Pensando o Brasil de hoje a partir de um poema de Drummond publicado nos anos de 1930

 

por Luiz Henrique Gurgel__





Pensando o Brasil de hoje a partir de um poema de Carlos Drummond de Andrade publicado nos anos de 1930.


Em 31 de outubro fez 120 anos que Carlos Drummond de Andrade nasceu e é difícil – para não dizer que faz pouco sentido – imaginar o que ele estaria pensando sobre o Brasil neste momento, com toda sua lucidez, discrição e jeito mineiro de ser. Mas sem dúvida que teria engulhos e estaria horrorizado com o atual estado de coisas e principalmente com o derrotado, destrambelhado e perigoso presidente de ocasião, fanfarrão que às vezes faz lembrar das caras e bocas de Adolph e de Benito, ou das corridinhas que este último dava em marchinhas bizarras para sinalizar sua virilidade e soberba (há uma cena deliciosa dessas em Amarcord, dos mais lindos filmes de Fellini, quando um líder fascista vem visitar a cidade).

 

Por outro lado, melancolicamente, Drummond se lembraria de seu poema Hino Nacional (o poema na íntegra está no final do texto), do livro “Brejo das almas”, de 1934, poema que também poderia ter por subtítulo “Precisamos”, verbo conjugado de um modo que revela característica bem nossa, daqueles que mais usamos, principalmente quando o assunto são nossas camufladas mazelas: “Precisamos melhorar a educação”, “Precisamos melhorar a saúde”, “Precisamos melhorar a segurança”, “Precisamos...”. Conjugação também comum nas relações pessoais: “precisamos nos encontrar”, “precisamos tomar uma cerveja” e fica nisso. Ouvi uma história, certa vez, ocorrida numa importante universidade brasileira, em que um professor visitante alemão conversava animadamente com colegas brasileiros na saída da aula, quando ouviu de um deles: “Precisamos marcar um dia para o senhor ir lá em casa”. De imediato, o alemão sacou sua agendinha de bolso e com a caneta pronta perguntou quando seria, ao que o brasileiro, sem saber o que dizer, acabou por acertar a data.

 

O nosso futuro andou bem a perigo até o último 30 de outubro, sem saber se conseguiríamos dar um primeiro e fundamental passo para sair do buraco, ou se continuaríamos a caminho de um inglório naufrágio, de uma situação de barbárie inédita entre as tantas que já vivemos. Escapamos, para alívio de mais da metade da população e para o desespero cego e histriônico de outros tantos. Como ouvi de um amigo, adiamos o fim por pelo menos quatro anos.

 

Não à toa este foi o primeiro poema em que pensei para lembrar Drummond. A paródia que o então jovem poeta compôs nos revela, passa por nossas profundezas, é ferino, ridiculariza mesmo. Sua ironia toca em feridas, expõe aquele nervo da história da nossa formação que fica escondido, fazemos de conta que não existe, mas que dói e incomoda quando cutucado.

 

“Precisamos descobrir o Brasil! Escondido atrás das florestas”, talvez os garimpeiros, traficantes, madeireiros e fazendeiros tenham levado isso, cinicamente, a sério nos últimos tempos. Tocaram fogo e mercúrio em tudo, enquanto o Brasil dormia o sono dos zumbis, embalado sabe-se lá por que tipo de ópio de quinta categoria. “O Brasil está dormindo, coitado”, como a lembrar a velha brincadeira com verso do nosso hino: “Deitado eternamente em berço esplêndido...”.

 

Drummond zomba com certa amargura dos brasileiros que se projetam num país de aparência séria. Só aparência. Pior é que parecem acreditar na própria tolice. O poeta fala de uma hipocrisia massificada, de um país que vive uma estranha forma de negar a si mesmo, uma negação patriótica em lógica macunaímica, quem entende isso? Daí precisamos educar o Brasil, comprando professores e livros para “assimilarmos finas culturas” e não fazer feio quando formos passear em Miami (na época de Drummond era Paris, mas até no deslumbramento o país decaiu...). E tudo isso realizado entre o cabaré e a subvenção às elites, algo que não mudou muito.

 

A sátira poética continua naquele rançoso tom ufanista que a gente aprendia na escola, de “Amazonas inenarráveis”. Lembro da minha professora de geografia estufando o peito e dizendo em aula sobre o nosso descomunal rio: “o Amazonas é o maior rio do mundo... Em volume d´água!”. Nossas revoluções também se apresentam como monumentais e é difícil não perder o fôlego rindo, como nos últimos dias, vendo na televisão uns patetas bloqueando estradas, lunáticos e perigosos patrioteiros urrando barbaridades com crianças no colo, ou em roda, de mãos dadas, cantando o Hino Nacional oficial para um pneu ou fazendo a saudação nazifascista, ou ainda percorrendo, heroica e amareladamente, achatados num para-brisas de caminhão por estradas país afora, a cena do ano: “Brasil acima de tudo!”. Crônica do absurdo que só agudiza o que Tom Jobim dizia, “O Brasil não é para principiantes”; ou o que Elis cantou, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, “O Brazil não merece o Brasil. O Brazil tá matando o Brasil”. 

 

No Hino Nacional de Drummond somos o país em que as tarefas estão por fazer, urgentes e inadiáveis. Mas não é preciso tanta pressa assim, as coisas se ajeitam, no fim tudo dá certo. Assim fica “difícil compreender o que querem esses homens, por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos”.

 

O poeta recomenda que esqueçamos o Brasil, “ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. O Brasil não nos quer! Está farto de nós!”, “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”

 

Mario de Andrade cobrava de Drummond uma postura mais nacionalista. Não que o poeta desprezasse o Brasil, longe disso, na verdade o Brasil era um enigma para ele. Antes de tudo, Drummond era mineiro.

 

Mas não fiquemos no pessimismo, o mal maior foi afastado e milhões foram para as ruas comemorar com todo desespero e confiança possíveis. Foi bonito de ver. Tenho quase certeza que Drummond disfarçasse neste momento um meio sorriso, ainda que com alguma ruga de preocupação, nos perceberia taciturnos, mas nutrindo grandes esperanças. No escuro é permitido sorrir. “O presente é tão grande, não nos afastemos, Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.


Hino Nacional


Carlos Drummond de Andrade


Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonnettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas.

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas…

Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?








Luiz Henrique Gurgel
 é paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros.