me maravilho lendo após a leitura do livro pesquisado, também Murakami não se limita a nenhum tipo de clichê. Como costuma acontecer em grandes obras de arte, é possível nos ver dentro da história, fosse também a nossa sendo nós feitos da mesma essência, quer aqui no Brasil ou no Japão. Mas falava que a protagonista é formada em letras, com monografia de conclusão sobre Katherine Mansfield, escritora neozelandesa de contos, e que me fez pensar o quanto a grande literatura ultrapassa qualquer língua e país.

Vale ressaltar também que este não foi o primeiro livro do Murakami que li. Comecei com Após o anoitecer, e foi a certidão de cartório da emissão da carteirinha de fã pelo Haruki Murakami. Ele é daqueles autores que nos dá o medo de terminar a vida sem nunca ter lido uma obra dele, e é daqueles que basta uma obra que o canto da sereia nos leva para dentro de suas páginas. É o que acontece em Sono, e é o que acontece em qualquer livro seu, todos publicados aqui no Brasil pela Alfaguara. Quando descobri que o magnífico é triatleta, pronto, enlouqueci de paixão, tendo inclusive que pedir desculpa a sua conje, ops, cônjuge. Em meu interesse gratuito e reflexivo pelo autor, li o seu Do que eu falo quando eu falo de corrida e Romancista como vocação. Esses dois de não ficção me permitiram compreender como sua obra se realiza, como pode alcançar tanta gente, de qualquer idade, mas sobretudo os jovens. E aqui não sei se é fácil ou difícil, em tempos como os de hoje, tumultuados de outras opções de entretenimento, conseguir segurar um leitor em suas páginas.

Minha interrogação existencial paira no porquê demorei tanto para ler este livro tão curto, com ilustrações tão conectadas com o desenrolar da história. Quando o desembrulhei lembro que não passei da página da dedicatória, vendo no miolo apenas que a diagramação era muito agradável, a fonte graúda como que para ser lida por leitores que usam mas ali sem a necessidade de óculos. Sabia que era do Haruki, o mesmo por quem já tinha uma paixão revelada publicamente, e por isso o presente. Apesar do título ser Sono, não era sobre dormir, ou estar de olhos fechados que o livro tratava. Ao mesmo tempo, pensei: nossa, o Murakami querido escreveu livro infantojuvenil também, que esperto, não deixa passar ninguém… e desprezei por isso, guardando na estante por quase um ano. Dizer que tudo tem sua hora é clichê, mas dizer que no momento certo seremos arrebatados pelo prazer de uma obra genial, isso pode acontecer a qualquer momento da vida.

E é isso o que acontece em Sono, quando a protagonista percebe que não consegue dormir. Ela começa a ler por horas a fio, sobretudo nas madrugadas, mas também à tarde, no sofá da sala, depois que o marido volta pro consultório ou quando ela retorna da natação. Num momento acontece um estalo em sua mente atordoada, e se questiona quando foi que leu pela última vez um livro e para onde foi sua paixão pela leitura. “Mas, naquela noite, consegui me concentrar na leitura de Anna Karenina. Consegui avançar as páginas totalmente absorta na leitura, sem me distrair.” Acompanhada de uma garrafa de conhaque, de barra de chocolate ao leite e cookies, lia Tostói com a paciência de só encontrar a heroína da história, Anna, no capítulo 18, assim como esperamos pela cama, pelo descansar da protagonista numa referência direta ao título. “Ao deixar de dormir, ampliei o meu ser. O importante é o poder da concentração. Viver e não conseguir se concentrar é o mesmo que estar de olhos abertos sem poder enxergar”.

Sono, para quem puder ler, é um achado da literatura contemporânea e, por meio da edição brasileira, uma obra de arte digna de triunfal entrada no mundo dos que sonham acordados. E falando em literatura contemporânea, em concisão, o guatemalteco Augusto Monterroso é apontado como autor do mais famoso miniconto, escrito com apenas trinta e sete letras: “Quando acordou o dinossauro ainda estava lá.” Nunca mais fico sem ler aquilo que pode me modificar, aquilo que, mesmo dormindo noite após noite, vai continuar como uma tristeza necessária e pregada em sonhos ou pesadelos, a depender da experiência e maneira de observar a si mesmo e os que estão a nosso redor. “Será que eu poderia me considerar um exemplar único, uma precursora da espécie humana, que deu um salto na cadeia evolutiva? Uma mulher que não dorme. Uma consciência expandida.”


___________________________


Haruki Murakami nasceu em Kyoto, no Japão, em janeiro de 1949. É considerado um dos autores mais importantes da atual literatura japonesa. Sua obra foi traduzida para 42 idiomas e recebeu importantes prêmios, como o Yomiuri e o Franz Kafka.









________________________________________________





João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.