Beber da fonte, crônica de Sara Klust

 por Sara Klust__



Foto: Fiona Murray

                                                          
“Aquela autora não para de me copiar. Um dia desses publicou uma antologia só porque eu tinha realizado meses antes esse tipo de projeto. Que invejosa!”, comentou sobressaltada uma amiga ao telefone. Tentei acalmá-la: “Veja pelo lado positivo. O que pra você parece inveja, pode ser admiração incubada, e isso é a prova real de que seu empenho não está passando despercebido.” A amiga continuou aborrecida, mas não me dei por vencida: “Talvez você até seja uma referência para ela.”

Depois da conversa, refleti sobre a mania de algumas pessoas acharem que tudo é inveja. Contudo, entendo como inegável o fato de que em alguns momentos da vida somos tanto vítimas quanto propagadores desse sentimento desprezível.  

 

Certa vez, uma amiga de infância me confessou sentir inveja da minha coragem de ter deixado o Brasil com a intenção de me estabelecer em um país estrangeiro. “Não leve para o lado negativo, apesar de eu querer ser que nem você, a minha inveja é branca”, salientou. “Como assim, inveja branca?”, indaguei, pois sequer havia ouvido ou lido sobre esse termo (estou fora do meu país há muitos anos e, portanto, desfamiliarizada com algumas expressões). “A inveja branca não é maliciosa, não quer o mal...”, tentou me explicar. E quanto mais ela argumentava, mais eu achava aquilo tudo um absurdo. Além de “inveja branca” me soar absolutamente racista, superava os limites da hipocrisia. Inveja é inveja, e não há nada de bom nisso! Mas será que podemos transferir sempre esse sentimento de inferioridade, essa vontade de possuir os atributos de outra pessoa para o campo das artes, como julga a minha amiga escritora? Prefiro acreditar que ela esteja apenas servindo de modelo.     


Na literatura, assim como em qualquer outra área, é natural a busca por referências. Eu tenho as minhas e costumo observar os recursos narrativos que meus escritores preferidos utilizam em suas obras. Acho até mesmo enriquecedor fazermos, vez ou outra, uso desses artifícios. Desde que não nos tornemos cópias baratas de nossas referências, está tudo bem. Ademais, cada pessoa é singular, e isso se reflete em suas narrativas. 

Já ouvi escritores suspirarem pela escrita de Machado de Assis, João Guimaraes Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos e tantos outros. Uma conhecida me disse que seu sonho era escrever tal qual Ernest Hemingway, já outra se sente a anos-luz de Fiódor Dostoiévski, mas gostaria de ter percorrido ao menos um quilômetro para estar mais próxima de tão extraordinário talento. Certamente, alguém diria que isso é inveja, para mim é a mais pura expressão do fascínio.


A amiga não voltou a tocar no assunto comigo. Em seu lugar, não perderia tempo ruminando se a ideia foi “copiada” por inveja, admiração, imitação, ou tudo isso junto. Pelo contrário, saber que alguém está bebendo da minha fonte seria um verdadeiro deleite. E como minha amiga não escreve crônicas, tomo a liberdade de agradecer em seu lugar pelo lisonjeio. 


Sara Klust, setembro 2023




Sara Klust 
- Graduada em Comunicação Social, trabalhou nas rádios Cidade e Manchete FM, na assessoria de imprensa do DETRAN e no Jornal do Commercio, antes de se mudar, em 1994, para a Europa. Em 2020 publicou Um novo começo em Hamburgo, e, em 2022, A mãe brasileira, disponíveis apenas na Alemanha e Áustria. É uma das organizadoras da antologia de contos Tinha que ser mulher, cujas vendas são revertidas à Associação Fala Mulher. Mora com o filho e o marido na região do Vale do Ruhr, no oeste do país.