Morri em 2020, um conto de Adriano Espíndola Santos

 por Adriano Espíndola Santos__


Foto: Tim Mossholder


Um dia em 2020. Estava trancado em casa – não é exagero, é real! –, tomando o que me restava de uma bebida maldita. O telefone falhou quando ia ligar para o meu irmão Aluísio. Talvez tenha sido bom não completar a ligação, porque ele me descascaria: “Não te avisei, moleque irresponsável… Agora fodeu, fodeu!”. Ele me tratava assim, como um menino mimado – meia-verdade: só até a morte de dona Fátima, nossa mãe. Como não tivemos pai, e ele era cinco anos mais velho que eu, me relegava à condição de menino, ou pior, porque me comparava aos seus filhos, questionando em que tinha falhado, sobre mim. Nunca fui um terço do que ele falava. Tenho os meus conflitos. Se não morri, devo muito a ele, que vinha me tirar dos delírios, quando em sempre. Bem, a bebida de que falei tinha gosto de vinagre e álcool puro, mas era a forma que queria me matar, sofrendo, corroendo tudo por dentro. Grande erro: passei dois dias mal, além dos sintomas da doença. Aluísio veio me ver, todo paramentado, como se tivesse saído de um campo de guerra. Sim, ele vinha do hospital, onde trabalhava como médico intensivista. Disse que teve uma premonição. Que Luana, sua esposa, teria acordado com gosto de sangue na boca. Que os sonhos batiam, o dele e o dela, alertando para a morte iminente. Sobre Luana, não tenho muito o que falar: ela, sem pôr as mãos no crime, queria me ver morto, há anos. Aluísio ficou transtornado quando me viu. Passou um sermão daqueles, que daria para umas quatro missas. Para não perder o costume, me chamou de irresponsável; disse que lavaria as mãos comigo (mentira, o papo de sempre); que eu tinha idade para ser pai dos filhos dele (já sabia); que os filhos nunca lhe deram trabalho; que eu só dava vexame; que ele não queria me ver sofrer (e aí chorou). Descrevi o que estava sentindo, e ele me deu uns remédios; atestou que poderia ser covid e que teria de acompanhar a minha oxigenação; caso necessário, me levaria ao hospital. Chorei todo o resto do dia. Ele me deixou com ares de despedida. Saiu chorando, me pedindo para que, só uma vez na vida, levasse a sério a saúde. Meu irmão estava na linha de frente e eu não sabia. Não deve ter dito para não me preocupar. Ele sabia da importância que tinha para mim, a única pessoa com quem podia contar. Moro em nossa casa, a casa de mamãe, há quarenta e sete anos. Cuidei dela até o finzinho, muito mais do que um filho deve a uma mãe, fiz por mim, por ele e por ela, por nossa sobrevivência. Com a morte, o mundo desabou: perdi o emprego de operador de máquinas; tentei prestar concurso e falhei pela falta de concentração; trabalhei numa firma de contabilidade e, segundo o dono, por eu não ter formação na área, teve de me demitir para um novinho entrar no meu lugar. Conheci aí a cocaína, que usava com os tostões que Aluísio me dava. Ele descobriu e resolveu trazer o mercantil, e eu, com as dores da abstinência, vendia e ia comprar droga. Meu irmão me privou da vida, me colocando numa masmorra camuflada de clínica de reabilitação. Fiquei quase um ano. Não me converti ao deus deles, porque me jogavam muitas pragas. Saí das drogas por medo de ser novamente preso. Já não tinha tanto frenesi para consumir. Mas lutava para não cair nessa de novo. Aluísio, então, me deu dinheiro mais uma vez, algo que chegava somente para as compras básicas; disse que, se eu “malversasse”, me daria apenas pão e água, até criar jeito de gente. Fui muito humilhado, mas o amava muito, mais que a um pai, suponho. Ele, sim, era a minha divindade, meu deus. Quis retomar os estudos; ele pagou matrícula e mensalidades, sentindo que as coisas voltavam aos trilhos. Mas me tornei bastante introspectivo, doente, deprimido. Não conseguia estudar. Tranquei o curso por medo e desânimo. Ele entendeu, milagrosamente; contratou uma psicóloga para me acompanhar e me levou a um médico amigo dele, psiquiatra. Tomei, no início, muitos comprimidos para me levantar. Dez meses depois é que senti uma ligeira melhora. Comecei a namorar a Fabíola, uma amiga do bairro, da época da escola. Havia um amor adormecido, desde quando tivemos um namorico ingênuo, respeitoso. Não durou um ano, como tudo que me acontece. Ela alegou desleixo, para decretar o fim. A grande questão é que ela queria se casar, porque estava com a idade avançada (43 anos), e não tinha tempo a perder com um “desocupado”. Esta foi a minha leitura. Desencanei rápido dela. Contudo, a desgraceira voltou e tive de aguentar mais uma reviravolta no tratamento… No dia da visita de Aluísio, já sabia da gravidade da covid e com certeza tinha pegado a doença no Centro da cidade, onde resolvi trabalhar vendendo bugigangas, escondido dele. Precisava me virar; ele resmungava por ter de me sustentar em tudo. Jamais poderia dizer a ele que trabalhava com isso, que desci ao subsolo do fundo do poço. Em agosto de 2020, num dia pior que os outros, Aluísio foi internado com sintomas graves da doença. Com seis dias, foi entubado. Com dez, não resistiu. Não pude ver o rostinho dele, o caixão estava lacrado. Luana não falou nada, mas seu olhar decretava que me queria longe do sepultamento. Meus sobrinhos sequer olharam para mim. Voltei à casa de tantas agonias. Olhei para o céu, contando que meu irmão estaria, agora, com minha mãe; que era mais uma estrelinha ali. Por que Deus não me levou, já que não sirvo para nada? Por que levaria meu irmão, uma pessoa tão útil à sociedade? Além de tudo, sou covarde, escrevo, escrevo e não saio do lugar. Morri em 2020. É um peso terrível arrastar este 2022.




Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram:@adrianoespindolasantos | Facebok:adriano.espindola.3 email: adrianoespindolasantos@gmail.com