por Taciana Oliveira |
Em Engerar Onça: construindo Ecofeminismo na Oniricena, *Graziela Brum entrelaça autobiografia, manifesto e encantaria para construir uma obra politicamente necessária. Nascido do encontro entre o corpo da autora e o território amazônico, o livro é atravessado por experiências oníricas e epifanias sensoriais que desconstroem as certezas da racionalidade urbana, dando lugar a uma linguagem conduzida pela floresta, pelos sonhos e pelo corpo.
A onça, animal símbolo, entidade espiritual e força narrativa, emerge como guia de um processo de desaprendizagem do mundo urbano e reconexão com saberes não hegemônicos. “Não fui eu quem escolhi a Amazônia; foi ela que me escolheu”, diz a autora. Essa inversão marca o movimento essencial do livro: prescindir do controle, da explicação racional, e se entregar ao delírio lúcido de uma escuta profunda. Mais que metáfora, a onça se torna pedagogia e linguagem. Ao mesmo tempo em que rasga a pele da protagonista com suas garras (literal e simbolicamente), inscreve nela um saber ancestral, uma memória coletiva que vincula a luta ecológica à libertação dos corpos femininos e dissidentes. O ecofeminismo, aqui, não é um tema, mas uma prática que molda a forma e o conteúdo do texto.
Na Oniricena, era proposta por Graziela como alternativa simbiótica ao Antropoceno, decisões não nascem da lógica produtivista, mas da escuta dos sonhos, dos encantados e da floresta. O livro é um convite a viver a literatura como travessia: um caminho que envolve dor, desejo, desorientação, mas também reencontro com a possibilidade de existência fora da máquina colonial-capitalista. Engerar Onça é um corpo-livro que lateja, sangra, cura e resiste com as raízes cravadas no chão fértil da Amazônia.
Abaixo segue uma entrevista com a autora:
1. No livro, você escreve: “Sou eu a própria onça”. Em que momento da sua travessia você entendeu que o animal não era somente símbolo, mas linguagem e transformação?
Essa compreensão surgiu ao longo de uma extensa travessia espaço-temporal, na qual fui elaborando um pensamento em que a onça adquiriu outras camadas de significado, especialmente política. Ao me mudar para a Vila de Alter do Chão, amigos em São Paulo me perguntavam constantemente se já tinha encontrado a onça. Certo dia, em um grupo de WhatsApp da comunidade local, vi um vídeo noturno de um gato-maracajá circulando na floresta próxima dali. Foi quando percebi que a onça, para aquela comunidade, transcendia o animal físico: era o símbolo da natureza intocada, uma entidade, uma encantaria.
Pouco depois, tive um sonho com a onça e acordei não somente com medo, mas intrigada. Registrei a experiência onírica no meu diário, e identifiquei que o medo do animal refletia meu próprio temor do que não tinha o poder de controlar, daquilo que não podia dominar. Por isso, havia em mim um impulso, um desejo de rejeitá-la, e aquilo me instigou, transformando-se em substrato de reflexão.
Paralelamente, eu realizava uma reparação literária, focando exclusivamente em autoras feministas. Leituras de Vandana Shiva, Donna Haraway e Anna Tsing dialogaram com essa experiência onírica. Foi na intersecção entre sonho, teoria ecofeminista e confronto com meu próprio medo que a onça deixou de ser apenas bicho: tornou-se linguagem e agente de transformação. Nessa jornada, descobri um feminismo próprio em que a matéria onírica guia a construção de um Ecofeminismo “decifrado” através dos sinais e símbolos dos sonhos, naquilo que chamo de Era Oniricena.
2. A ideia de Oniricena surge como contraponto ao Antropoceno e ao Capitaloceno. De que forma você imagina esse tempo regido pela escuta dos sonhos e dos encantados na prática social e política?
