Dois vazios | conto de Valéria Macedo


                                                  
Ela precisava de um livro em suas mãos para não se sentir só. Todos os dias, ao buscar sua filha na escola, escolhia um título que preenchesse um pouco de suas faltas. O livro era companhia, conversa, suporte, esconderijo e escudo. 

Naquela tarde, seguiu o mesmo trajeto, com o mesmo livro do dia anterior. Nos jardins das casas por onde passava, não havia surpresas, nenhum pássaro desconhecido cantava, nenhuma flor nova desabrochava, nenhum objeto curioso perdido, ninguém para observar pelo caminho. Em seu avesso, cada passo na calçada era orquestrado por uma música melancólica que lembrava seu pai. Naquele dia, contava vinte cinco anos de sua partida. 

Atravessou a rua sem olhar para os lados. Ao contornar a esquina, avistou o amigo. Seu único amigo. Assim como ela, ele era sempre pontual. Iria buscar o neto que tinha a mesma idade de sua filha.

Um senhor sisudo, muito alinhado, esguio, com roupas discretas e muito folgadas. Suas pálpebras frouxas não escondiam os olhos esmeralda, esbugalhados e vivos. Algo nele a fazia mais próxima das memórias de seu pai. Talvez na forma de cruzar as pernas, na fala mansa ou simplesmente na gentileza de querer estar com ela.

Ao avistá-la, sorriu. Exibiu os dentes grandes e fortes, separados por um folgado diastema. Acenou. Assim como ela, carregava um livro. Um livro de poemas em francês, sua língua materna.

Ela soltou o ar pela boca, aliviada. Fazia semanas que não se encontravam. Na idade dele, a saúde é delicada, qualquer doença corriqueira pode fazer estragos catastróficos.

Foram os livros que iniciaram a primeira conversa entre eles.  Sentavam-se sempre na mesma mureta da escola e liam. 

Ele havia se mudado para a casa do filho há alguns meses. Morava em outra cidade. O amor de sua vida toda havia adoecido e partido, após sessenta anos de união. Ao falar sobre a esposa, os lábios tremiam e a voz espumava feito onda que quebra. Se casaram no Haiti quando tinham somente dezessete anos. Era bonito escutá-lo contando como havia sido edificar uma vida com a esposa, construir uma família e criar os três filhos em um novo país. Era possível reconhecer a admiração e o orgulho pela história de vida do casal no tom de sua voz.

Ela sabia que, de alguma forma, ao perguntar sobre sua esposa, ela a fazia mais presente na vida do amigo e a trazia para aquela mureta e, por alguns segundos, o fazia mais feliz. Certamente, ele carregava o desejo de tê-la ao lado e a imaginava no abraço apertado que recebia todos os dias do neto na saída da escola. 

Um dia, ele mostrou uma foto dos dois e confessou manter bem guardados vários pedacinhos de papel com poesias apaixonadas escritas para a esposa. Um segredo compartilhado que aproximou ainda mais aquela amizade que crescia a cada tarde em que se encontravam. 

Ele, um senhor sábio e experiente, via o mesmo entusiasmo na voz da amiga, sempre que ela falava com saudades sobre o pai. Partilhou inclusive a famosa receita de pipoca com bacon que seu pai preparava nas noites de sábado. Pipoca tingida de vermelho para compensar a fraqueza do molho de pimenta. 

Como imaginar que pessoas de histórias tão diferentes se encontrariam e seriam conforto para os seus vazios?

Ela cruzou a rua e se aproximou dele, curiosa. Estava muito contente por encontrá-lo tão bem. Sua imaginação havia a levado para fazer passeio pelas piores fantasias que justificariam a sua ausência: teria ele se acidentado? Subido em um banquinho para alcançar um pote de açúcar e o banco virado? Ou sido atingido pela bola de basquete arremessada com toda a energia do neto? Estaria ele no acidente de ônibus que leu no jornal do bairro? Ou acamado graças a uma pneumonia, após aquela tarde de ventos cortantes na última vez que o viu na saída da escola? Estaria ele vivo? Ela se preocupava, como se preocuparia com seu pai.

