por Fabrício Pinheiro |
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Foto de Steve Johnson na Unsplash |
Estacionamos o Monza preto na rua de trás da Rodoviária onde as vans clandestinas ficavam. A gritaria dos cambistas de passagens ecoava abafando as buzinas dos carros, rapidamente surgiu um pendurado na janela do carro oferecendo passagens para Onda de Rio. Apesar do calor que fazia, fechamos os vidros do carro para não sermos importunados, o cambista saiu ao encontro dos outros colegas de trabalho, apontava para o carro proferindo alguns palavrões típicos como “fodido”, “pomba-lesa”, “gala seca”, fazendo com que eu e Cícero déssemos boas risadas enquanto preparávamos uma mistura para nos concentrarmos, mesmo assim fiquei preocupado com possíveis retaliações.
Marcamos com Norberto de nos encontrarmos em frente ao banheiro da Rodoviária. Pensar nisso, enquanto caminhávamos até nosso ponto de encontro, fazia minhas mãos suarem frio, em uma mistura de paranoia e euforia causada pelos produtos roubados que nos apoiavam, além do fato de eu ter uma admiração, que também pode ser chamada de curiosidade, pelo habitat Rodoviária, nessa específica. Para mim, existia um senso de ilegalidade inerente a qualquer pessoa ali dentro. Eu mesmo conseguia diferenciar com tranquilidade quem estava circulando apenas para oferecer serviços paralelos. Alguns deles eram os Fornecedores que geralmente andavam de sandália e bermuda, ficavam entre a porta de entrada da Rodoviária e o estacionamento, dificilmente entravam no Terminal, quando acontecia, era para fazer entregas muito bem despintadas, como deixar o produto grudado com chiclete debaixo da cadeira, dentro de lixeiras, em cabines no banheiro, atrás do totem de balas, mas isso, só se tu tivesses algum tipo de afinidade com o Fornecedor, ou fidelidade comprovada, ou estivesse atrasado. Quando tu és abordado por um Fornecedor desconhecido, ele se comunica sem olhar nos olhos, te chamando de “patrão” e mexendo nos bolsos, se tu viras o rosto e paras, ele também para, girando a cabeça em todas as direções, dando início a uma dança circular, perguntando rapidamente o que seria, quando percebes, estás caminhando com ele para fora da Rodoviária até uma loja de botijão de gás onde receberás um produto amarelado, de tão má qualidade que te pode perfurar os pulmões, mas mesmo assim tu agradeces.
Os Taxistas também podem ser um show à parte. Além de intrusos e inconvenientes, são sem criatividade carcarejando “táxi, táxi!” repetidas vezes para oferecerem seus serviços. Quando uma corrida é iniciada, basta uma simples pergunta – claro, feita categoricamente com o ar de quem já enfrentou poucas e boas e que não será enganado – para ser levado a lugares tanto perigosos quanto divertidos; de repente podes estar dentro de um porto suspeito no meio da Avenida Estreito Cumprido, tomando cervejas com o dono da passagem mais importante do lugar no meio de uma Aparelhagem, esperando um barco para o interior devidamente acompanhado pelo motorista do táxi.
A Prostituição, apesar do seu cativante diferencial, tem suas limitações. Tem maior apelo para quem está de chegada ou para quem não consegue sair da Rodoviária, a não ser que tu sejas um velho aposentado viciado, fácil de ser enganado, que está sozinho na cidade e decide, depois de 3 dias de embriaguez, chá e furtos que jamais irás perceber, levar a companhia para a terra natal. Ainda existem os domínios de território. Dentro da rodoviária ficam as mais idosas que estão ali morando e trabalhando por não conseguirem voltar para sua terra, na parte de fora estão as mulheres mais jovens, os garotos, gays, lésbicas, travestis, que em sua maioria são associados dos Fornecedores, o que te condiciona a ser roubado gentilmente ou brutalmente, dependendo de qual espécie de idiota tu sejas. Não são raras as brigas em frente à Rodoviária, os linchamentos, as ameaças com facas e navalhas. Os Taxistas, por exemplo, também são conhecidos por serem grandes caloteiros, solicitam os serviços das travestis na calada da noite e voltam a trabalhar sem pagar, certa vez um miserável foi emboscado no estacionamento por um grupo de garotos, travestis e Fornecedores, ficou pendurado pelo cinto de segurança para o lado de fora do carro retalhado de navalha, os cabelos arrancados, os olhos inchados, a boca estourada.
