por Tadeu Sarmento__
Se
em “Os ratos roeram o azul” – belíssimo e imagético
título do livro de estreia de César Gilcevi – o poeta traz à
tona a imagem angustiante e indignada de um artista pobre e pardo na
periferia de Belo Horizonte; em “Retrato do poeta quando devedor
de aluguel” (seu trabalho mais recente, lançado pela Editora
Letramento), essa periferia é ampliada até abarcar todo um país
injusto como centro e, a comunidade de marginalizados iguais ao
artista, como algo maior, bem mais perigoso (listados no poema
“noturno ponto50”). Por conta disso, trata-se de um livro de
extrema virulência política, repleto de referências bíblicas que
convivem com pinceladas da música e da cultura pop e erudita, além
das religiões de matriz africana.
E
o retrato do poeta devendo aluguel é apenas um dos diversos retratos
dessa odisseia cheia de buracos, na qual os poemas funcionam como
percursos narrativos cujos “heróis” desejam subverter as
injustiças sociais. Há também o “retrato do poeta pardo tentando
escapar do navio negreiro”; ou o “retrato do poeta usando
anúncios de empregos para limpar a bunda”, ou ainda “o retrato
do poeta na rodoviária de Itabira”. Em cada um destes, percebe-se
a tentativa de Gilcevi em denunciar toda a realidade através da
fúria e da imaginação, antes que o Moloque burguês, representante
das forças que sempre estiveram no poder, consiga destruí-lo. Ou
cooptá-lo.
É
para evitar a capitulação que o autor retorna para beber na fonte
de sua ancestralidade (“gênesis; cap. I”) ou de seu passado,
onde “a rua da infância continua no mesmo lugar”. Sua escrita
vigorosa denuncia o pesadelo de uma normalidade excludente em cada
esquina e, para tanto, costura frases certeiras (“sob a caixa
torácica \ o cofre alarmado”) com visões noturnas, além de
descidas ao inferno a mando de Deus. Isso sem falar no humor. Por
exemplo, em um poema de César Gilcevi, a “Comala” de Juan Rulfo
se transforma em uma biqueira para a qual os filhos se dirigem atrás
do fantasma do pai.
A
poesia de Gilcevi se coloca contra os valores de uma sociedade que
não representa os pobres, utilizando-se das mais diversas imagens do
sincretismo religioso, e assumindo totalmente a condição de poeta
periférico decidido a denunciar que, na mesma semana em que “Ana
foi embora”, os “fascistas tomaram o poder”. E é em
consequência da percepção das situações críticas da interdição
da cidadania em nosso país que a interlocução do poeta com a
violência do mundo real se dá.
No
que se refere à forma, não se trata apenas de ler Gilcevi em função
de suas pontes de estilo (e de temática) com autores como Roberto
Piva, Drummond e Allen Ginsberg, mas de pensá-lo, principalmente, a
partir de sua filiação a um tipo de lirismo moderno, de espectro
baudelairiano, que compreende seu vínculo com o pensamento
politicamente performático, relacionando-o com as camadas sociais
marginalizadas. É a partir dessa chave que é possível compreender
o “Retrato do poeta quando devedor de aluguel” como um
manifesto político sobre o nosso tempo (“um monumento à justiça
brasileira / erigido com 450 kilos de cocaína”), lendo seus poemas
como pontiagudos objetos político-culturais, positivamente a serviço
de certas ideias transgressoras que contribuem para a subversão de
determinados discursos que naturalizam a exclusão da sociedade.
Ao
agir sobre a consciência humana, acendendo seus alertas, a palavra
do poeta pode despertar a indignação que nos levaria à luta por
condições mais justas, por realidades mais humanas e mais justas,
nas quais exerceríamos o direito à liberdade de viver, e não
apenas de sobreviver? Não sabemos. O que se sabe é que a poesia
sempre terá algo a revelar, ainda que seja só o mundo real, bem
diante dos nossos olhos. O caos da pobreza, a certeza de que “a
poesia nunca salvou ninguém” e o abandono social que o poeta
descreve, tornam o trabalho com a escrita a representação certeira
dos modos de sobrevivência em um país violento com os que não têm
nada nem ninguém por eles. A solução? Ler os poemas de César
Gilcevi. Ou “ir a Brasília matar o presidente”, como deseja o
“José” do poema “2016”.
Retrato
do poeta quando devedor de aluguel
César
Gilcevi
124
páginas
Editora
Letramento
34
reais
César
Gilcevi publicou o livro/cd Os ratos roeram o azul pela
Editora Letramento, em 2016. Vocalista da banda Cadelas
Magnéticas, lançou o EP Encruzilhada (2017), disponível nas
plataformas digitais. Retrato do poeta quando devedor do aluguel é
uma publicação da Editora Letramento, 2019.
