Hora Antes de Dormir, Alessandro Caldeira

por Alessandro Caldeira__

A tentação de Santo Antão, 1946 - Salvador Dalí


A lari, mais uma vez, estava chamando pelo meu nome loucamente (ela tem uma mania de me tirar de sonhos), é claro que ela não faz por mal, eu sei disso. Só acho que ela tem um sério problema com quem sonha demais e tal.
Uma vez ela me perguntou com o que eu ando sonhando tanto. Respondi que meus sonhos tinham cara de Pablo Neruda (eu não sei bem o porquê eu disse isso, se você quer saber, mas foi a única forma que consegui explicar). Só que para que eu fui dizer isso para ela?
O problema é que a lari não gosta do Neruda e ela sempre arranja uma forma de detonar esses escritores do romantismo.
- Credo! Que gostinho ruim que você tem!
Meu Deus do céu! A lari reagiu como se eu tivesse falado sobre algum tipo de bicho nojento ou algo assim.
- Ah tá! Por quê? Posso saber?
- Pode sim, oras! Neruda é adulto querendo agradar as mulheres.
Eu tenho de admitir que acho muito engraçadinho a forma como a lari fala sem nenhum tipo de remorso e tal, é uma criança bastante astuta.
Quer dizer, ela não é essas pessoas fúteis que te aparecem falando qualquer coisa sobre Salvador Dalí e coisas assim só para pensarmos que elas são inteligentes.
Por exemplo, teve uma vez que fui na casa de um amigo, o Rúbio, ele deve ter lá seus quarenta e poucos anos, eu não sei direito...
Mas a casa dele é bem atraente, com umas coisas bem bacanas e tal, mas ele tem um problema de estar sempre fechado em casa, talvez ele tenha medo de que as pessoas descubram o que ele tem.
No dia que fui conversar com ele e tal, fez questão de me mostrar suas coletâneas: Legião Urbana, Belchior, Pink Floyd, Iron Maiden e todas essas coisas.
Mas o Rúbio é engraçado, ele nunca puxa conversa com você, digo engraçado porque com todas  aquelas coisas eu iria querer é ter muita gente para conversar, sabe? Mas o Rúbio, não. Ele tá sempre calado (às vezes dá até pena). Só que quando tentamos conversar com ele, ele te responde como se tivesse sempre fugindo. Consegue imaginar?
Eu fico louquinho para tirar tudo o que ele tem e levar para fora, só para o Rúbio abrir um pouco a casa, para variar.
E a lari não é nada disso. Ela é bem Hilda Hilst, se você quer saber a verdade. Mas, não sei se te falei, o poeta preferido dela é o Drummond e sempre arranja uma forma de colocar alguma coisa dele entre a nossa conversa e tal.
Uma vez ela me contou que gostava dele porque não falava de amor e todas essas coisas só para ficar tentando ser mais conhecido.
- Ele é mais humano. Você entende quando falo que ele é humano, Rafa?
- Lógico que entendo que é humano, oras! Na verdade, eu não sabia muito bem o que a lari estava querendo dizer. Nunca pensei nessa questão e tal. Fiquei imaginando se o Fernando Pessoa seria humano. Uma vez a professora Célia disse que há escritores que ela custa acreditar que foram feitos como a gente, sabe? De carne e osso.
- Quero dizer, Rafa, que ele tem o problema de gente. Os poemas dele são sempre tão pertinho de nós.
Eu também aprendi a gostar de Drummond de tanto que a lari me enchia o saco falando sobre suas impressões com seus poemas e tal.
Mas, se você quer saber a verdade, eu e a lari só nos aproximamos do Drummond pelo seu olhar de criança que encontrávamos nos poemas, isso nos encantava. Principalmente à lari, e ela acabou se aproveitando disso.
- Ele me parece que nunca cresceu ou algo assim.
- Ele nunca cresce. Não como todos os adultos.
A lari tinha uma mania de falar dos escritores, mesmo mortos, como se eles ainda estivessem vivos. Ela dizia que não conseguia falar deles pelo passado de tão íntimos que se tornavam.
- Eu posso ler um poema antes da gente ir para a escola? Por favor! Juro que é só unzinho. Ó, vou escolher... hum, deixa eu ver. Ah, esse aqui: Infância. Você vai gostar.
Enquanto a lari lia o poema toda animadinha e tal, fiquei olhando para ela e lembrando de uma história sobre as pessoas indo para o alto da montanha. Eles só olhavam para o alto, sempre em frente, perdendo as vistas do que acontecia ao redor delas.
- Lari?
- O que, Rafael? Você nem prestou atenção no poema.
- Prestei, sim! Lógico que prestei.
- Não prestou! Você sempre faz isso.
- Eu prestei, sim, merda! Não tenho culpa se você quer que eu preste atenção numa coisa só.
- Tá bom. Você acha que não sou vivinha com você.
- Ah, quer saber? Desisti dessa merda de falar.
- Agora, fala! Daqui a pouco temos de ir para a escola. Você vai!
Quando a lari coloca uma coisa na cabeça é difícil de tirar e tal. É claro que eu não iria para a escola, ainda não estava querendo passar horas naquelas aulas inúteis! Só que não falei nada para a lari, sabe? Não queria que ela ficasse chateada e tentando me fazer me sentir culpado.
Eu também não prossegui com a conversa, mas o que eu queria dizer é que a imagem das pessoas não parava de passar na minha cabeça enquanto andávamos para ir à escola.
É que enquanto andávamos na rua, todo mundo estava fazendo o mesmo percurso da montanha, sem prestarem atenção ao seu redor.
Até que uma mulher toda desesperada esbarrou em mim que me levou para trás. Ela pediu desculpas e tal, confesso que fiquei irritado com aquela mulher. Mas quando olhei para ela, percebi que era uma cega esbarrando em todo mundo.