Havia também o Vigia do banheiro que nos abordou assim que chegamos ao ponto de encontro. O velho magro e alto com dedos enormes, perguntou se queríamos usar o banheiro, a cabine estava livre e a entrada era de graça. Era um código. Ir ao banheiro na Rodoviária custava 50 centavos naquela época, o Vigia não oferecia o serviço a ninguém, muito menos de graça, ele apenas ficava sentado ao lado da catraca recebendo o pagamento da entrada e coordenando o movimento de pessoas, só se levantava para abordar quem supunha estar agendado para buscar alguma entrega, bastava ficar rondando a frente do banheiro o encarando que ele viria lhe oferecer uma ida à cabine. Quase nunca se enganava. Há uma diferença entre pessoas que estão apenas paradas em frente ao banheiro e as que estão ali em busca de suas encomendas; estas, estão sempre com a cabeça mais inclinada, olhando sob a sobrancelha como estivessem em fuga tentando não serem reconhecidas, também já perderam a cor natural da pele, agora são verdes ou cinzas, transpiram, mesmo não tendo mais água no corpo para isso. O Vigia sabia disso, reconhecia facilmente um cliente.
Já havíamos passado por aquilo, talvez por isso o seu engano. Negamos com um leve sorriso no rosto, ele voltou desconfiado para sua cadeira ao lado da catraca nos lançado olhares entre um troco e outro. Mais uma vez fiquei ressabiado quanto à um iminente problema por vir. Desde que estacionamos o carro nossa conduta me preocupava. Estávamos sendo vigiados, podia escutar os sussurros a nossas costas indo de boca em boca deixando todos em alerta, um passo em falso e poderíamos estar mortos.
Cícero me sacodiu me fazendo voltar da paranoia. Era por isso que o Vigia não havia se enganado. Nossas olheiras denunciavam que não dormíamos há alguns dias, as roupas amassadas começavam a ficar encardidas – eu vestia uma camisa abotoada apenas por dois botões, meu tórax com as costelas pontudas quase todo amostra –, a coriza crônica não me deixava disfarçar, Cícero estava tão branco que parecia um defunto, minha mão estava engelhada como estivesse envelhecido precocemente, eu podia sentir a pele do meu pescoço esticada assim como os espasmos; eu deveria comer alguma coisa e me hidratar nas próximas horas caso quisesse evitar o estágio da fraqueza. O mesmo valia para Cícero.
Fui até a rua para ver se tinha alguma bike vendendo Completo. Sentia os olhos dos Taxistas em cima de mim. Estava sendo seguido por Fornecedores. Vi a silhueta de alguém atrás de um orelhão segurando algo brilhante nas mãos. Corri derrubando malas e empurrando pessoas para chegar no Completo antes de ser apanhado. O jovem vendedor se assustou, chegou a montar na bicicleta para ir embora, pedi para que ficasse, eu só estava com pressa, meu ônibus iria sair, menti verificando sobre os ombros se eu havia escapado. Pedi 3 Completos, 2 para mim, 1 para Cícero – 3 risoles de queijo e 3 sucos de acerola em um copo descartável de 180 ml –, devorei o primeiro enquanto esperava o troco.
Eu sentia o sal correr em meu corpo despertando meus músculos, expulsando o hálito amargo da boca, trazendo junto à lucidez a normalidade corriqueira da Rodoviária. As pessoas desembarcavam dos táxis, ambulantes vendiam DVDs piratas, cambistas ofereciam passagens, mães pediam esmola para alimentar os filhos, a vida entediante até a morte retornava à Rodoviária. Cícero ainda me esperava atento à circulação das pessoas em sua volta, os braços cruzados, a cabeça ainda inclinada, enrolando a ponta do bigode, tudo aquilo já era passado para mim. Ao me enxergar, um alívio contido e alerta escapou em seu rosto, quando percebeu o lanche em minhas mãos avançou sobre ele, finalmente o relógio tocaria para desperta-lo do pesadelo.
Norberto nos encontrou com as bochechas mais coradas e também com o apetite renovado, mas o retorno da saliva seca na boca já dava sinais de que precisávamos continuar. Nos trouxe cerveja para brindarmos a viagem, e também o primo que havia ido buscar o carro e também nos colocaria dentro da van clandestina de um amigo seu, que nos daria uma carona até Banjo D’Água, a partir dali estaríamos por nossa conta, a travessia para a Ilha da Condessa, a hospedagem, a sobrevivência. A única coisa que tínhamos garantido, além da van, eram os envelopes e as garrafas de vodka e vinho em nossas mochilas, e a barraca de camping de Cícero em caso de emergência.
