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Poemas do livro Matriarca cidade, de Dalgo Silva



[na barriga] 

a arquitetura da cidade cresce na carne. 

há que testemunhar como as vigas esticam a pele 

e como escondem o útero que a fabrica. 

nem a cabeça de antenas, nem as veias de betume, 

nem a argamassa como tecido de corpo, 

muito menos a cor cinza a tornam cosmopolítica. 

a cidade é uma barriga azul virada pra cima 

que racha sob o sol, dói, grita, 

na espera que suas irmãs atlânticas lhes mandem 

longas cartas de alento. 

é por essa rachadura que entro. 

mostro minhas feridas e as ondas as lambem 

como a gata rajada lambia os filhotes 

que acabavam de sair de seu ventre. 

doemos juntas e nunca acabamos de nascer. 

a pele da gente tem hora que fecha 

e tem hora que rompe. 

as folhas do quintal entendem. 

é como quando você adentra a floresta,

o bucho verde que ainda pare a cidade, 

e sabe que precisa nascer 

pela milionésima vez. 

[o mangue-mãe] 

a água se funde às suas faces 

enquanto eles emitem sábios grunhidos. 

há mais tecnologia nos meninos 

que cortam um rio a braçadas 

que na estrutura do aço. 

você fica no meio para interceptar o fascínio amoroso da praia. 

primeiro, as mães ficam inquietas com o já comeram. depois, os filhos ocupam-se de dar tainhas 

e alimentam-se de saltos ornamentosos. 

o ritual de meninossiris, banhado a riso 

e olhos arregalados emergidos do mangue, também lembra: a lama é o coração mole das mães. 

[matriarca cidade] 

as guardiãs desta cidade 

são bixas pintosas abandonadas à própria sorte. elas foram expulsas de algum paraíso 

em que tinham que envenenar a voz 

ou morrer. 

as guardiãs desta cidade são travas destravadas. elas foram repelidas de algum paraíso

porque ousaram conhecer a si mesmas, 

forçando o jardim inventado a se ver 

e mesmo assim não sentir vergonha. 

as filósofas desta cidade são mulheres indígenas. elas foram escorraçadas de algum paraíso 

por terem as terras, as plantas e os rio-bichos 

como a irmãos grandiosos. 

as filósofas desta cidade se alfabetizaram sem alfabeto. elas foram afastadas da criação por um deus-homem por terem em suas mãos a única epistemologia capaz de salvar o mundo. 

as agricultoras desta cidade plantaram casas. 

elas foram punidas por receberem filhos assassinados, vilipendiados, gente sem classe odiada pelas de classe, mulheres oprimidas, refugiadas climáticas nordestinas, homens ridicularizados por terem ousado 

desaprender a brutalidade que dá cabo à vida. 

as artesãs desta cidade costuraram corações maiores para aqueles que esqueceram que mansão mesmo é no dentro. elas foram arrastadas nuas pela avenida principal do paraíso e chamadas loucas, pervertidas, putas. 

elas nunca couberam em terras prometidas. 

tinham corações defeituosos: 

muita gente morando ao mesmo tempo. 

corações de mãe? 

não é sodoma e nem gomorra a nossa matriarca cidade. afinal, sempre soubemos abrigar a quem necessitava. lembro de todas as vezes em que as nossas 

se achavam perdidas, desamparadas, destroçadas

e alguma amiga-criança-preta-menina-palhaça-venezuelana-na-bicicletinha nos arrancou um sorriso em meio ao gume ameaçando nossas vidinhas. 

originariarcado: voltar para o útero do mundo e parir um modo em que onças e rios sejam escutados como a sábios. 

nosso futuro está na origem com os espíritos das pretas velhas que amamentaram seus algozes, 

nos poetas que olharam pro chão com ternura 

e elevaram a infância ao nosso estágio de envolvimento 

mais sublime, porque mais extraordinariamente aberto, 

nas plantas de nossas grandes mães e seus mistérios 

de não nos fazer perecer no inóspito do progresso. 

nesta cidade há guardiãs e não se erigiram portões, 

há filósofas e nenhuma forma de conhecer foi subjugada, há agricultoras para saciar a fome dos que não podem pagar, há artesãs de corações coloridos e quentinhos. 

nela, o meu é verde, como o dos passarinhos 

e não quer matar o bicho apontando a arma fria e cinza.



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Dalgo Silva é cearense, poeta, psicólogo, filho de sua mãe, Crene, de seus irmãos, de suas amigas, das plantas, dos bichos, dos rios e mares e de todo território que o acolhe e o materna cotidianamente. Autor de Meu amor é político, livro vencedor do VII Prêmio Cepe Nacional de Literatura, do VI Prêmio Mix Literário e finalista do Jabuti na categoria Escritor Estreante — Poesia.