Rubi, conto de Wellington Amancio da Silva

 por Wellington Amancio da Silva__





Para Francesco Aprile



Mais do que ser estruturado como uma linguagem, o inconsciente é uma fala que depõe o próprio falar de si do sujeito.”.

                                            Vladimir Safatle


É importante informar que me chamavam de Rubi. Eu detestava esse nome. Prefiro ser chamado de Dognald, que é mais imponente. Pode não parecer, mas também gosto de nomes estrangeiros. Nas tardes de passeio, enquanto o moleque de 12 anos me chamava de Rubi, eu me chamava de Dognald. Um nome é a identidade que eu decida para mim.

Por lá, no primeiro ano me senti um conde, um cachorro amado e para o qual convergiam todas as atenções. Eu estava cheio de direitos, como todos os viventes deste mundo, e era afeito a brincadeiras, até que certa vez, sem querer, quebrei um jarro e apanhei, recebendo dois tapas1 sobre o dorso. Isso ocorreu em meu segundo ano, ali, e confesso a você que nem dormi à noite. Mas eu não viveria meu terceiro ano entre eles, daquela forma. Eu estava decidido, porque ouvia reclamações de vez em quando e comia uns rango ruins, pode crer. Acho que eles pensavam que quando crescesse eu seria um “cão de caça”, para buscar preás nos buracos da sua chácara, mas não, eu não sou um “cão de caça”; eu sou um cão vadio, que deseja procurar pelos colegas a cada rua que perambula. Ninguém decida o que sou!

Para ser sincero e preciso, três meses antes do meu terceiro ano, decido fugir e fugi, porque lá me davam apenas batata doce cozida com ovos ou ração de gato. Eu gosto de peixe, não tem jeito. Eu gosto de qualquer tipo de peixe. Meu dono não entendeu em meus olhos que ração para gatos sabor peixe não é peixe. Por causa disso ele me perdeu para sempre. Eu sou hoje um genuíno street dog. E vivo a possibilidade constante de encontrar pedaços de peixe por aí. E eu não ando sozinho!

Pelas ruas eles me chamavam de maloqueiro. Diversas vozes me chamavam de maloqueiro. Eu sou mesmo nascido e criado maloqueiro — não vejo mal nisto. Mas, é preciso saber que um cachorro maloqueiro é muito menos pecador do que um ser humano maloqueiro, ou mesmo um ser humano “de bem”. Para que se saiba, quando logo saí de casa, para nunca mais voltar, fui residir em qualquer recando escondido perto da feira, que é o melhor lugar para realizar a vontade de comer peixes.

Eu vejo as ruas como entradas e saídas amplas para qualquer lugar. Dizem que ruas têm nome; para mim pouco importa... se ao menos fossem nomes estrangeiros, ou nomes de cachorros importantes, como Snowy, Toby, Jip, Cabal, Laika Naná ou Baleia.

Eu ando pelas ruas, sempre em bandos. Se ando sozinho, sigo com sede, se ando em bando seguimos sedentos, porque em nenhuma rua há água para beber, você já notou? a não ser que chova, mas aqui pouco chove, porque é sertão e é Alagoas!

Pelas ruas difícil é lidar com carros e motos, porque ou somos meio desligados. Somos bastante medrosos, sobretudo diante de um caminhão; por causa do medo, nos precipitamos em meio às rodas de algum carro; por causa da desatenção às vezes é tarde demais para os pneus. Desconheço entre os meus colegas um que não tenha se acidentado em meio a motos e carros. As ruas são difíceis, todavia, precisamos seguir andando, sobretudo porque há sempre um entre nós que se ausenta, por isso procuramos por ele até um dia encontrá-lo. Para falar a verdade, um cachorro faz somente uma coisa séria nesta vida — procurar o colega ausente.

A vida só não é bela porque nosso fígado ainda é demasiadamente funcional. Penso que um cachorro de rua não pode ter um fígado demasiadamente funcional. Você nem imagina, mas com um fígado desses nossa vesícula acaba produzindo muito, muito suco gástrico, causando muita fome e muita azia, e não é só por causa da sede que andamos com a língua de fora. As velhinhas de antigamente diziam que o nosso mal era essa “fome canina”, e que nossa língua para fora é um sinal de libido canino, meio bacante, desavergonhado e no meio da rua, num encaixe persistente. Ora, a “fome canina” era uma expressão maldita que as pessoas evitavam falar ou se referir à outras pessoas, mas a nós, não, sobretudo nós, da rua, os malditos e indesejáveis de presença. De todo modo, eu sempre achei que a “fome canina” fosse uma coisa de humanos, uma forma vulgar e persistente, incurável, de corrupção da coisas.

