por Taciana Oliveira__
Em Um Inverno de Cada Vez, Rosa Morena apresenta uma coletânea de contos que mergulham nos invernos íntimos de personagens dilaceradas pela dor, pela memória e pela solidão. Com uma escrita intensa, a autora cearense cria atmosferas de confissão, em que cada narrativa parece sussurrada ao ouvido do leitor.
É uma obra que ultrapassa a classificação simplista de livro de contos. A autora constrói um tecido narrativo feito de interlúdios, fragmentos confessionais e atmosferas densas, em que cada texto funciona como estação emocional, um inverno íntimo a ser atravessado. Com lirismo enxuto, a autora cearense nos conduz por histórias onde o sofrer não se faz espetáculo, mas matéria de humanização.
As personagens — que ora se definem, ora se desfazem — são narradoras de seus próprios abismos. Não importa se são homens, mulheres, jovens ou velhos: o que interessa é a partilha de um “radical humano”, como aponta o escritor Renato Pessoa em seu prefácio, que nos iguala na dor e no desejo de redenção. Rosa Morena escreve a partir dos escombros, mas suas narrativas não se contentam em contemplar a ferida — elas a traduzem em cumplicidade. “Aqui, eu e você, a mesma carne”, parecem dizer todas as vozes.
Em contos como “Estilhaços”, “Labirinto”, “No tecido da pele”, “Pânico” e “Que ninguém me leia”, vemos uma escrita que se desnuda com coragem, que estetiza a dor sem a tornar retórica. Rosa tece cenas íntimas com um cuidado quase obsessivo, convidando o leitor para a vizinhança de angústias que, embora ficcionais, ressoam como verdade vivida. Há uma recusa clara à eloquência infértil: tudo é dito com precisão, com frases simples que carregam o peso da existência.
A estrutura narrativa se fragmenta, desafia o gênero. É conto, mas também é crônica, é diário, é poesia. Os textos dialogam entre si — não apenas nos temas, mas no tom, na textura, na ressonância emocional. As personagens não são definidas pelo fim, mas pelo trânsito. A solidão, longe de ser destino, é ponto de partida. O amor, longe da idealização, é presença concreta, rotineira, por vezes falha, mas profundamente real.
A autora alcança algo raro: dar forma literária ao indizível. Seus textos são doídos, sim, mas não dolorosos. São confissões sussurradas entre as frestas da palavra, como nas narrativas “Diante do Divino”, “Blecaute” e “Riso Amargo”, onde a fragilidade e o desencanto se transmutam em beleza. Entre perdas, abusos, silêncios, memórias e pequenos gestos cotidianos, Rosa Morena imprime uma escrita de resistência poética — uma ode à intimidade como território político e existencial.
Os contos transitam entre o cotidiano e o simbólico. Em “Do Lado de Dentro”, acompanhamos uma mulher que observa o mundo da praça enquanto tenta apaziguar tempestades internas. “À Deriva” e “A Solidão da Dor” falam de perdas, de traumas silenciados e da tentativa de reconstrução sobre escombros emocionais. “Carolina” é uma das narrativas mais pungentes do livro, com desfecho trágico envolvendo uma mãe e sua filha.
Há espaço para o metafísico em “Diante do Divino”, onde Deus surge como um abraço materno. “Estilhaços”, “Labirinto” e “Meu Querido Confidente” abordam os impasses do convívio afetivo. Já “No Tecido da Pele” e “Nota de Pesar” evocam memórias corporais, perdas e culpas profundas. Em “Paixão em Movimento”, o amor floresce nos encontros de ônibus e livros esquecidos, enquanto “Pânico” expõe as rachaduras da dor e da reconstrução psíquica. “Que Ninguém Me Leia” é uma ode à escrita como forma de sobrevivência. “Riso Amargo” e “O Suor dos Tempos” capturam o peso da idade e das feridas do cotidiano. “Uma Nova Personagem” encerra a obra com a imagem de renascimento silencioso.
Narrado majoritariamente em primeira pessoa, o livro convida à empatia e à partilha da dor, mas também à reinvenção. Com lirismo contido, sem apelos sentimentais, Rosa Morena entrega uma obra intensa, marcada por uma escrita madura, honesta e profundamente humana. Cada conto é uma estação de frio necessário — uma travessia que, ao final, nos prepara para a primavera. Rosa Morena não somente depura seu estilo, mas reafirma sua voz como poeta, contista e cronista de uma literatura que se compromete com a verdade da emoção e com a profundidade da experiência. Tudo há de se refazer, mesmo sob a chuva — mesmo que seja preciso atravessar, como ela nos convida, um inverno de cada vez.
Abaixo segue o trecho do conto “Que ninguém me leia”:
"Tenho medo de enfrentar os meus escuros. A coisa mais ousada que fi z, foi sair da minha cidade para estudar Matemática. Foi aí que nos conhecemos. Ao contrário da minha mãe, ela me admirava. Ficava sentada no sofá enquanto eu tocava, e dizia que gostava mais das claves de sol do que das equações lineares. Aprendi a tocar aos 16 anos. Incomodava os tímpanos da minha mãe. Lembro-me da discussão que tiveram quando o meu pai resolveu me presentear com um violão. Eu fugia para o quintal com as mãos trêmulas.
Sempre me incomodou a forma com que Clara tinha de se aventurar nos mergulhos. “Relaxa, eu sei nadar!”, dizia enquanto entrava na água e me aconselhava a tomar água de coco para não desidratar.
Hoje, comecei a escrever no caderno e tenho medo de que alguém possa ler o que escrevo. Só falo de dor e de ausência. O meu corpo dói e se encolhe no sofá.
A bicicleta dela está na sala. Penso que ela sairá do quarto me dizendo que vai dar uma volta. Um instante de pensamento e a vida mostra outra paisagem. Ela se foi, escrevo no caderno. Ela se foi, repito. E se eu voltar para a casa da minha mãe?"
Lançamento
Um inverno de cada vez
Dia: 29 de maio de 2025, 19h
Local: Shopping Benfica