III
Chegando à escola, eu fingi alguns passos até a sala de aula para despistar a lari e depois voltar quando estivesse bem pertinho de entrar.
Era aula de literatura da professora Célia, e como vocês sabem, eu gosto dela, ela é bem legal e tudo, mas acontece é que chega uma hora que falar de escritores dentro de uma sala fica muito chato, não acho que devemos ler sempre dentro da sala de aula. Imagina! Ter que ler poetas trancado. Isso me aborrece para diabo.
Eu não quis ir para outro lugar que não fosse dar uma volta pela minha cidade (às vezes fazia isso para que passasse o tempo quando desistia das aulas). Só que eu não sei se já te contei, mas a minha cidade é bem pequena e tal, quer dizer, não é daquelas cidades privilegiadas e tudo mais.
A única coisa que é igual a essas cidades maiores são os idiotas na praça ouvindo um som bem do ruim no último volume. Meu Deus! É o tipo de coisa que me dá vontade de sumir. Eu acho que você já deve imaginar que pouca coisa me atrai aqui.
Só que nem tudo é tão ruim assim, se você quer saber a verdade. Por exemplo, em frente a essa praça tem uma igreja. Ela bem bonita e tal, até demais para uma cidade feia como essa.
Eu nunca me interessei em entrar nela, para falar a verdade. Só uma vez com a mamãe, quando ela achava que eu devia receber uma educação religiosa e tal. Ela sempre me dizia que eu “deveria ter mais Deus no coração para deixar de ser mal criado” e essas bobagens todas.
Mas ela também nunca mais foi para igreja nenhuma. É que mamãe só queria que eu fosse para fazer amizades com “pessoas legais”. Para ela eu sempre fazia amizades com pessoas de “má influência”. Só que nenhuma pessoa daquela igreja era legal! Eles não fazem amizade com quem não sabe rezar, e eu não conhecia nenhuma palavrinha daquelas coisas, oração, nadinha!
Mas como eu não sabia para onde ir, acabei entrando naquele lugar só para poder matar o tempo.
A igreja até que tinha um clima bem legal por causa do som de órgão e tal, isso me deu mais um motivo para ficar, então sentei bem em frente do altar para ficar observando as pinturas na parede.
Eu não sabia, mas estávamos pertinho do horário da missa e tal, as pessoas iam chegando e todas elas faziam o mesmo ritual: chegava até a porta, se ajoelhavam, faziam o sinal da cruz e iam se sentar.
As pessoas eram bem diferentes da igreja e tal. Quer dizer, elas não tinham a mesma beleza, não eram pessoas que chamariam a nossa atenção, sabe? Isso me perturbou e fiquei com vontade de ir embora. Que desespero do cacete! Estava a ponto de desmaiar.
- Meu jovem, você está bem?
O padre chegou por trás de mim de repente que levei um susto.
- Sim, só fiquei meio tonto, sei lá...
- Você não está com a cara boa. Senta aqui que eu vou trazer água.
O padre tinha uma fala bem baixinha como se quisesse ser algum tipo de amigo íntimo e tal. Confesso que achei até bacaninha da parte dele.
Ele estava trazendo a água e só aí que fui reparar que a cara dele era bem engraçada. Barbudo, com um rosto arredondado. A cara dele aparentava alguém que estava sempre pronto para lhe dar uma bronca ou algo do tipo, mas me pareceu alguém que pudesse confiar.
- Toma, meu jovem. Beba.
Meu Deus do céu! Tomei aquela água como se estivesse engolindo uma pedra.
- Eu conheço você, sabia? Lembro de quando veio com a sua mãe. Por acaso, ela está bem?
- Ah, está sim.
Eu não estava querendo falar muito sobre ela, e o Padre percebeu isso. Também percebeu que eu não parava de olhar para as pessoas rezando nos bancos.
- Aquilo te incomoda?
- Não sei, não. Eu acho que sim.
