Borogodó Brasil | conto de Jaqueline Lima

 por Jaqueline Lima |


Foto de Steve Johnson na Unsplash

Flávia não entendeu como aquelas asas de cavalo alado tinham aparecido em suas costas. Pesavam. Soltavam plumas. Mas eram lindas! Enormes. Brancas feito algodão fiado. Quando as batiam fortemente, alçava voo e podia ir longe. Alto! Em lugares antes inimagináveis. Agora voava em direção à cidade. Não conseguia lembrar como as asas haviam brotado em suas costas e nem como faria para recolhê-las. Foi voando até sua empresa. A Borogodó Brasil. Sua grife de roupas brasileiras, coloridas, confortáveis e estilosas, e que estava virando mania nacional entre as famosas. Ela já tinha conquistado vários estados do país e Flávia era convidada para os maiores desfiles e eventos fashions da moda. Estava se tornando uma referência em brasilidades e uma personalidade no mundo da moda. A Borogodó Brasil começava a conquistar outros países, e isso dava imenso prazer à Flávia. 

Logo ela, que havia nascido Flávio, que tinha sido expulsa de casa pelo seu pai. Passou pela transição de gênero quase que sozinha. Contou com poucos amigos e com terapeutas da Associação da Comunidade que morava, antes de sair para o mundo e lutar pelos seus direitos e sonhos. Agora estava prestes a conquistar o mundo. O mesmo mundo que teve que aprender a lidar a cada passo dado. Recolher seus cacos. Se fortalecer. Costurar sua armadura. A primeira grande conquista foi o curso de corte e costura que a Associação ofereceu para os moradores. Flávia foi a aluna que mais se empenhou. Aprendeu. Costurou. Ensinou. Se entregou. De corpo e alma. Promoveu desfiles. Criou uma marca de roupas que ajudou as mulheres da comunidade a terem um pequeno negócio. Com ele puderam se dedicar, ter um propósito, e ganhar dinheiro para o sustento de muitas delas. Foi quando se inscreveu em um concurso e ganhou uma bolsa para estudar moda na Itália. Era uma grande oportunidade para aperfeiçoar sua carreira de costureira. Essa conquista era maior do que tudo que havia planejado para sua vida. Trabalhou duro. Fez estágios em grifes famosas. Se tornou estilista. Construiu uma carreira. Voltou ao Brasil depois de longos 10 anos e trouxe consigo muito conhecimento, vivências, ideias. Entre elas, desenhos e desejos de construir uma marca de roupas que representasse toda a brasilidade que corria em seu sangue carioca. A Borogodó Brasil nasceu do desejo de celebrar sua cultura, cores e valores. Cresceu no meio de linhas, novelos, tecidos e isso estava em seu DNA. Durante a sua infância e adolescência acompanhou a trajetória da avó e da mãe que davam formas impecáveis a vestidos e a lindas roupas. Se matavam de trabalhar em cima da máquina de costuras, para marcas famosas, que nunca lhes deram o devido valor. Com ela foi diferente. Apesar da família não acreditar no seu talento, ela havia chegado aonde queria. Para muitas pessoas podia parecer apenas sorte, mas Flávia não é do tipo que se deixa desfiar, nunca deixou de tentar, nem deixou de persistir para alcançar seus objetivos.

O dinheiro veio. Consequência de estudo, de trabalho árduo e assertivo. Boas conquistas, bom networking, muito preparo e uma pitada de ousadia. Riscos calculados, no mundo dos negócios. O universo da moda era cruel, mas sua condição humana era pior. Ser predestinada a nascer e viver em um corpo que não pertencia à sua alma doce, delicada, porém guerreira. Assim ela se fez. Trocou de corpo, mas tinha a mesma essência e agora era hora de conquistar o mundo. Com suas asas brancas, enormes e voos intensos.

Flávia usava um vestido lindo! Da Borogodó Brasil. Branco como suas asas e colorido como sua alma. Complementavam-se! Pousou no telhado do prédio da empresa. Quando tocou os pés no chão, as lindas asas desapareceram. Como num passe de mágica. Ela se assustou. Acalmou-se olhando para o horizonte. O dia amanhecia sereno, com raios de sol cintilantes. Um bando de pássaros cor de rosa voavam ao longe. A cidade parecia envolta em uma leve bruma. O alto do prédio da Borogodó parecia um grande jardim secreto. Muitas rosas perfumavam o lugar, uma fonte cuspia suavemente água cristalina. Havia flores, muitas flores e plantas ornavam o lugar. Flávia foi passando pelo caminho de pedra até chegar na pequena porta que tinha uma chave azul. Virou a chave. Abriu a porta. Desceu uma escada comprida que dava na cozinha da fábrica. Ainda estava deserta, os funcionários não haviam chegado. Foi direto para seu escritório. Começou a preparar a próxima coleção para o desfile da Borogodó Brasil no evento Milão Fashion Week. Entre croquis, desenhos e esboços foi criando sua coleção. O manequim na sua frente sorria esperando o próximo experimento. As ideias borbulhavam feito uma nascente rica e profunda. E lindas roupas iam surgindo da ponta dos lápis coloridos.

Foi quando Flávia escutou um choro. Ficou assustada. Foi em direção ao final do corredor que dava em um jardim de inverno bonito e sereno. Quando ela chegou levou um choque. Um filhote de unicórnio com asas tão brancas quanto as suas. Parecia um floco de neve. Alvo. Pequeno. Indefeso. Os olhos assustados do animal refletiam um medo familiar. Um medo que ela conhecia bem. Flávia quis tocá-lo, mas ele se encolheu. Ela sussurrou palavras doces trazendo tranquilidade. Pegou o pequeno no colo e o acariciou. Foi buscar marshmallows e mel para que ele comesse. Trouxe água limpa em uma tigela de cristal. Preparou uma cama cheirosa e macia para que ele pudesse aconchegar. Ele comeu tudo, bebeu a água e adormeceu profundamente na cama fofa. Ele se parecia com ela. Estranho. Tinha desejo de ser mãe, mas não de um unicórnio. Queria ter um bebê de verdade. Humano. Que segurasse seu dedo miúdo com mãos quentinhas e a chamasse de Mãe. Será que a vontade maternal a estava deixando maluca?  De quem era esse animalzinho? Como apareceu na sua empresa? Eles nem existem. Nem asas brancas nas costas de uma mulher. O que estava acontecendo? Estava tudo tão nebuloso. Confuso.

Flávia foi se mexendo e percebeu que, mais uma vez, havia dormido em cima dos croquis em seu ateliê de costura. A cara amassada. A roupa grudada no corpo com o suor da noite mal dormida. Pesadelos. Sonhos. Lembranças. Estava dolorida. O unicórnio não estava mais lá. Nem suas asas. Levantou-se e foi fazer um café. Precisava despertar de vez. Foi lembrando aos poucos do sonho meio lunático, meio verdadeiro. Sua vida contada em um devaneio. De uma coisa estava certa. Sofreu preconceitos, recebeu muitos nãos e mesmo assim conseguiu ser uma empresária de sucesso no mundo da moda. Na noite anterior o vídeo assistido tinha sido o último desfile da Victoria’s Secret com as belíssimas Angels e suas asas maravilhosas. Isso tudo misturado ao desejo de ter um filho. Que sonho louco!

Despertou de vez. Olhou o relógio. Ainda tinha algumas horas para tomar um banho e se arrumar. Vestiu um lindo vestido da Borogodó Brasil e se preparou para um importante almoço de negócios. Iria em um dos hotéis famosos da cidade encontrar com empresários franceses que gostariam de levar as roupas de sua grife, coloridas, leves e cheias de brasilidade para lojas em Paris. Depois da reunião voltaria para continuar desenhando sua próxima coleção para o São Paulo Fashion Week.



Jaqueline Lima é mineira de Belo Horizonte. Participou de uma coletânea de crônicas e poesias, o Gradiente. Escritora, Mestra em Marketing, Cerimonialista, Palestrante e Curadora de Conteúdo. Acredita que a boa escrita é capaz de levar o leitor a universos paralelos. Cartas para Mulheres Incríveis é o seu primeiro livro solo. No perfil do Instagram, pode ser encontrada em: @jaquelinelimaescritora