A mãe quase perfeita, crônica de Sara Klust

 por Sara Klust__




                             
Oito anos do falecimento de minha mãe, no próximo nove de junho. Noventa e seis meses sem nossas conversas ao telefone e sem ouvir seu riso contagiante, sobretudo quando lembrávamos dos “aperreios” que causei na infância. Quase três mil dias, o bastante para atenuar a saudade. Mas não é o caso, a falta que ela me faz é constante.


Eu nunca quis seguir seus passos. Não queria ser como a jovem que, aos 18 anos, se anulou quando abandonou o emprego, casando-se e vivendo inteiramente para o marido, depois para os filhos. Como a senhora suporta fazer sempre a mesma coisa?, indaguei certa vez. “O amor me dá forças.” De fato, só mesmo esse nobre sentimento motiva uma pessoa a levantar cedo, preparar café da manhã, levar as crianças, sob sol ou chuva, à escola, limpar casa, costurar, lavar, engomar, fazer almoço, cuidar do jardim, ajudar os filhos com as tarefas escolares, colocá-los à noite na cama e ainda se fazer de cega diante das escapadas do marido, pois a separação seria o fim do bem-estar de sua família. Durante minha infância, lembro-me da ocasião na qual ela contratou uma diarista. Um “luxo” que não perdurou, pois a trabalhadora doméstica, após um desentendimento com o marido, entrou para a lista das vítimas do feminicídio em Pernambuco. Portanto, com exceção desse curto período de auxílio, Mãe trabalhava todos os dias arduamente, sem grandes reclamações nem exigências.


Quando penso em minha mãe, vejo-a em seu conjunto de bermuda e blusa de mangas curtas, de tecido leve e florido, como se vestia em casa, diante do fogão. “Menina luxenta!”, se queixava das minhas “frescuras” alimentares, mas cedia, separando para mim o pedaço de carne sem nenhuma gordura, o peito de frango sem pele ou fazendo o mingau de amido de milho com canela que eu amava. Criança, sofri de asma alérgica, e embora os medicamentos aliviassem meu tormento, o verdadeiro refrigério era Mãe ao meu lado, sentada à beira da cama, o bálsamo naqueles momentos de crise. Na adolescência, quando aflorou em mim e nas minhas irmãs o interesse pelos rapazes, passávamos horas, elas e eu, relatando à Mãe nossas conquistas e frustrações amorosas. Ela nos ouvia com interesse e tinha sempre uma palavra acolhedora. Não ditava regras, apenas aconselhava. Até mesmo para meu irmão caçula, Mãe foi uma grande amiga.

 

Depois da morte de Pai, desejei que ela finalmente olhasse mais para si. As crianças tinham crescido e já estavam fora de casa, a pensão de viúva de militar permitia-lhe viver sem problemas financeiros e, morando sozinha, os afazeres domésticos já não a sobrecarregavam. Mas ela não abandonou o posto, passando a cuidar dos netos e dos animais de estimação dos filhos, para que estes pudessem trabalhar sem receios. E assim, com o tempo voando à jato, ela nem percebia o quão pouco via do mundo. Fora dos limites do bairro onde morava, em Olinda, ela conhecia apenas alguns locais do Recife, duas ou três cidades do interior do estado e Natal, no Rio Grande do Norte, na ocasião da única viagem de férias que fez com meu pai. Nem mesmo a Alemanha, onde moro há quase três décadas, ela conheceu. Talvez por receio de não estar por perto quando alguém precisasse dela. Nego-me a crer que Mãe nunca teve interesse em vivenciar coisas realmente diferentes da sua rotina, ela apenas cumpria à risca o papel que a sociedade brasileira patriarcal impôs às mulheres de sua geração.


Minha mãe, que se dedicou à família e amou os filhos incondicionalmente, foi quase perfeita. Falhou apenas num único ponto: não ter priorizado seus próprios desejos.



Sara Klust 
- Graduada em Comunicação Social, trabalhou nas rádios Cidade e Manchete FM, na assessoria de imprensa do DETRAN e no Jornal do Commercio, antes de se mudar, em 1994, para a Europa. Em 2020 publicou Um novo começo em Hamburgo, e, em 2022, A mãe brasileira, disponíveis apenas na Alemanha e Áustria. É uma das organizadoras da antologia de contos Tinha que ser mulher, cujas vendas são revertidas à Associação Fala Mulher. Mora com o filho e o marido na região do Vale do Ruhr, no oeste do país.