Minha compreensão da Oniricena como um contraponto ao Antropoceno e ao Capitaloceno foi profundamente influenciada pela leitura de A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. O livro revelou como a tomada de decisões com base nos sonhos é uma prática social e política real, importante para muitos povos indígenas. Essa percepção ressoou com minha própria experiência de registrar sonhos em um diário, mas ampliou meu entendimento: percebi que a experiência onírica não é só pessoal, mas fundamental para a saúde mental coletiva. Nas sociedades urbanas contemporâneas, mergulhadas no caos, estamos perdendo a capacidade de sonhar, e talvez aí resida uma chave para a epidemia de transtornos psíquicos. Nossas mentes sobrecarregadas, privadas de sono de qualidade, mal conseguem elaborar processos cotidianos, quanto menos acessar o inconsciente. Um lugar matricial de desejos e entendimentos sobre nossa existência. Essa incapacidade de sonhar representa uma perda irreparável para a humanidade. A Oniricena, porém, vai além da experiência onírica individual. Ela se manifesta na prática social e política através de escolhas conscientes na vigília que valorizam e protegem o sono como um momento sagrado. Isso significa construir coletivamente condições materiais e culturais para que o sono profundo e o sonhar sejam priorizados. Por isso, trabalho semanalmente uma newsletter sobre como dormir melhor, chamada A Noite Estrelada, na plataforma Substack. Lá, dou dicas sobre os ritmos sociais, alimentos e cuidados, meditação, escuta coletiva, ambientes urbanos, relações interpessoais, entre outros assuntos que tratam do sono e do sonho.
A Oniricena é, portanto, a era em que o indivíduo e a coletividade entram em contato profundo consigo mesmos e com o mundo não-humano, resistindo ao apelo violento do capitalismo, que mercantiliza o tempo e o descanso, e aos imperativos egocêntricos do patriarcado. É a era em que criamos as condições básicas para nos elaborarmos como seres que não são donos da Terra, mas que pertencem a ela. A escuta dos sonhos e dos encantados, entendidos como forças, saberes e dimensões além do puramente racional e material torna-se, assim, um fundamento para uma política regenerativa e uma sociedade verdadeiramente saudável. Nesse processo, a busca de uma mulher por novas formas de existir toma força no Ecofeminismo, criando outra epistemologia para investigar o ser estar no mundo.
3. O corpo é um território central na narrativa — ele sangra, sonha, escreve e resiste. Que relação você estabelece entre essa escrita encarnada e o ecofeminismo que propõe?
Primeiramente, é necessário afirmar que não existe uma única narrativa feminista. Somos mulheres plurais, com histórias, culturas, necessidades e percepções distintas, localizadas em geografias diversas. Portanto, não faz sentido um feminismo pautado por uma única linha de raciocínio ou ideologia baseada em uma experiência singular. É por isso que o feminismo deve ser uma prática que se abre a múltiplas vertentes, criando tentáculos que se estendem por espaços diferentes e constroem novas formas de existir.
Quando cheguei à Amazônia, uma das primeiras percepções que tive foi que a fronteira do corpo não se limita à pele. Nesse contexto, eu — mulher em trânsito, escritora, corpo em território brasileiro — também sou rio, mata, onça. De forma orgânica e intuitiva, rompi com parte da estrutura central do antropocentrismo. Essa percepção tornou-se a base para a construção de um ecofeminismo fundamentado no fortalecimento pela experiência onírica, uma forma de resistir às violências que o patriarcado submete tanto corpos femininos quanto o corpo-floresta.
Contudo, a ideia central do livro surgiu após a trágica notícia do feminicídio da palhaça Jujuba. A artista Julieta Hernández Martínez foi assassinada, chocando não apenas a comunidade da Vila de Alter do Chão, mas o mundo inteiro. No mesmo ano, poucos meses depois, uma sumaúma gigante no centro da vila foi derrubada devido à exploração imobiliária na região. Essas violências estavam conectadas e tornaram-se o substrato reflexivo para a escrita deste livro e para a minha proposta ecofeminista.
4. O livro transita entre memória pessoal, sonho, crítica política e fabulação. Que desafios você enfrentou para manter a coerência estética e ética dessa narrativa múltipla?
Durante todo o processo de escrita, a Onça permaneceu como minha mestra condutora, forjadora da linguagem. Essa presença me permitiu conectar elementos distintos em uma história que é, também, um manifesto político feminista.
A literatura contemporânea já vem questionando os gêneros literários: o que é conto? É romance ou poesia? Nesse contexto, temos livros consagrados que poderiam ser pensados como portadores de uma espécie de disforia de gênero, tal qual o raciocínio do filósofo Paul B. Preciado nos apresenta. Seria um romance no corpo de um poema? Ou um poema no corpo de um conto ou ensaio? Como nos diz o filósofo, isso pouco importa.