Fomos até onde o Monza preto estava estacionado, inspecionamos o carro minuciosamente debaixo dos bancos, dentro do porta-luvas, no porta-malas, por entre as portas, chegamos até a arrancar os tapetes, era imprescindível que não deixássemos nada para trás, pois havíamos passado por algumas situações que não nos orgulhavam – mas também não nos tirava o sono –, inclusive o roubo.
O primo de Norberto se esforçava para manter a calma observando nossa busca em respeito ao parentesco. O estado do carro era uma calamidade, resto de comidas no painel, bitucas de cigarro amontoadas no câmbio, pontas de baseado e garrafas pelo assoalho, um curioso e patético exemplar de Peter Funny, sem falar dos pequenos sacos ziplocks. Norberto entrou na inspeção quando viu esses últimos, disfarçadamente enfiava o dedo e os lambia para ver se havia sobrado algo, em seguida os guardava no bolso da calça. Fomos tirando todo o lixo possível, ao redor do carro foi se formando uma réplica em miniatura do Aterro do Bairro.
- Acho que é isso, meu querido! – me virei para o primo de Norberto lhe mostrando a chave pendurada entre meus dedos, sorrindo canalhamente.
- Caralho, Nó, muita galasequice. – o primo respondeu olhando para Norberto, arrancou a chave da minha mão e fechou a porta do carro com força.
Fomos caminhando para uma rua mais afastada da Rodoviária para encontrar a van do contato do primo, ele caminhava a frente apressado, puxando a camisa para encobrir o rego despontando da bermuda tactel, íamos atrás dando gargalhadas mudas, fumando, dando os primeiros goles em uma garrafa de vinho. Cícero ainda causou a inconveniência ao pobre coitado de pedir que parássemos para que ele comprasse algumas carteiras de cigarro e cervejas. Saiu de dentro da birosca erguendo a sacola como se fosse um troféu. O primo aguardava coçando a virilha, bufando de um lado para o outro, impaciente.
Obviamente, assim como não pretendo fugir de clichês, nem da preguiça, muito menos deixar de apelar para o fato de que a coincidência pode ser possível nas piores horas, o contato do primo do Norberto na van clandestina era o cambista de passagens que havia nos abordado logo que estacionamos atrás da Rodoviária.
- Égua! São esses fodidos aí? Éééégua! Vai te foder, não boto fé! Deixa comigo. – disse O Contato com um sorriso vingativo no rosto enquanto contava as notas de dinheiro que estavam enfiadas entre os dedos.
Foi assim, com galanteio, com calorosa recepção e irretocável educação que fomos recebidos pelo Contato. Assim que se despediu do primo de Norberto, O Contato nos acompanhou até a porta da van onde restava apenas 3 lugares vagos atrás do motorista, ou seja, d’O Contato. Antes de entrarmos, pediu para que três pessoas que sentavam na última fileira fossem se sentar nos três lugares vagos da frente. Quem precisa desse tipo de transporte sabe que a última fileira é a que todos tentam evitar, o banco não inclinar se torna o menor dos problemas, todo o sacolejo da van, causado desde um buraco à uma lombada, ou simplesmente pela irregularidade do asfalto, é sentido com mais força lá, na última, dura, e sacolejante fileira. Assim que a mudança foi feita liberou nossa entrada, continuando a contar as notas entre os dedos, o que não o impediu de perceber a sacola nas mãos de Cícero.
- O que tem na sacola? – perguntou apontando para ela.
- Cerveja – respondeu Cícero.
- Deixa uma aí – ordenou se fazendo de desentendido.
Antes de dar a partida, O Contato deu um assobio alto pedindo atenção de todos para dar algumas instruções quanto a viagem.
- Boa tarde a todos – abriu a cerveja e a bebeu – Durante a viagem, nesse ambiente de família, está proibido cigarro, pó, trepar e vomitar – apontou para um casal jovem que mamava fielmente uma buchudinha – De resto, está tudo legalize, mas por favor, se tiver um fininho, não esqueçam do motorista, beleza? – depois que todos responderam beleza continuou – Ah! E quem não se garantir e inventar de meter o Jason antes de chegarmos, vai ser largado no meio do caminho, tô nem vendo, foda-se!