O padre me olhou com uma cara estranha e tal, mais estranha do que já era, se você quer saber a verdade.
- Deve ser por isso que a sua mãe veio aqui uma vez reclamando que você nunca vem à igreja.
Olha, confesso que aquilo me deixou bastante irritado. Mamãe tem essas manias de fazer as coisas por mim sem nem mesmo saber, e isso é um pé no saco.
- Ela nem me conhece.
- Aposto que não, meu jovem. E você não quer também, não é mesmo?
- Não sei.
O padre começou a dar risada daquelas de quando achamos que estamos começando a descobrir algo que há muito tempo queríamos saber e tal.
- Você é jovem, não tem a obrigação de nada ainda, não precisa sofrer antecipadamente desse jeito.
Ele estava começando a ficar animado para começar a m dar os típicos conselhos, eu não estava com paciência, sabe? Mas também estava com preguiça de interromper, então deixei ele falando lá as coisas dele e tal.
- Sua mãe veio falar para mim que você não se preocupa com o seu futuro, mas se eu puder arriscar a dizer algo, posso lhe afirmar que você se preocupa até demais.
Achei tão esquisito o que o padre falou que eu resolvi dar uma chance para algum tipo de conversa.
- Mamãe diz que eu sou um pecador por não pensar muito no meu futuro.
- Você se importa, meu jovem?
- Não sei, mas não acho que ela esteja errada.
- Creio que não, mas posso lhe revelar um segredo?
O padre ficou com as pernas cruzadas e uma mão no queixo. Acho que ele queria mostrar que era uma revelação importante.
- Os pecados são importantes, sabia?
- É?
- É, sim. Olha só, você pode querer pensar que Deus irá te salvar com a inexistência do pecado, mas é importante que, nós, humanos pensemos na terra porque é aqui que pertencemos e não há como ser um bom homem sem pecar.
Eu não estava entendendo muito bem aonde ele queria chegar, sabe? Por isso, continuei ouvindo-o atentamente e tal.
- O que eu quero dizer, meu filho, é que um homem evitando o pecado ele não estará salvo.
- Por que isso?
- Porque, ao se considerar com ausência de pecados, os homens julgam ser tão santos que se colocam ao lado de Deus. Assim eles se tornam destrutíveis. Não há verdade nisto tudo. Deus sabe que não somos autênticos e que o que nos move é apenas a liberdade de nossos pecados. O pior: não sabemos disso também.
Eu fiquei calado enquanto ele falava e tudo. Achei bacana o que ele disse, mas não falei mais nada com ele.
Só que mais tarde ele me convidou para assistir uma missa que logo iria começar. Eu acabei ficando. Achei que pudesse valer a pena. Mas durante a missa foi como se o padre fosse outra pessoa, mais distante e falava tudo que as pessoas queriam ouvir, coisas normais de uma missa. Nem parecia aquele que estava me falando de pecado há alguns minutos.
Voltei a me sentir esquisito e tal, nem prestava mais atenção na missa, nem nas pessoas, muito menos no que o padre estava dizendo. Só torci para que o tempo passasse logo.
Quando a missa acabou, fui me despedir, mas ele insistiu que eu ficasse lá e isso me aborreceu.
- É sério, eu preciso ir. Obrigado pela conversa, mas preciso ir mesmo. Eu estava todo desesperado e tal, estava me tremendo todo e não sei se ele reparou.
- Calma, meu jovem, fica um pouco mais. Gostei de conversar com você. Ah, vocês jovens tem um jeito tão rebelde, mal sabem o que é o amor.
Ele começou a mexer no meu cabelo e tal, me dizendo o quanto eu “precisava me descobrir”. Nossa! Eu saí correndo de lá.
Aquele papo de que todo jovem é rebelde e de que nos falta amor eu nem quis ouvir. Quanta bobagem daquele velho. 

__________________________________
 E continua...

Alessandro Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.