Amarrar o corpo na lua, de Lucas Guimaraens

 por Adriane Garcia__




                                                                                       
Por estes dias, estive lendo 
Amarrar o corpo na lua, de Lucas Guimaraens. O livro apresenta poemas que, no seu conjunto, oferecem várias chaves de leitura: uma delas é a relação vida e tempo, tendo como elo – que dá grande organicidade à coletânea – o amor fati, a aceitação do destino, o amor à vida como ela se apresenta. Se em Nietzsche, o conceito de amor fati se dava após a queda dos fundamentos metafísicos, a morte de Deus, abrindo então um mar de possibilidades para o além-do-homem; em Lucas Guimaraens esse amor fati aparece após a queda de dois fundamentos íntimos: a perda da saúde, a proximidade direta da morte; não é a morte de Deus a constatação, mas a morte do próprio indivíduo. O mar de possibilidades passa a estar concentrado no presente. Em Amarrar o corpo na lua, o eu-poético, apesar de guiado pelo inescapável da morte, reafirma a vida, assim como o poeta que nos diz “avante”.


Lucas Guimaraens compõe o ritmo de seus poemas, geralmente, no corte dos versos curtos e divisões em estrofes com bastante variação em número de versos. Na sonoridade é interessante notar que o poeta se utiliza de rimas internas e externas, espalhadas de maneira irregular, sem esquemas, podendo acontecer em qualquer estrofe, ou não. Por exemplo, há o poema Cama, que segue em versos livres e brancos até que o 46º e o 49º utilizem as rimas rua e lua. Observa-se também um aproveitamento que casa tema e forma, na utilização de termos comumente associados ao vocabulário médico/hospitalar: “Fraturas do trabeculoso ósseo/ calcâneo/cuboide/ base do quinto metatarso” ou “como eu trilho o próprio corpo/ que eu não mais conheço/ concavidades manchas dores”. 


O livro é dividido em três partes: Lugar, Nós e Linguagens. Em Lugar, os poemas destacam cidades como Belo Horizonte, Paris e casas em que se viveu a infância. Em todo o livro, e nessa parte especialmente, há um tom de sabedoria, aquilo que se pode fazer do sofrimento ou durante o sofrimento: “Prefiro gente/ de calos a cantar/ todos os dias/ o sol da manhã/ & suas ilusões.” Comparece de modo recorrente a infância e seus amores, os objetos, sons, revistas, comidas, pessoas que constituem a memória do eu-poético. Perpassa a ideia de unicidade e singularidade da história pessoal, a forma insubstituível em que se dão os acontecimentos em nossa vida, porque carregados de afetos: “A casa é demolida/ o cuco voa// Na outra casa onde habitamos/ outro cuco entalhado/ made in Germany. / Apenas um cuco.”


No correr do tempo, há a constatação da mudança, como nos versos de Mementoaquele corpo já me esqueceu/ deste restam células multiplicadas”. A memória é central nesse livro. E onde há uma exacerbação da memória, há, por outro lado, o medo do esquecimento. Registra-se uma luta por mantê-la viva no sujeito, por proteção da identidade, o desejo de não se esquecer de quem se é. De um balanço geral, na conta entram os amores frustrados, os amores que se foram, mas em tom de aceitação. É da vida. Amor fati. No poema Desordem, a alusão ao título da obra de Paulo Leminski, Distraídos venceremos, reconhece o caos, mas não reconhece derrota: “Desordenados venceremos”. Em um trânsito entre os vocábulos, no vai e vem semântico e sintático, Lucas Guimaraens utiliza a palavra desordenados tanto para dar sentido poético, social, filosófico, coletivo, quanto individual e biológico. O corpo está imbricado em sua poesia, o corpo é o primeiro lugar do sujeito, onde se faz o sujeito. Não é à toa que toda ordem política quer controlar o corpo. É, então, um livro sobre o corpo. Lugar de memória, duração, precariedade e consumação de si. 


As três partes do livro se comunicam bem. Em Nós, o foco está em apontar a resistência, a decisão diante dos fatos: “Não morrerei sufocado. / Ainda que falte amor/ seguiremos. O estandarte/ de vidas singulares está/ fincado na porta de cada/ casa ou marquise”. Aqui o mote de Leminski é transformado pelo eu-lírico em “Abraçados seguiremos”. Percebe-se o chamado por companhia; neste sentido, há em Amarrar o corpo na lua uma valorização da fraternidade, da solidariedade entre as pessoas a fim de procurar antídotos para a solidão: “o poder de sermos felizes/ de mãos dadas”, referência também ao “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”, de Drummond. A imagem de células que se dividem desordenadamente, leva à constatação de um dividir a si em outros corpos, corpos que já se foram, corpo que ficou, corpo que novamente tem que se dividir para dar conta da vida “o primeiro corpo esquece que é corpo/ o segundo corpo é esperança e secas lágrimas”. A esperança, então, fincará bandeira no presente. Não é apenas porque o poeta Lucas Guimaraens descende de Alphonsus de Guimaraens que um dos poemas mais famosos do antepassado aparece referenciado no livro de Lucas. Ismália – sim, a inesquecível Ismália por todo sempre, tem sua aparição porque tanto para ela quanto para esse eu-lírico existe encantamento pela lua e uma tragédia ligada ao desaparecimento. Amarrar o corpo na lua, elemento poético por excelência, para não sucumbir à loucura ou à última tentação de Ismália; afinal, viver (com tudo dentro) é mesmo muito difícil e, antes de cairmos, já temos tantas fraturas. 