Assim, a literatura feminista não se prende a gêneros literários fixos nem se preocupa em definir qual rótulo (ficção, autoficção ou biografia) se aplica a cada texto. Estamos em um momento em que a ousadia é a matéria-prima essencial para a criação. Essa perspectiva me concedeu uma liberdade produtiva inédita. Sinceramente, achei a experiência incrível. Embora desafiadora em alguns aspectos, e acredito que o resultado expressa essa ousadia de forma muito interessante.
5. A Amazônia aparece não apenas como cenário, mas como entidade viva. Como foi o processo de passar de observadora da floresta a habitante sensível desse território encantado?
Confesso que viver na Era Oniricena gerou muito estranhamento. Amigos, familiares e pessoas queridas não compreenderam minha decisão de mudar para um trecho quase inabitado da floresta amazônica. Sou a única humana em minha rua. Ao ler este livro, descobrirão que me mudei movida por sonhos encantados, o que talvez torne minha escolha ainda mais complexa aos seus olhos.
Mas preciso afirmar: o que aprendi habitando a Amazônia nestes cinco anos seria impossível de alcançar na cidade concreta. A floresta me ensinou a escutar a paisagem sonora ao meu redor de uma forma muito mais atenta, aprofundou meu paladar, minha sensibilidade. Também me ensinou a ler o tempo em outras dimensões, a habitar o invisível. Em Alter do Chão, encontrei as Encantarias, o que modificou minha espiritualidade. Enfim, eu sofri uma transmutação, de observadora a integrante do encantamento, o que deu à escrita deste livro uma força feminina essencial para nosso tempo. Espero que ela ressoe nos leitores que precisam ouvi-la.
6. A experiência com o jenipapeiro, os sonhos lúcidos e as cicatrizes da onça se entrelaçam em uma imersão espiritual e intelectual. Que caminhos a escrita desse livro abriu na sua vida após a publicação?
Essa pergunta é avassaladora, obrigada por fazê-la. Nos dois anos em que mergulhei na escrita deste livro, transformei profundamente meu pensamento como mulher escritora em trânsito. Alcancei lugares existenciais que jamais imaginei pisar. Saí do Rio Grande do Sul e atravessei o país à procura de respostas que, descobri, já habitavam em mim, mas só emergiram através das experiências a que me submeti. São respostas que agora fundamentam a literatura que almejo criar.
Hoje entendo: já era ecofeminista no Sul, muito antes de conhecer o termo. Na época, me chamaram de subversiva, indomável e, em certos momentos, de louca. Só agora compreendo a dimensão dessa travessia, graça à coragem de seguir a Era Oniricena. Não foi desespero nem medo que me moveram, mas um desejo de desvendar as incógnitas que me assombravam, enigmas que me questionavam durante toda minha caminhada.
Sou imensamente grata por sonhar com a onça e chegado a este livro de título tão intrigante: Engerar Onça: construindo Ecofeminismo na Oniricena. Este é um marco. Considero minha obra inaugural como teórica feminista. Que ela sirva de ferramenta para leitoras e leitores que buscam resistência neste mundo em conflito.
*Graziela Brum é autora de “Antologia poética Senhoras Obscenas” (2017), “Jenipará" (2020) e “A Curva Vermelha do Rio” (2024). Seus textos cruzam fronteiras entre poesia, ficção e manifesto. “Engerar Onça” é seu trabalho mais radical, quando corpo, sonho e floresta insurgem-se como trincheiras.
Editora Tamba-tajá: Raízes CulturaisO selo editorial Tamba-tajá consolida-se como voz de narrativas decoloniais. "Engerar Onça" integra seu catálogo ao lado de obras como Jenipará (2020) e "A Curva Vermelha do Rio" (2024), também de Brum, que exploram a Amazônia como espaço mítico e de conflito .
Título: "Engerar Onça: construindo Ecofeminismo na Oniricena"
Autora: Graziela Brum
Editora: Tamba-tajá
CONTATO: Editora Tamba-Tajá • editoratambataja@gmail.com
Redes Sociais