Quando as pessoas irão entender que experimentar é justamente o contrário de ter?


por Taciana Oliveira___


Recolho os versos fatiados, sigo o itinerário da ironia agridoce do poeta. Em Migalha de André Luiz Pinto, Editora 7 Letras, a dor persiste sem metáforas, a rebeldia sobrevive sem pedir licença. Os versos de André "conversam" sem disfarces. O poeta confronta:


Pensa que está livre, sossegado

no entanto só depois descobre

a casa foi construída na areia

Os fantasmas serão encarados, sozinho

em meio à maré cheia

Despedidas não te livram do fracasso

emoções não marcam hora.

A razão talvez seja: entender que acabou

e que a saudade pode ser saudável

e que separar pode ser necessário

para curar a vida


A poesia é paisagem esquadrinhada por grades, é o frio que continua queimando. Arriscar-se nessa jornada poética é se permitir o desequilíbrio, não tolerar o individualismo irritante que nos cerca. O minimalismo dos versos personificam o conflito de existir/resistir à margem da sociedade, de um país. André Luiz Pinto não se contenta com o incontestável: Cada um sonha com a revolução que merece

Migalha dialoga com imagens, cenas do cotidiano. Uma melancolia que deságua em quase todas as páginas. André se revela um cronista ácido, amargo, enfrentando perdas, dívidas e dúvidas de um passado-presente que não se esvai. Mas sua escrita é respiração contínua, sem arremedos, carregada de uma sinceridade potente e de um silêncio tambor que não desafina:

Foi uma noite

estranha...

Eu não conseguia parar

A coberta, por cima do corpo, fazia

do meu corpo uma montanha

e o braço, caído para fora

da cama, fazia do velho braço um rio...

Mesmo assim saí à noite

Havia tantos ao redor. Gritei, sem ser ouvido.

O poeta beatnik Lawrence Ferlinghetti, em seu Manifesto Populista, conclamava: Poetas, saiam de suas tocas,/Abram suas janelas, abram suas portas,/Chega de viver socados/em seus mundos estanques

André Luiz Pinto “atendeu” o chamado. Sua narrativa poética é pungente até quando nasce prosa: Quando as pessoas irão entender que experimentar é justamente o contrário de ter?

Em tempos de absurdas distopias, Migalha é um livro necessário. É preciso prová-lo, compartilhar da ironia, mas sem cicuta: Sonho (apenas sonho) com muitas formas de rebeldia.


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André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975, Vila Isabel, Rio. Doutor em Filosofia pela UERJ, leciona na SEEDUC-RJ e FAETEC. Publicou Flor à margem (Produção independente, 1999), Primeiro de Abril (Hedra, 2004), ISTO (Espectro Editorial, 2005), Ao léu (Bem-te-vi, 2007), Terno Novo (7Letras, 2012), Mas valia (7Letras, 2016), Nós, os dinossauros (Patuá, 2016) e Migalha (7Letras, 2019).

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Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem