Lúcida de dormência | Muriel Cristina Vieira

 

por Muriel Cristina Vieira__


Foto: Mário Moreira


27 de abril de um ano qualquer (não me importa e tampouco o fará para quem vier a ler esse papel de pão). Outono. O dia está um pouco frio, mas há sol.

 

Faz exatos 74 dias e 5 horas e que estou repousando neste sanatório. Sanar a Insana! Não posso evitar o jogo de palavras. Para ser justa, não é que estejam me mantendo aqui contra a minha vontade, muito pelo contrário. Minha filha, minha doce e gentil Madalena, todos os dias deixa a casa e o marido aos cuidados da governanta velha e corpulenta para, por algumas horas, vir ao meu encontro. A cerca de um mês tivemos nossa primeira conversa sobre meu estado mental, minhas mágoas e meu medo de retornar ao mundo despedaçado que me aguarda do outro lado das grades da janela.


- Mamãezinha, vamos lá! Você sempre adorou as tardes de Outono, por que não damos uma caminhada pelo jardim?...Não, não começou a esfriar ainda, posso garantir que você não irá se resfriar! O pôr-do-sol está alaranjado, como você gosta...vamos lá, só alguns minutos, que tal? Você precisar reagir, mãezinha...


Reagir é uma palavra ardilosa para se aplicar à minha situação.


Foi a 75 dias, não sei quantas horas e tanto faz quantos minutos que me entreguei aos disparates do destino e, cansada de trancafiar minhas angústias, surtei. Ensandeci, completamente, e libertei impropérios raivoso e movimentos violentos que há muito tempo amargavam dentro de mim, como restos de comida embolorados no fundo de um armário velho. Tudo o que fiz foi reagir, esse é o problema.


Na noite anterior houve o tal chá com as madames finas da Associação pela Arte e Cultura. Juro por Deus que recorri a todo tipo de desculpas, mas meu fracasso foi pleno. Primeiro havia uma reunião qualquer com a senhora nº1 que eu não poderia adiar, mas logo disseram que ela também viria para a pequena reunião e, assim, eu poderia falar o que precisasse lá mesmo. Depois – que lamentável –, precisava finalizar um texto para a publicação no dia seguinte e seria impossível adiar. Achei que dessa vez a questão estava resolvida, mas recebi um telefonema da revista, poucas horas depois, dizendo que a senhora nº 4, benfeitora de longa data, havia pedido que adiassem minha entrega em nome de um evento importante. Como não puderam recusar, lá se foi minha outra justificativa. Estava prestes a apelar para um problema de saúde qualquer, nojento o suficiente para que ninguém mais me importunasse, quando, de repente, me ocorreu aquele sentimento.


É como um pesadelo que se repete todas as semanas, duas ou três noites, onde estou caminhando em uma corda sob um abismo. A linha abaixo dos meus pés tem a grossura de dois ou três dedos e parece muito desgastada. Para auxiliar meu equilíbrio, seguro uma vara longa entre meus braços e avanço com prudência, tentando evitar o espaço abaixo de mim, tão alto que torna difícil distinguir o que se passa no solo. Enquanto caminho, colocando um pé vacilante à frente do outro, sinto um puxão na ponta esquerda da vara e, de repente, lá está uma criança pendurada. É o filhinho vermelho e irritante dos Medices, aquele que puxa as orelhas dos cachorros e bota os dedos babados na comida dos outros sempre que se senta à mesa. Filipe, Fernando...não sei, nunca me dei ao trabalho de decorar seu nome.


Ele mexe seu corpo para a frente e para trás, comprometendo o peso da vara e ameaçando minha empreitada. De repente, outra força empurra a ponta direita da minha vara, e qual não é minha surpresa ao ver a velha governanta de minha infância, com sua cara embotada, chacoalhando a haste e me repreendendo por estar caminhando tão displicentemente naquela corda bamba.


Rapidamente, surgem as primas madames, filhas de minha tia Cecília, retocando suas maquiagens exageradas e recriminando meus lábios pálidos, e o cachorro grande que dorme abaixo da marquise na rua principal, latindo de maneira enfurecida. De pronto, sinto minha vara envergar, prestes a se partir com o peso exagerado que é depositado em cada lateral. Faço uma força descomunal para manter o equilíbrio enquanto suporto a todos que se penduram, balançam e remexem no ar, mas de tanto atentar para aquela cena bisonha, não me dou conta de que os fios tecidos da corda se rompem e, rapidamente, vejo a mim e todos em uma queda livre vertiginosa. Já não importa mais se há uma vara, um cachorro ou um bebê: todos estamos prestes a nos espatifar como um pudim que paira na beira da mesa de jantar.


            Curiosamente, o chão parece nunca chegar e, enquanto descemos, todos me olham com julgamento, recriminando o momento em que não percebi o ruir que estava por vir.


            Desperto com um grito preso na garganta, pois sinto que não me pertence o direito de brandar. O rosto sempre pálido, as pernas embebidas em suor, o quarto tão vazio a ponto de me esquecer que minha própria vida reside ali – a de meu marido já não ocupa a casa a muitos anos. Levo alguns minutos para conseguir me movimentar e meu corpo se retese e arrepia e esfria e, então, aquece novamente. É como se minha pele já tivesse degenerado antes mesmo de minha sanidade. A loucura já morava ali, nos meus poros e nos meus pelos, nos calafrios que eu sentia desde a tenra idade.


            Soma-se ao alarido físico uma breve tontura, como se eu houvesse mergulhado em águas salinadas e não fosse capaz de controlar a velocidade dos meus movimentos. Um enjoo me toma conta, revirando meu ventre em uma quadrilha pobretona encenada por meus órgãos. O mundo todo parece disputar uma cadeira dentro de mim e, obviamente, acabo me sentando no chão. Em geral, levo cerca de trinta minutos e muitas respirações ritmadas para conseguir, enfim, me levantar e seguir com meus afazeres.


            Assim, disfarçando meus rompantes sob a desculpa de “uma dorminhoca que sempre demora para levantar pela manhã” fui capaz de passar despercebida por alguns anos, escondendo meus pesadelos, a raiva que brotava deles, como uma mina d’agua pura e límpida, e uma tendência descarada ao isolamento e introspecção. Essas coisas me cabiam como calças velhas a uma donzela.


            Naquela noite, enquanto sorvia o chá de folhas amargas nas poltronas estofadas e forradas que decoravam a Associação, pressenti que meu sonho mau espreitava o sono que viria em breve. Muitas vozes, risadas sufocadas que, ao pretenderem-se sutis, soavam como roncos de um pulmão catarrento. O universo resumido ao preço aproximado que deveria ser arrecadado para a caridade. É curioso como não existe lastro em ouro que se compare ao valor de uma imagem bem construída sob a figura de uma viúva bondosa e cheia de amor pela humanidade. Ah, a caridade...


- Carmem! Teu rosto parece uma peça do Madame Tussauds! Que sorriso congelado é este, mulher? Venha para cá, nos ajude a opinar sobre a escultura do senhor Lorenzo.


            Por obra daquele apelo, fui obrigada a abrir minha porta e por os pés para fora do mundo interior. A escultura tinha seu quê de moderna, ou minha ignorância já não podia mais ser confundida com um requinte seletivo, pois, honestamente, nada ali me parecia fazer sentido. No centro, um espelho de qualidade questionável era envolvido por uma massa colorida e disforme de argila cozida, pintada posteriormente com óleos de tons fortes que misturavam-se, formando um cenário um pouco onírico. Salpicadas em todas as direções, havia pedrarias de plástico e vidro, douradas e prateadas, que lembravam alguma cena de viagem no tempo, onde há objetos vários dispersos no espaço.


            A coisa toda não me dizia muito e parecia um projeto de baixo custo, mas o segredo parecia residir no conceito.


- Veja Carmem, é fantástico! Olhe lá, o que você vê?


            Eu via um golpe se formando, visto que cobrariam um valor absurdo por aquela porcaria. - Não sei, me vejo no espelho. O que é que isso deveria querer dizer?


            Não tive tempo de ouvir a resposta. Mirar ininterruptamente aquela imagem, uns olhos vazios, uma pele pálida, um universo pessoal aprisionado por bijuterias, cores artificiais e uma massa grudenta que mantinha tudo aquilo convergindo para o centro. Aquela situação me revirou a cabeça. O meu pesadelo já estava ali, prestes a irromper no meio de uma noite de quarta-feira, com os olhos bem abertos.


            Depois disso, me lembro de muito pouco. O bule de chá estava no chão, as folhas foram despejadas em cima da senhor nº1. O espelho, num relance, estava partido, e eu me via muito pequena, o atravessando por meio das rachaduras. Acordei em uma manta muito quente e confortável, estranhamente relaxada.


            Desde então Madalena tenta me convencer a voltar para casa e sempre invento a descrição de um sonho estranho, um tremor que não sou capaz de explicar ou simplesmente observo o horizonte de olhos vazios, como se não estivesse presente de fato. Ela se desespera, pobre coitada, diante de uma mãe delirante, sem imaginar que o silêncio dessas paredes me protegeu de mim mesma tão calidamente que se tornou insuportável pensar em retornar para a corda bamba, com todos os pesos forçando a minha lucidez, prestes a se partir.


            Fui feita para o vazio dessas paredes brancas, onde, ironicamente, ninguém espera que eu seja sã. Justamente por isso, me sinto mais ajuizada do que jamais o fui.


            Recebo constante as flores coloridas das distintas damas da Associação, ansiosas pela minha recuperação. Certo dia foram rosas vermelhas da senhora nº 4, de quem menos eu gostava – e sabia que a recíproca era verdadeira. Num relance, tomei os botões pelo caule e rapidamente abocanhei as pétalas. Minha filhinha estava comigo e desesperou-se na hora, começou a chorar vendo a mãe (como é possível?) comendo as flores. Ninguém jamais se arriscou a mastigar algumas rosas por medo da reprovação social, mas se o fizesse concluiriam que elas são deliciosas! Talvez, é possível, o sabor seja resultado de um ato livre de loucura. Pouco importa.


            Hoje, sentindo uma pontada passageira de culpa, aceitei observar o pôr-do-sol outonal. Me enchi de vida olhando os demais pacientes que repousam ao meu lado, aproveitando os minutos de liberdade que antecedem o seu retorno ao quarto.


            Eu não quero sair dele e, quando penso nisso, deduzo que estou no lugar certo. Somente uma mulher louca devotaria seus dias a um isolamento social autoimposto, enquanto todos os outros são tão felizes andando nas ruas sujas de fuligem. Não é mesmo?

 




Muriel Cristina Vieira
- Graduada em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Eflch/Unifesp), com ênfase em História Moderna e História da Justiça e do Direito, onde integrou o Núcleo de Estudos Ibéricos e o Centro de Pesquisa em Probabilismo e Retórica Jurídica (CEPPRO). Escritora, pesquisadora e apaixonada por Literatura.