A negra cor das palavras, de Alexandra Vieira de Almeida


por Adriane Garcia___


Tema tão antigo quanto atual no Brasil é a questão da mestiçagem. Assunto também espinhoso, já que pelo viés da mestiçagem pode-se chegar à falsa conclusão de que há ou já houve democracia racial no país. Não existe relação harmoniosa entre negros e brancos quando o encarceramento no país e o genocídio da juventude mostram números alarmantes de pessoas negras vitimadas. O racismo no país é absolutamente escancarado. A despeito de todo o processo de mistura das etnias, indígena, negra, asiática, branca, o Brasil introjetou os valores do europeu: branco, cristão, masculino, heterossexual como o modo de vida válido, pois é aquele que ocupa as posições de poder e elaboração das regras.
Assim, da mesma forma que a miscigenação é uma marca da sociedade brasileira, ela funciona muito mais para apagar as origens e a memória étnica de cada um do que para fortalecer a busca das raízes. É tantas vezes usada como argumento para negar o racismo, o que acaba por fortalecê-lo, já que o “branqueamento” da população quis se estabelecer historicamente, inclusive como política pública. Esse branqueamento não se dá somente pelas vias biológicas, mas por labirintos psicológicos em que todo um padrão de beleza e comportamento é ditado cotidianamente, há séculos, nos meios disponíveis de comunicação e repetidos nos gestos da sociedade. A mensagem é a de que somente o branco é bonito, competente, perfeito, superior. Essa mensagem é um mecanismo poderoso que precisa ser desmontado, pois trabalha para impedir a tomada de consciência do valor próprio de cada etnia e mantém o status quo excludente, impedindo que as minorias exijam e obtenham o que lhes é de direito. 
A desigualdade social no Brasil está intimamente ligada à questão racial, refletindo o imperdoável processo de escravidão e a forma negligente com que o Estado proclamou a abolição, sem indenizar os escravizados e suas famílias e sem criar mecanismos de inclusão para aqueles que deveriam ocupar os postos de trabalho assalariados, mas cujas vagas foram reservadas para a imigração branca. O país de hoje colhe as consequências de seu passado escravocrata e admitir o racismo para poder lutar contra ele é tão urgente quanto encontrar na miscigenação o orgulho por ter uma ancestralidade não branca. Pensar a miscigenação é pensar também o colorismo, afinal o racismo no Brasil se estabelece e se estrutura em torno do visível, quanto mais melanina possui a pele de um ser humano, mais ele é excluído nas relações sociais e mais está fadado a ser vítima da necropolítica estabelecida no país.
A poesia anda incomodada com tudo. Do incômodo, as poetas e os poetas escrevem sobre os temas mais variados. Neste A negra cor das palavras, de Alexandra Vieira de Almeida, o primeiro poema, Sobre a beleza do negro, traz a procura da poeta desta miscigenação em si mesma, das raízes negras deste eu-lírico, dos traços físicos, da presença dos orixás. “Minha escrita é meu orixá”, aponta em outro poema, no desdobramento da leitura. Assim, sol e lua, dia e noite, a poeta olha pelo antagonismo e pela complementariedade das cores.
Metalinguisticamente, Alexandra Vieira de Almeida usa o preto como a tinta (força), “A negra cor das palavras” e o branco como a cor da página vazia; assim como o esmaecimento da cor está ligado à perda da memória. Também há o aproveitamento das muitas expressões em que a palavra negro/negra é utilizada ou do destaque às substâncias escuras como chocolate, tulipa negra, a bile negra (melancolia), o pássaro negro. A escuridão é uma condição para o laboratório de criação dos seres, assim como a penumbra acolhe os encontros.
Alexandra Vieira de Almeida conta com muitas imagens poéticas, como nos versos “Não digo o verbo de espinhos/ qual sangue que fere o tempo/ Digo a palavra bruta/ que tece os terçóis do sol”. Há nos versos uma profusão de cores e formas, frequentam-nos o sol, a lua, mandalas de rosas, vento, cidades submarinas, florestas, faróis, elefantes, labirintos, arco-íris, cavalos brancos, submarino, carvão, morcegos soturnos. A cor negra explorada para a subjetivação.
O livro traz a recorrência maior de três cores, preto, azul e vermelho. A violência contra o homem negro destaca a cor vermelha (de sangue) como sinal da morte, do racismo e da intolerância. Há também a recorrência da palavra açoite. Na forma, os poemas de Alexandra Vieira de Almeida podem trazer a clareza dos versos objetivos, assim como trabalhar com a exploração do simbólico, sentidos ocultos, a sugestão das coisas, a correspondência delas: “O fogo ardia por dentro/ Os seres paginavam um mistério/ Minha visão era um olho cego/ Como contornar o horizonte?”
Em O Arco e a Lira, Octavio Paz escreve que “A revelação não descobre algo exterior, que estava aí, alheio; o ato de descobrir entranha a criação do que vai ser descoberto: nosso próprio ser. Nesse sentido, pode-se dizer, sem temor de incorrer em contradição, que o poeta cria o ser”. No caso de A negra cor das palavras, a poeta parte de uma reflexão sobre a mestiçagem para descobrir-se a si.


SOBRE A BELEZA DO NEGRO

A negritude em sua essência
não igual ao branco da página
mas à construção do sentido
ao verbo em toda sua inteireza

Nas cavernas da memória/esquecimento
o negro se traduz nas pinturas mais inusitadas

Os complementos como num jogo de xadrez
num duelar mais original, sem mortes súbitas
mas as peles que se revestem
na conjuntura do mundo

As faces se intercalam
murmurando um mosaico de vozes

O branco e o negro
são a mistura
que convive no meu peito aceso
pela chama da miscigenação
pela vida que se abisma em mar de desejos

As peças são moldadas pela visão
de um paraíso em sol do sim
de um deserto/cidade
atropelados pela memória cinzenta
que obscurece as lãs das nuvens mais velhas

Quero o retrato em preto e branco
posto ao meu lado
para me lembrar de minha negritude
que se enrola nos meus cachos negros
e no meu nariz de batata

Vivo o agora
que é a tintura claro-escura
do final da tarde, unindo os dois versos
as duas cores paridas pelo sol e pela lua
pelo dia e pela noite

O meu verso tem que ser força negra
que não arraste o branco da página
para o caos
mas para uma ordem
dos amantes
do fraterno jogo que irrompe do vazio
fazendo-se lenda da eterna palavra.


O AVESSO DA HISTÓRIA
No branco da manhã lépida
Escondo uma história da cor da noite
Em que o avesso dos dias
Costura a urdidura de um sol negro.

***
A negra cor das palavras
Alexandra Vieira de Almeida
Poesia
Penalux
2020
Você pode também acessar essa resenha em : OS LIVROS QUE EU LI
            ______________________________________________________________



Alexandra Vieira de Almeida, nasceu no Rio de Janeiro, professora, poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta, e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Publicou seis livros de poesia adulta, sendo o primeiro “40 poemas” e o mais recente “A negra cor das palavras”. Também tem um livro ensaístico, “Literatura, mito e identidade nacional” (2008), e um infantil, para crianças de 6 a 10 anos, “Xandrinha em: o jardim aberto” (Penalux, 2017).
                  __________________________________________________

Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018).