Ora, quando não há peixe qualquer coisa me serve, porque há sempre um lixo ou outro em qualquer lugar. Há sacolas recheadas de tudo neste mundo, desde pães de queijo à mortadela vencida e presunto, até grampos, papeis com poesias eróticas, pedaços de vidro, drágeas para dores de cabeça, pentelhos clareados com água oxigenada. Já vi, aliás, uma colega cadela “fazendo as compras”, passeando com uma sacola graúda, dependurada na boca. Vi cachorro pequeno dentro e sacola grande, como um ricaço habitando numa casa hi-tech, e vi cachorro sufocando com a cabeça socada numa garrafa pet cortada pela metade.

Me lembro! Nietzsche disse: “Nenhuma pequena sandice! Nenhum tipo modesto de imodéstia!”. Sendo assim, eu gosto de restos de pizza, sanduíches, churrascos (não gosto de hot dog, porque não sou como os antropofagistas da semana de 22). Outro alimento muito desejado, sobretudo nos momentos de escassez, é o polímero superabsorvente, o poliacrilato de sódio, que descobri esses dias — é aquele material sintético presente em fraudas descartáveis. Tal alimento realmente enche meu estômago. Eu realmente vejo sua eficácia, eu vejo meu bucho inchar em menos de um minuto. E após o rango, busco uma sobra e durmo como um urso de desenho animado.

Quero contar um segredo, mas não diga a ninguém! Só um momento, por favor... vamos ver se eu consigo... pois bem — eu nunca saí com uma cadela. Nunca, nunca, nunca. Às vezes me sinto triste, feio ou impotente, mas, nem sempre me importo com isso, que sou donzelo. Você já deve imaginar que vou vivendo a vida com certas carências... Quando eu era muito jovem, perdi meus balangandãs numa briga — quase me mata um cachorro grande e impiedoso. Foi apenas uma mordida bem colocada, e depois disso, nunca mais quis ensaiar remexer a cintura para cima de postes, tambores, caixas, ursinhos felpudos, travesseiros e depois às cadelas. Não posso ter filhos, não tenho cio, não tenho nada, sou quase um monge franciscano, um asceta! porém, definitivamente eu não ligo para essas coisas, porque não sou muito religioso.