Se aproximou dele e percebeu que discretamente ele deu um passo para trás. Apesar do sorriso aberto ao avistá-la do outro lado da rua, ao se aproximar, se mostrou surpreso e apreensivo. Ela contou de sua preocupação quando não o encontrou na escola e questionou sua ausência. 

Ele então juntou os pés, esticou os braços e uniu as mãos que seguravam o livro em frente ao corpo, como se encontrasse posição que lhe desse mais firmeza, apesar de transparecer certo nervosismo.

Seu semblante mudou. O sorriso se foi e, com um olhar muito sério, olhou com intenção para o rosto da amiga. Pausou. Parecia escolher palavras dentro dele.

Ela, como quem está diante de um espelho, se postou como um reflexo, também aquietou o corpo, fez silêncio e aguardou curiosa o que viria dele. Abraçou o livro na frente do peito, sem saber bem por quê. Sentiu vontade de se proteger.

Ele então pediu desculpa por não ir conversar com ela naqueles últimos dias. Disse que sempre compareceu à saída das crianças, porém estava do lado oposto do portão da escola. Disse tê-la visto todos os dias. Acompanhou seu caminhar tarde após tarde, sempre colocando atenção se ela viria com um livro e qual seria. Mas que não sentiu coragem de se sentar ao lado dela. 

A cada palavra dita, mais altas as sobrancelhas dela ficavam. Inclinou a cabeça, como se ela pudesse escutar de outra forma aquilo que ouvia e nada entendia.

E ele prosseguiu a explicação, parecendo cada vez mais e mais aflito. Agora ele segurava o livro e o apertava, transformando-o em um rolo.

Finalmente, ele disse que os encontros entre eles já não poderiam prosseguir. Algo de errado acontecia.

Ela balançou a cabeça como se discordasse ou quisesse desembaralhar os pensamentos confusos que se confrontavam dentro dela.

Ele então disse:

_ Minha admiração por você cresce a cada tarde  que te encontro. Gosto demasiadamente do tempo que passamos juntos.

Ao tentar falar algo mais, gaguejou e desviou o olhar. Completou então a frase, dizendo com a voz fraca:

_ Gosto muito de você. Sinto que gosto muito mais do que deveria. 

Olhou para o livro torcido e revelou que seus sentimentos em relação a ela estavam saindo de seu controle. 

_ A alegria em te encontrar é tamanha que me sinto como um garoto apaixonado. 

O livro em frente ao corpo dela agora parecia seu mastro, era a única coisa que sentia não flutuar ao seu redor. Olhou para os lados e sentiu uma vontade incontrolável de rir, mas algo dentro dela a impediu. Ela jamais imaginaria escutar aquelas palavras de seu amigo.

Ela permaneceu em silêncio, pois compreendeu que aquele encontro era, na verdade, uma triste despedida. Ele faria falta em sua vida. Ela sorriu, um sorriso gentil e o olhou nos olhos com vontade de dizer: sentirei saudades. Sua alma então enviou os desejos mais sinceros e amorosos que uma filha pode sentir por um pai. 

Entendeu que deveria seguir. O sinal da saída da escola soou e ela caminhou ao encontro da filha, mas agora sentindo que o livro em suas mãos pesava um pouco mais. 

Caminhou alguns metros e olhou para trás. O amigo seguia para o lado oposto e a observava. Timidamente, ela levantou a mão que segurava o livro e acenou. Ele então, repetiu o gesto.




Valéria Macedo
nasceu em São Paulo, em 1977. Autora do livro Os olhos claros do pássaro, publicado em português e inglês e do romance premiado A falta que ela faz. Já foi dentista e analista de sistemas. Moradora do mundo, apaixonada por natureza, ioga, por aprender e se reinventar. Instagram: @valeriamacedoescrita | E-mail: valeriarmacedo@yahoo.com