A história de um Ménage | Conto Eveline Orfield

 por Eveline Orfield__

Foto de Jr Korpa na Unsplash


Anna saltara cedo do comboio naquela tarde. De esguelha, passara os olhos por sobre uma murta ressecada na travessia. Com azáfama, cruzou a pontezinha de concreto rústico e chegou à portaria do prédio. Pôs a chave no portãozinho e o abriu. O sol ia altaneiro. 

Com um passo perdido, a mulher caminhou até o apartamento de térreo. Outra vez: chave e fechadura; uma metáfora lânguida de sua própria luxúria. Lá dentro, apressou-se em ir ao banheiro e se lavar. 

O coração bate com pressa. Uma ânsia febril percorre seu corpo em ondas de arrepio. Ia vê-lo noutro dia. Mas, como surgira a oportunidade, aceitara. Quem ia imaginar isso.... O Paulo e o José amigos.... Como era possível?

Conhecera a ambos pelo aplicativo, algo que lhe deixava preocupada e insegura. Coisa estranha é esse cardápio de gente -pensava-. Volvia. Mas era ele de um corpo esculpido, peito liso e abdômen lapidado. Tinha cabelo fino e curto...era homem inteiro. Transbordava de um fogo que luzia nos olhos agudos de advogado. José. 

Já o outro era sua antípoda. Paulo era selvático por excelência. Tinha uma tatuagem no pescoço, cabelo tingido e um corpo peludo retinto. Era como um cão, ela pensava... um lobo talvez, cuja boca carnuda ensejava fúria e desejo. Se tremia às vezes em pensar nele. Em ser sua, violentamente sua. E seria. 

Mas, agora, porque o destino era caprichoso, descobrira que eram eles amigos.  E de longa data. Daí o convite foi elementar. Aceitou. 

Às cinco, José ia buscá-la. Era o primeiro encontro. E já começaria tudo assim, como sob um leitmotiv de Strauss... era doce. Era! Mas também tinha algo de animal, desejo feminino astuto e indomável. Tentara muito segurá-lo, mas sem sucesso. Queria ser ....

-Mas há que ser moça de família. –

Não queria. 

Queria mesmo ser puta. Daquelas que dormem com dez homens numa noite e dançam peladas na mesa só para que a vejam. E pensar que era professora! Quem iria supor...

-Anna! Que estupidez agora! Sair com dois homens, assim...como uma meretriz barata. Uma quenga sem valor. – Brandia em silêncio nos pensamentos feminis. 

Advinha-lhe a voz da mãe na cabeça. A mulher de cabelo branco meio desgrenhado dizendo que era boa moça, que se casara virgem e tivera à Annita e a mais três filhos de parto normal. Ela...mamá, uma senhora absoluta, epíteto da lei e da moralidade. 

-Mas ela também não deixava de levar uma leitada na cara, não é? Como é que eu nasci e fui concebida, senão através de sexo.... É natural. Simples como é simples que amanhece e anoitece. -

Ai, mas se esgueirava. Do que? ...

Com languidez orgástica, um silêncio atravessou o apartamento. Suspirou. 

Mas eu quero. É isso, apenas... e porque sou livre. Terrivelmente livre. Uma avezinha perdida em meio à floresta. E havia galhos também. Muitos galhos para se sentar e nos quais pendurar-se. 

Estava só. Não seria lá. Ele ia busca-la para irem juntos ao motel. Qual era mesmo? Era um nome tonto, ela achava...coisinha em francês sem muito sentido. -Acho que era Papillon...- 

-Ai, Anna...que está fazendo? – Inquiriu-se. Não soube responder. 

Lá fora, dois gatos se recolhiam no jardim. Era isso também, pois a natureza não se envergonha de amar às claras mesmo, sem pudor ou vergonha de ser, brutalmente, apenas o que se é. Mas saberia, medrosa e tímida, ser? Justo ela, que era toda um suave fingimento? 

Mirou as pernas. Estavam lisas e ardiam do pós-depilação. A intimidade lhe coçava um pouco. Suava. Torceu as mãos com impaciência. Por que não chegava logo? Se estivesse diante de sua nudez, de sua verdade última, não se ia intimidar de ser abrupto susto de devassidão, algo estranho. Não conhecia a si por isso. E não sabia o quanto não lhe assustava estar diante de .... 

-De que mesmo? –

Lembrara-se de ouvir algo sobre um livro de Marguerite Duras na faculdade.  O sentido, porém, se lhe havia esvaído, restando somente um olhar impreciso sobre uma capa dura azul de um livrinho fino. O comprara em uma feira numa cidadezinha de clima fresco entre os morros. 

O coração, de quando em vez, saltava. Tremia-lhe no peito uma ansiedade pueril. Mas ansiedade mesma, coisa de mulher adulta. 

O que desejava, afinal? Se bem que querer e desejar –sabia- são coisas tão distintas.... um calor, quentura da alma borbulhou na intimidade. 

-Não é, também, como se eu nunca tivesse feito isso...- 

E a memória.... Fizera-o com o noivo; agora ex-noivo... deixara-se ser gravada por ele, como um gato selvagem que, sem ser domesticado, deixa-se acarinhar. Era por desejo também que se deixava agredir na hora até ter uns tantos roxos. Mas quem suporia que um gentleman como o Augusto seria assim? Não!..... 

Contudo, o seu sim era de uma brutal violência: um jorro de água cristalina irrompendo de uma represa.... cidade inundada. 

Fora assim: primeiro, o vídeo. E o pensamento que ia longe refletindo, em uma filosófica solidão... que ato de sublime vulgaridade: sentir toda a espessura do membro rijo corpo-a-dentro... um átimo de Deus e do Diabo!

Daí a se ajoelhar para eles e estar como beduína sedenta com os paus na boca..... e mais... saíra então com as pernas bambas de tanto que lhe meteram. Aleluia!? 

É! Aleluia contam os anjos em gozo celestial. Era a mais intensa manifestação do sagrado. 

Um click. 

“Chego em cinco minutos.” 

Novo suspiro. Como se o chão se abrisse..... 

-É, Anna. É só aproveitar. Não há por que temer. É a nutriz da vida, a própria natureza humana e selvática, do mesmo jeito que é uma criança congolesa mergulhando no rio para fugir do calor. 

Anna mordeu a ponta do indicador sem dar-se conta de que o fazia. 

-Que fatal debilidade essa sua! – ouviu-se dizer não sabia bem se para si. – És uma tola, Anna! Uma tola! – 

E repensava, no que eram segundos, o que pareciam horas de pensamentos desfiados. A desrazão somente, agulha grossa de barbante, é que juntava e cosia o fervor da inconsciência.

Novo click. 

“Cheguei.” 

.....................................................Raios de calor!

“Saindo.”

Ela calçou a sapatilha. Meteu a chave na fechadura. Trancou. Pezinhos de mulher estalaram pelo pátio. Saiu. 

Um carro branco a esperava na rua. 

Abriu a porta com um novo ruído. Suspirou. Mirou. 

-Oi! – Ele sorriu. 

Levava uma camisa de algodão branco e calça social. Não poderia ser mais judicial. 

-Oi. Tudo bem? – disse a mulher sentindo-se como criança que, pela primeira vez, interage com um de fora de sua família. Com desconforto, engolira em seco a vergonha de não saber o que dizer. 

-Melhor agora, gatinha. – respondeu José. 

Segurança! Pensou ela. Ele tinha uma segurança de caçador diante de um cervo abatido. 

Uma mão peluda e áspera tocou seu ombro. 

-Eai! Bom? – a voz profunda e grave de Paulo soou pelo carro. 

Sentindo-se gelada de um não-sei-que, ela pegou-lhe na mão. 

-Melhor agora! – repetiu com sua vozinha estrídula. 

Um riso amarelo. Palavras ocas. 

No pensamento, borbulhava um regato de lava embrasada. Digladiavam-se desejo e pudor. 

-Sou uma inocente prostituta. – Pensou e quis rir-se. 

-Quem tem o pau maior? Quero começar por ele para já me acostumar. – disse Anna como em sonho. 

José riu. 

-É ele, com certeza. – 

Uma mordida no lábio. 

Sentiu o hálito morno do outro atrás de seu pescoço. A mão de José, alva e aguda, manejava a borracha preta e cilíndrica do volante. De quando em vez, dava uns giros. Segurava com firmeza. Olhava o retrovisor. Luzes e movimento. 

-Um homem inteiro. – Tornou a pensar. 

Enfim, não sabendo por que ou de que forma, o carro parou. Diante dos três, abria-se um portão branco sob as luzes vermelhas. Um letreiro cintilante anunciava “Motel Papillon”. 

Rodas escuras e voluptuosas passaram sobre um chão de ladrilhos. Grama e flores. 

  1. 02. 03..... 

Parou. Um portãozinho se ergueu e o carro pôs-se na garagem. Fechou. 

Desceu tremendo e bambeando. Um sentimento panegírico tomava conta de Anna. Sabia que o mundo era vastidão e a plenitude de ser. Mas era de uma brutal insignificação o momento e o sentir..... estava sozinha em alguma medida também, pois o corpo é o indelegável do eu; o que não se pode abstrair.... 

Entraram. Um beijo de súbitas. 

Roupas caíram no chão. 

O ar condicionado titilava na parede. ... ... ... ...

Com o membro na boca, sufocou por um instante. Os dois homens a tocavam como a uma boneca sem vontades. Lábios, línguas e barbas....

Uma dor aguda rasgou seu ventre. Quis fugir. Aguentou. Gemeu como gemem as gatas no telhado. Mas foi gemido de dor, dos torturados na masmorra. Um frio rompeu suas entranhas. Pensava, mas não identificaria no que.... se esvaía todo desejo.

Asfixia: dança de fleumas contristantes.  

Subitamente, José parou o movimento. A mirou com repugnância. Um odor pesado fez espairecer todo o desejo. 

Anna sentiu que lhe atravessava uma onda de vergonha. 

Foram ao banheiro. Os homens, como num pacto secreto, se beijaram: Paulo tomando o outro pela cintura.... “Um homem completo!” Pensou a mulher. “Um homem dos pés à cabeça....” 

Tentou, sem jeito, ajoelhar-se entre eles; beijar-lhes os pés; participar, ainda que em sua vazia servidão, da poesia de seus corpos. 

-Desculpe. Já preciso voltar. – Disse Paulo. 

-Já? ..... – Murmurou como uma menina que, sem dar-se conta, via precipitar-se no chão sua única fatia de bolo.....

Uma solidão invadiu a mulher. 

Deixaram-na na porta do prédio. 

Outra vez dentro do apartamento, olhou em volta e quis sorrir. Falhou. Sentia-se, afinal, uma prostituta barata, vazia....vazia de si....

Diante do espelho do quarto, deitada na própria cama, tocou a si mesma sem prazer.



Eveline Orfield
 é o heterônimo de Ariel Montes Lima. Jovem escritora britânica, nascida em Harfax, Eveline formou-se em Literatura pela Universidade de Londres, onde iniciou seus primeiros experimentos com a escrita fragmentária e introspectiva. Influenciada por nomes como Marguerite Duras, James Joyce e Virginia Woolf, desenvolve uma prosa marcada pela fluidez da consciência, pela musicalidade das imagens e pela evocação de memórias íntimas e espaços afetivos.