Entre o delírio e a denúncia: ecos de Glauber em Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa

 por Thais Guimarães |



Em Apocalipse nos Trópicos, tive a sensação de estar dentro de uma ficção inspirada em um livro já lido. 

Um filme que desmonta a lógica documental: a edição das imagens, com cortes abruptos, nos transporta para um campo estético que oscila entre o transe e a alucinação.

Em várias passagens, os personagens pareciam atores encenando — cenas que poderiam muito bem figurar em Terra em Transe ou A Idade da Terra, de Glauber Rocha. É surpreendente perceber tamanha ressonância.

Glauber filmava o Brasil como uma terra mítica, onde o político e o religioso se entrelaçavam. No filme de Petra, há algo semelhante: pastores que se tornam profetas, políticos oportunistas, líderes transformados em mitos — e a narrativa nacional encenada como uma fábula de fim do mundo. 

Somos conduzidos por uma performance vertiginosa de cenas nas quais nos tornamos espectadores da nossa própria barbárie — enquanto país. A política se apresenta como espetáculo trágico e grotesco, que chegou às raias do absurdo naquele 08/01 e, embora também tenha sido um movimento de autodestruição para a direita, continua nos amedrontando como um pesadelo distópico.

O que mais me tocou, durante o filme, foi a constatação de estar diante do meu próprio tempo histórico. É um documentário que, além de reavivar fatos tão recentes, oferece uma percepção sensível do delírio religioso que o Brasil revela.

Ao encenar a barbárie recente do país como fábula de fim do mundo, Petra nos força a enxergar o abismo do presente com olhos abertos — e resta a mensagem: será preciso mais do que “estar atento e forte” para enfrentar a manipulação de uma fé que alimenta o fanatismo, um dos mais poderosos aliados da extrema-direita brasileira.

Apocalipse nos Trópicos se ergue de um roteiro para a ruína: um teatro de delírio religioso, político e social.

O que vemos — e vivemos tão recentemente — é um país que não conseguimos compreender com a lógica. Mais uma interseção que faz com que este documentário de Petra Costa se aproxime tanto da câmera glauberiana.

Glauber inventava o país por meio da imagem. Petra, por sua vez, projeta a imagem real de um país que parece invenção — denunciando, com precisão cirúrgica, aquilo que nele é inaceitável.




Thais Guimarães - Poeta, escritora para a infância e editora responsável pelo selo Tercetto.  Nasceu em Fortaleza (CE) vive em Belo Horizonte (MG). Formada em Letras pela UFMG, com especialização na Ciência da Informação. Tem as seguintes publicações infantis: Senhor Relógio”, “Um Pássaro para Sonhar” e “Bom dia Ana Maria (Prêmio Jabuti, 1988) e, entre outros, tem os livros de poemas: "Jogo de Facas" e "Jogo de Cintura", além de poemas publicados em diversas antologias, revistas e suplementos literários.