Como você deve imaginar, caro leitor, um cachorro vive muita coisa nesta vida, durante seus dez anos de existência sartriana. Eu, porém, muito mais vi do que vivi. Contra o tédio que se repete em nossas vidas caninas, de idas vindas de cada dia, muitas dessas aventuras são quase inefáveis, sendo que não há muito o que dizer. E há as desventuras, mas estas se apagam logo, porque vivemos numa urgência que é maior que todos nós, porque não a entendemos até hoje. Contudo, há um último fato que preciso narrar aqui — e que não faz parte da minha vivência, mas das minhas perscrutações e bisbilhotagens caninas. Estava eu, de madrugada, observando a Lua (não como os amantes observam, mas ao meu modo canino, de achar em seu brilho alguma redenção). Iam passando dois jovens de preto, roqueiros, e por isso mesmo me senti seguro, ali no meio da rua, e quando se aproximaram, de modo que praticamente estive no meio das pernas deles, detectei no semblante de um deles um velho conhecido — era o meu antigo dono, aquele jovem que deixei para trás com mais ou menos 14 anos. Estava ali, com cara de 18 anos. Parou à minha frente e segurou com força o pulso do amigo. Ele disse — “Olha, mano! É Rubi. Só pode ser meu cachorro Rubi!”. Seu colega vestido de preto perguntou o que “tava rolando”. Ele respondeu muito agitado — “É o meu cachorro, cara! É o cachorro da minha infância, cara! Ele sumiu quando eu era um menino! Eu pensava que ele tinha morrido! Eu sentia a falta dele por muito tempo, cara! Eu o encontrei! Vamos levá-lo para casa!?” Seu colega concordou em ajudá-lo a me ter de volta, a me “levar para casa”, como disseram. Ora, eu estava morto de sono, cansado de ter andado tanto, por isso nem me importei muito em ser carregado nos braços, por aquele rapaz vestido de preto e que tinha os olhos lacrimosos. Confesso que não pude deixar de sentir comoção, e minha cara estava ridícula, porque eu estava certo que não seria bem recebido, acho que eles haviam me esquecido. Eu imaginava como seria a receptiva, por isso meu coração acelerada, e eu deveria ensaiar uma reação mais equilibrada caso houvesse comoção (...balançar o rabo é sempre infalível). Caminharam por cerca de vinte minutos, quando meu antigo dono pediu para o colega retira-lhe as chaves do bolso e abrir a porta. Quando entramos, ele me levou a um quarto e disse — “Mãe, olha o que encontramos!”. A senhora ligou o abajur e esfregou os olhos antes de me olhar demoradamente, quando em seguida se pôs a chorar dizendo “Rubi, Rubi...”. Ligaram a, lâmpada dos fundos e me serviram umas batatas morninhas com ovos. Eu comi tudo, enquanto de cima e com os braços cruzados me olhavam. Eles conversavam baixinho, mas não prestei atenção, porque o rango estava muito bom. E eu nunca presto atenção a nada enquanto estou comendo. Aos poucos, ali num canto da sala, minha memória ia-se clareando: a mesma estante branca abarrotada de livros. O sofá vermelho, a televisão pequena, o quadro amplo do menino triste, na parede. Lembrava que havia uma terceira pessoa naquela família! Era uma senhora sorridente que sempre me servia a ração de gato. Ela não estava ali. Depois soube que havia partido para o céu dos humanos, como eles dizem. Confesso que senti comoção, porque quando passa a presença de alguém, não se pode encontrá-la mais em nenhum lugar — a não ser que adotassem a nossa fé canina, de andar e andar à procura dos nossos amigos desaparecidos.

Me mantive quieto, ali num canto, até amanhecer, e logo que notei a porta aberta (porque o jovem saíra para comprar mães) corri feito um louco deslizando as patas freneticamente sobre o chão de cerâmica e “caí na rua”, sem parar de correr um minuto. E enquanto me afastava, ouvia diminuir aquela voz rouca e grave de adolescente — “Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi! Rubi!”, até apenas ouvir os sons familiares da rua.

Logo me deparei com minha galera e fomos a um lugar que não sei onde, não me importava. Comi a primeira gororoba que encontrei pelo caminho. Eu sei, não havia cura para mim, eu já era outro. Já não me pertenciam os ângulos de uma casa e os afagos de uma família de humanos. Me pertenciam os imprevistos das ruas e o infinito do horizonte. Eu era de cada rua e esquina. Minha família realmente estava lá fora, me esperando ao nascer do dia. Iriamos perambular mais uma vez em busca de rango, diversão e dos velhos amigos. Todavia, eu logo soube que não estava com sorte naquele dia, porque logo percebi que comi alguma coisa indevida. Eu sentia dores agudas no ventre e tontura. Por causa disso, resolvi me afastar da turma para saber o que estava acontecendo dentro de mim. Segui caminho oposto e fui o mais distante possível para qualquer lugar, conforme suportava aquelas dores. Encontrei um lugar relativamente tranquilo para descansar um pouco, e, dali não consegui mais me levantar.

Hoje, ainda estou aqui, sozinho, neste mesmo lugar, sem ter tomado meu café da manhã, sem ter almoçado, sem ter comido um lanchinho, ou bebido água. A boca seca retém na língua este sabor em vão de expectar.





Wellington Amancio da Silva é professor, ecólogo e escritor. Publicou livros de ficção, de ensaios e artigos acadêmicos em lugares interessantes. Destacam-se "Ontologia e Linguagem" (2014), "Figuras da indiferença" (2019), "o reneval" (2018), Primeiros poema soturnos" (2009), "Apoteose de Demerval Carmo-Santo" (2019). Faz parte do editorial da Utsanga (Itália) da Revista de História da UEG, entre outras. Fundou uma editora, as Edições Parresia. Dedica-se à caligrafia assêmica, ao desenho experimental, à fotografia, à infografia, à música mínima e experimental. contato@edicoesparresia.com.br



1 Não entendemos o conceito de “tapa”, mas sabemos que tapa dói.