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Tadeu
Sarmento é autor dos livros breves fraturas portáteis
(Fina-Flor Editora, 2005) e Paisagem com ideias fixas
(Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias
anônimos (Cepe Editora, 2016) e O Cometa é Um Sol que
não deu certo (Edições SM, 2019)
por Taciana Oliveira__
Na
seção Fotogramas desse mês apresentamos alguns dos registros que
compõem a exposição A Luta Yanomami, de Claudia Andujar. A
fotógrafa é celebrada com uma retrospectiva do seu trabalho na
Fundação Cartier, Paris. Claudia Andujar, La Lutte Yanomami
estreou no dia 30 de janeiro e vai até 10 de maio. Depois, segue para
Suíça, Itália e Espanha (fevereiro de 2021). A exposição conta
com o apoio do Instituto Socioambiental, Instituto Moreira Salles e
a Hutukara Associação Yanomami.
“Estou
ligada ao índio, à terra, à luta fprimária. Tudo isso me comove
profundamente. Tudo parece essencial. Talvez sempre procurei a
resposta à razão da vida nessa essencialidade. E fui levada para
lá, na mata amazônica, por isso. Foi instintivo. À procura de me
encontrar”
Claudia
Andujar, em texto publicado no catálogo da sua mostra.
por Taciana Oliveira_
No ano de 2015, a fotógrafa Kamila Ataíde foi a cidade de Custódia, no Sertão de
Pernambuco. Um amigo a tinha convidado para criar um ensaio fotográfico que apresentasse o ambiente solitário onde vivia sua avó. Todas as fotografias foram captadas e editadas com celular. O Mirada escolheu algumas imagens desse ensaio para ilustrar a seção Fotogramas desse
mês.
Foto: Kamila Ataíde |
por Kamila Ataíde__
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Andrei Tarkovscki é um gatilho, um convite à memória. Foram às minhas lembranças mais caras da infância a que fui atirada. Quando recebi o impulso de escrever sobre ele, pensei que das tantas coisas as quais eu o atribuo, a que eu poderia falar com mais propriedade e, aliás, a mais presente quando lembro das suas obras, é o impacto emocional e afetivo ao qual ele me lança sobre minha própria vida, mais especificamente, sobre a minha infância. Fui rememorando cada um de seus filmes e noto que há sempre uma sensação de nostalgia em mim impactada pelas representações intensas e pungentes de cada momento em que ele projeta um traço de memória. Particularmente, as minhas lembranças mais ternas da infância se desenham na minha mente exatamente com determinadas características de cores e texturas de algumas das suas películas. Isso não só acontece com memórias reais, mas com alguns dos meus sonhos mais significativos.
Tarkovscki trouxe uma verdade onírica e humana às narrativas, que através das características visuais e linguagem fotográfica escolhida por ele me atira sobre cenas calorosas dos 5 ou 6 anos de idade, como também aos sonhos mais conflitantes. A rua da minha casa às 7 horas da manhã, as tardes chuvosas e à meia luz, assistindo TV na companhia da minha avó sentada na cadeira de balanço - fui levada a essa memória ao assistir Nostalgia (1983) e me deparar com a cena do quarto de hotel, onde o personagem Gorchakov está deitado na cama e a iluminação vai se modificando aos poucos no quarto, os cachorros que tive, a tarde em um sítio de algum parente, em algum lugar do mundo, as correrias de fim de semana no meio da rua.
Revisitando alguns trechos do filme O Espelho (1975) para escrever esse texto, fui arrebatada por memórias inéditas de algum lugar no espaço-tempo da minha infância. Apenas alguns flashes de um campo arborizado, pessoas muito altas por perto e uma luz de fim de tarde. Andrei ainda dota desse poder. A cada vez em que paro para revisitar alguns de seus filmes, eles extraem de mim alguma cena esquecida e guardada no fundo da memória.
O Espelho (Andrei Tarkovski, 1975)
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Nesse mesmo filme, O Espelho (1975), Tarkovscki traz uma leitura da própria vida através do paralelo entre passado e presente e sugere - através de algumas características do filme como a utilização dos mesmos atores para personagens diferentes – a percepção de como algumas vidas são reflexos de outras, como uma reprodução hereditária de comportamentos. Isso me faz pensar sobre como vi e ainda vejo algumas histórias da minha família se repetirem com o passar das décadas. Cada uma das películas me convidou, em determinado momento, a viajar no tempo até algum instante considerado importante para a cabeça de uma criança entre os 4 e os 10 anos. E cada uma dessas películas também me convidou à refletir como os elementos de uma linguagem fotográfica, seus aspectos técnicos, dramáticos, suas composições, a iluminação, a música, o silêncio em momentos cruciais, são capazes de inspirar e encaminhar o espectador a regiões tão pessoais da própria vida e, por mais destoante que possa ser a realidade da personagem com a do espectador, ainda assim, gerar algum segundo de identificação e viagem no tempo. Tarkovscki é realmente um convite à memória, a dele e a nossa, da forma mais sensível e humana que se pode fazer.