 Na terceira parte do livro, Linguagens, o eu-lírico se centra na falta. Psicanaliticamente, é ela que nos fará desembocar na linguagem. Os poemas metalinguísticos fazem homenagem à palavra: “Ela nos liberta/ sendo quase nada”. É preciso prosseguir sem saber as perguntas fundamentais que, se feitas, a humanidade também não saberia responder; já que não responde satisfatoriamente sequer as colocadas: “Os deuses dos jardins/ nunca disseram/ porque nascemos”. Nascer e morrer procurando o sentido e não encontrando, tendo que construir um. Aceitar, mas sem derrotismo: amor fati. Os poemas se encaminham para o final do livro relacionando o ato de escrever com a memória, como se a memória fosse (talvez seja) um palimpsesto: “pela memória que apaga e recomeça/ todos os dias”. O tema da solidariedade aqui continua, um apelo, um brado. Em Epifania, a referência a João Cabral de Melo Neto nos convoca a construir coletivamente: “como aquele/ que tece/ a manhã.” Em Órfão, aparece a dor relacionada com a perda da mãe, mas guardando a língua materna como sua maior herança. Linguagens afirma que a palavra ainda é insuficiente, mas é o melhor que se tem. Amarrar o corpo na lua é se amarrar à palavra e à poesia, estar amarrado como por um cordão umbilical. Amar, apesar do destino, a despeito do destino, por causa do destino.


Desordem 


Tudo será como antes

desordem


a casa cega empilhará

livros ao chão

desordem


uma orquídea resistente

de cuidados floresce 

no aparador

desordem


cheiro de sexo 

a postular desejos

de cama e chão 

desordem


tilintar de chaves

no pote ao lado da porta

e a vontade de fim de dia

desordem


o banho e a facínora

fome a devorar a comida

qualquer comida – da medula

até a boca (eventualmente

passando pelo estômago)

desordem


lábios fechados

como a cozinha sem

pratos limpos

caminhar sem trilhos

sem sinal fechado ou abismo

um flâneur pousa no parapeito

e repete: nada mais

nada mais.


Desordenadamente venceremos.



Abraço


Não morrerei sufocado.

O almoço guarda tropeços

entre o mercado e a panela.


Uma planta azul compete

com este céu caleidoscópico.


Há um sapo na esquina

e conversa com uma coruja.

Observam vidas miúdas.


Não morrerei sufocado.

Ainda que falte amor

seguiremos. O estandarte

de vidas singulares está

fincado na porta de cada

casa ou marquise.


Não morrerei sufocado

entre canos de ar-condicionado

entre mãos de matar esperanças.


Aguardo fios de Ariadne

e tecerei cabanas no jardim.

Buzinas de homens cinzas – 

somente estas – não serão aceitas.


Órfão


De um lado mãos mortas

e o órfão.


Seus olhos fechados

como os da mãe inerte

(mas chora)


não sabe de seu corpo

será adulto naquele dia

vocabulários indesejados

comporão seu dicionário

não mais cairá

tão profundamente

para machucar


seus dentes estarão compostos

e mastigará a roda dos dias

proferirá palavras

como se fossem amigas

em meio ao vácuo solidão


o tempo o guiará pelas palavras

como se elas fossem seu cordão umbilical.

E serão.



*** 


Amarrar o corpo na lua

Lucas Guimaraens

Poesia

7 Letras

2022



Lucas Guimaraens
 Em poesia, lançou em 2011, pela 7Letras, Onde (poeira pixel poesia), e em 2015, pela Azougue Editorial, 33,333 – conexões bilaterais. Também é autor do livro de filosofia Michel Foucault et la dignité humaine, publicado em 2014 pela editora parisiense L'Harmattan. Exílio – O Lago das Incertezas [Relicário, em 2018], Exil – le lac desincertitudes [Éditions L’Harmattan, 2018] e L’ écriture poétique comme patrimoine immatériel de l’humanité [Éditions L’Harmattan, França (filosofia), 2022]. Mineiro de Belo Horizonte, 44 anos, além de poeta, é produtor cultural, diretor de relações institucionais, bacharel em Direito no Brasil e mestre e Ph.D. em Filosofia Política e Estética em Paris, França. 






Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)