Desconfie de quem não gosta de gente, de bicho e de planta

 por Luiz Henrique Gurgel | 

22/02/2024REUTERS/Mahmoud Issa


Tentei puxar da memória — não consegui — o nome de um filme em que nazistas ou fascistas invadem um vilarejo no interior da Europa, na Segunda Guerra, e executam civis, animais e tudo o que tinha vida. Perdão pela sanguinolência logo de cara e a que vem a seguir, mas é que ando em choque ultimamente — eu e uma enorme parte da humanidade — com o massacre de tudo o que é vivo em Gaza.

Fez lembrar outra história medonha, mais recente, em 2018, que aconteceu aqui em Pindorama mesmo. Um grupo de simpatizantes do inominável ex-presidente que usa tornozeleira eletrônica, futuro presidiário, matou a tiros o vira-lata de uma senhora durante motociata de campanha no interior da Bahia. Ele estava latindo muito, justificaram. Um dos sujeitos parou, desceu da moto ou do carro e atirou três vezes. A dona implorou: “Não atire, não atire!”. O bichinho correu para morrer dentro de casa. E nem é preciso explicar porque relaciono uma barbárie “menor” à outra, gigantesca, para além do horror.  

Não descobri o nome da dona do totó assassinado. Ele era o Marley. Para humanizar esta senhora, vou chamá-la dona Ester, homenageando uma velhinha judia-polonesa que conheci anos atrás e que, com o marido, amava vira-latas. Hoje, tenho convicção, teriam vergonha e odiariam o outro inominável que governa Israel.

O Marley devia saber — mais que muitos humanos — que aqueles homens gritando “mito! mito! mito!” não eram boa coisa. Imagino que dona Ester, a da Bahia, ao batizar assim o cão, sonhava com um companheiro de quatro patas brincalhão, irrequieto e amoroso tal qual o da comédia gringa “Marley e eu”, mais que provável inspiração para o nome do caramelo.

Também na minha família quase todos amigos e amigas de quatro patas lá de casa tinham nomes de cães famosos. A Laica homenageava a mártir do programa espacial soviético; o irrequieto Benji e o fofo Dandy, personagens de filmes. A tradição foi implantada pela minha avó materna, Alexandrina. Todos os seus cães tinham nomes de personagens de faroestes norte-americanos, Ted, Bob, Jack, tão fiéis que a acompanhavam pela rua onde quer que fosse, inclusive nos ônibus que tomava. Por vezes teve de descer no meio do caminho quando o motorista percebia os marotos — que não pagavam passagem — escondidos sob o banco em que ela estava. O último deles, o velho Dick, fiel até o fim, não apenas esteve no velório como permaneceu o tempo todo debaixo do caixão da minha avó. Acompanhou o cortejo ganindo baixinho até a beira da sepultura.

Com as imagens de crianças e cães esqueléticos pela fome em Gaza, ou abatidos sadicamente a tiros de fuzil por desumanizados soldados israelenses, quando chamados para buscar comida, volto a imaginar o que a dona Ester lá da Bahia deve ter sentido ao ver o seu querido Marley morrer apenas por latir atrás da fuzarca de fascistas.

Tudo isso para dizer que não me esqueço, jamais, do que ouvi numa conversa com a dona Ester — a judia-polonesa — e seu marido, apaixonado humanista, algo que já citei noutra história. Ela e ele me disseram com a delicadeza de amorosos seres humanos: “Desconfie de quem não gosta de gente, de bicho e de planta”. 





Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e “Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023).