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Andrei Tarkovski nasceu em 1932, na extinta União Soviética. Filho de uma atriz e de um poeta, foi criado pela mãe (seu pai abandonou a família quando Tarkovski tinha cinco anos). Formado em geologia, mas apaixonado pela sétima arte, cursou a Escola Soviética de Cinema (VGIK). Dirigiu A Infância de Ivan (1962), Andrei Rublev (1966) Solaris (1972) e Stalker (1979), Nostalgia (1983), O Sacrificio (1986) entre outros títulos. É considerado um dos maiores cineastas do século 20 e talvez seja apenas superado, em grau de importância no cinema russo, por Sergei Eisenstein.
Faleceu em 1986 em consequência de um câncer no pulmão.
Faleceu em 1986 em consequência de um câncer no pulmão.
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por Adriano B. Espíndola Santos__
A vitória , 1939 - por René Magritte |
Escutei,
ao longe, indícios. Logo o arrepio e o asco, feito unhas raspando a
parede lisa da sala, percorreram o meu corpo. O mal-estar iminente, a
galope, atravessava as entranhas e arrancava meu coração, boca
afora.
Era
real. Incrível. Mal pude acreditar, em pleno começo de ano. O
sujeito entrou e sentou, com louros, no mesmo espaço que eu. E aí?
Recolhi-me à insignificância de um mero trabalhador. Eu,
simplesmente, fui forçado a dividir o ar com um sujeito que detonou,
durante cinco meses, a minha vida e a da minha família. Que podia
fazer naquele estado de submissão? Repito, para me convencer, sou um
reles assalariado; e os ganhos valem mais a pena que a cordialidade,
humanidade, etc., etc., etc. E quando o dinheiro não valeu mais que
qualquer pessoa?
O
sujeito, por pura implicância, intrínseca desfaçatez, vinha
ganhando, aos poucos, a simpatia do patrão, que, coitado, pode
acabar se ferrando como eu me ferrei. E ele sabe; isso é o pior. Ele
acompanhou a minha tormenta, o desgaste sobre-humano irresistível
por que passei. Mas, sem fugir à regra, para o chefe foi um
grandíssimo mal-entendido. Ao passo que, assim, ele disse, em outras
palavras: “Você está pirando, rapaz”. E ri – ar blasé
derramado. E não consigo esquecer o mantra que ele adquiriu (pagando
caro) nos últimos tempos: “Controle emocional, Silvério! Controle
emocional, rapaz!”.
Estou
vendo, reparando a cara dos dois, que gracejam: “Grande negócio!”;
ainda mais, zombando da minha presença. Ganhos mútuos? Talvez. Ou
um pensando em ganhar um pouco do outro. A única certeza: nenhum
naquela sala estava absolutamente tranquilo, relaxado. Eu, por ter de
permanecer ali, como funcionário imediato, atado aos comandos do
chefe. E eles, com os seus blefes; treinamentos para controle
emocional; tons ponderados e toques milimetricamente calculados de
mãos; maneiras circunspectas que se olham, para transparecer
confiança, certeza e, por fim, vantagens recíprocas.
Tentei
me alhear, primeiramente, mas os sons aumentaram, sem controle.
Dispersei-me, completamente. Enquanto estavam lá, não conseguia
trabalhar.
Fui
arrastado e me espalhei; vaguei e aventurei-me a passear pela praia,
onde eu queria estar. Então, um chiste medonho me sugou à
realidade; outra frase de efeito, e, como bons e velhos conhecidos,
expertos em negócios, certificaram efusivamente que processo iria
continuar.
Quando
pensei que o sujeito ia despedir-se, virou-se, enfocou o patrão, e
articulou: “Aproveitando o ensejo, e o coworking?”. Meu
chefe, de braços abertos, sem o abraçar, quase o pegou no colo,
acolheu como quem acolhe um parente vivido anos no exterior, e
exclamou expansivo: “Ótima oportunidade!”, e desembestou a falar
que teria o maior prazer em recebê-lo e fazer parcerias; que
precisava de uma pessoa comprometida como ele, para desenvolverem
bons trabalhos; e o principal, claro que iria proferir: “Vamos
ganhar muito dinheiro em 2020!”.
O
embuste, enfim, se foi. Depois de passado o estorvo, da energia
pesadíssima que comprometia o lugar, pensei mais e desejei que o meu
chefe tivesse tino e sorte. Ele não tem o filtro natural para
despachar o mal-estar. Ele não sente. Já percebi. Sorte ou azar?
Não sei. Ele, infelizmente, tem a propensão para pensar em cifras,
números. E eu, que achei que podia livrá-lo dos absurdos
inconvenientes, não pude. Sou, além de tudo, impotente.
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Adriano
B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do
livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado
humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para
se sentir vivo: o coração inquieto.