Mesmo se quiséssemos criar alguma de inimizade com O Contato, se tornava impossível depois daquelas instruções, mesmo que ele quisesse aprontar com a gente. Minutos depois do início da viagem, a van já estava empesteada de álcool e maconha, a quantidade de fumaça fazia com que os olhos ardessem, os mais inexperientes já falavam mais exaltados, se movimentavam agitados nos bancos, gritavam pedidos de música ao motorista, ainda nos restavam 4 horas de viagem. Ao nosso lado na última fileira, estava o único passageiro solitário e sóbrio encolhido contra a janela, Cícero gentilmente lhe ofereceu uma ponta e a vodca que bebíamos, as quais foram negadas timidamente.
- Estou preocupado – Cícero disse baixo olhando para frente, a cabeça inclinada para mim.
- Por que? Por causa do moleque aí? – perguntei também olhando para frente.
- Não. Ele é o melhor de todos nós. O que me preocupa é o resto dessa galera aí achando que estão fazendo coisas realmente especiais, e que isso aqui – apontou para o baseado em sua boca – os torna pessoas mais agraciadas. Vai ser foda sermos escorraçados e termos só o nosso amigo aqui para nos defender – gargalhamos juntos da sua especulação pessimista.
O pé d’O Contato pesou mais no acelerador quando entramos na rodovia, a última fileira parecia uma montanha-russa sem cintos de segurança. Norberto ficou em pé no corredor tentando se equilibrar como estivesse em uma prancha de surfe, os saquinhos ziplocks vazios começavam a trabalhar. O cobrador pediu para que ele se sentasse, Norberto abriu os braços para que não o tocasse, se sentou e começou a bolar um baseado com a garrafa de vodca presa entre as pernas, quando terminou chamou o cobrador. Norberto perguntou seu nome, se chamava Waldison, o Wal, elogiou o nome e os braços do rapaz que estava de regata e agradeceu com um piscar de olhos. Em seguida, Norberto pediu para que Wal entregasse de presente ao motorista o fumo que preparara junto com uma lata quente de cerveja. Wal levou o presente até O Contato que nos procurava pelo retrovisor para agradecer, acendeu o fumo e provou da cerveja quente fazendo caretas, mas educadamente ergueu a bebida para nos saldar. A paz estava selada.
Eu entendia as razões d’O Contato para dar aquelas instruções além do zelo pelo bem de trabalho. Ele sabia que a inexperiência tende a enganar a cabeça dos mais jovens, ou dos idiotas, ou dos que têm um condicionamento físico desfavorável e, principalmente, os que não têm uma predisposição genética para suportar a exposição ao roque doido por tempo indeterminado. Erram na estratégia, acreditam que podem garantir a vitória pela velocidade, não basta vencer, têm que chegar ao ponto final o mais rápido possível, e acreditam inocentemente que ao atingirem o objetivo poderão entrar em um estado confortável sem contratempos, de onde sairão ilesos. Um terrível engano. Os pobres coitados em suas disparadas afobadas se desmantelam pelo caminho, os que conseguem chegar ao final, que se trata realmente do início, chegam tão confusos ao ponto de um fraco vento leste os levar. Foi assim que a van emudeceu repentinamente. Alguns com as caras brancas lutavam para não passarem mal e serem largados no meio da estrada. Outros dormiam embriagados. Alguém molhava a nuca na tentativa de retornar. Os que permaneciam era eu, Cícero, Norberto; um casal inchado, declaradamente amanhecidos, bebedores de uma inusitada cachaça com gelo de coco, bregueiros e sexualmente apaixonados; o Wal, que envergava todos os copos oferecidos pelo casal; e O Contato, que baforava incessantemente e erguia o punho toda vez que uma marcante tocava. Apesar de parecer um ritmo frenético, os trabalhos eram feitos com mais lentidão, as ações que poderiam levar ao desgoverno feitas com mais espaçamento e sem sobressaltos, o som era baixo, como a voz, a respiração, a luz do sol.
Deve ser por isso que tenho dificuldade até hoje de lembrar exatamente como era a estrada. A sensação que eu tinha quando voltava para casa era como se ela nunca houvesse existido. Era como se as lembranças fossem suprimidas e retomadas a partir da travessia no barco popopô que nos levava pelo Oceano Atlântico até a Ilha da Condessa.
*Texto extraído e adaptado do livro “Não Acredite Em _____” que sairá em breve. Entenda breve como umas das coisas mais relativas existentes.
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