Resenharia: Mel e dedê, de Fátima Farias

 por Iaranda Barbosa__





Poema e gastronomia. Duas artes que nos versos de Fátima Farias ativam os elementos mnemônicos, giram a chave das emoções e nos fazem nos conectar com a ancestralidade, com nossos antepassados, com nossas raízes e, ao mesmo tempo, com as vivências da atualidade. Mel e dendê apresenta poemas que fazem a pele arrepiar, abre portais para mundos diversos através de palavras que se unem e se transformam em versos carregados de sensualidade, conflitos e muita indignação com as diversas violências as quais a população preta e pobre enfrenta diariamente.

Fátima Farias dosa, tempera, equilibra, adoça, salga, põe acidez e finaliza seus poemas na medida exata daquilo que se propõe a fazer e vai desde versos com claro manifesto – e que tranquilamente podem se transformar em samba, rap, hip hop ou funk –, a versos com alto nível de erudição cujo lirismo é exasperado pela filosofia com um forte teor existencialista ao nos apresentar reflexões sobre a morte, o vazio, a saudade, a solidão, a plenitude, a vida, a culpa, as escolhas, a tristeza, o tempo e o amor.

Do Slam ao sarau, Mel e dendê se encaixa perfeitamente no que diz Sérgio Sampaio, ao afirmar que “um livro de poesia na gaveta não adianta nada / lugar de poesia é na calçada”. Assim, a poesia de Fátima Farias necessita estar em trânsito para ser gritada, cantada, declamada e/ou falada. Seus versos, tanto livres quanto formados por rimas internas, intercaladas, paralelas ou interpoladas, possuem uma força que irrompe barreiras através uma linguagem próxima da fala cotidiana, porém com uma sutileza trabalhada, inclusive, pelos sinais de pontuação que ditam o ritmo da leitura nos fazendo exclamar, interrogar, hesitar.

A musicalidade, assim como a gastronomia, pertencente ao DNA de Fátima Farias, transita rodopiando a métrica por entre estrofes com estruturas de diálogo – incluindo o uso do travessão –, em meio a micropoemas cuja imensidão interpretativa, simbólica, alegórica e metafórica expandem as possibilidades de leitura. Fátima Farias explora as técnicas e as possibilidades do fazer poético e trabalha em seus poemas o jogo de palavras fazendo as paranomásias habitarem os poemas, constrói estrofes simples, compostas, livres e, inclusive, com versos monósticos ou dísticos – assim como quadras, quintilhas e sextilhas, deixando claro o domínio das sílabas poéticas e da intenção formal de cada obra ali apresentada. Os paralelismos semânticos e sintáticos, as anáforas, as catáforas compõem o arranjo rítmico no qual a poeta nos apresenta prosopopeias e personificações, por exemplo, da Morte e do Amor.

Ademais, Mel e dendê, traz em sua composição o processo de escrita (“Cozinhando palavras, por exemplo”), a arte de poetizar, metapoemas cuja voz poética aparece em primeira pessoa e a personificação do poema enquanto amante, com vida e vontade próprias, configurando, assim, a relação íntima e indissociável entre palavra, poema e poeta.

Se por um lado as inquietações de Fátima Farias ganham voz e espaço nas denúncias de violência:


Quero falar

E que minhas palavras

não sejam caladas

alvejadas por gás

balas de borracha

balas de verdade.


Que minha fala não seja silenciada

pelas fardas

liberadas do sistema

para nosso extermínio.

[...]


e de preconceitos e estigmas:


[...]

Também,

diriam alguns,

ela morava na favela,

ali só mora marginal

O que fazia na rua àquela hora?

[...]


elas também surgem como símbolos de resistência:


A Preta saiu da senzala

os cabelos não alisa mais

Resolveu abolir as mordaças

Escravidão ficou lá atrás.


A Preta foi estudar

se armou com uma caneta

Entendeu que sua história

contada pelas mãos brancas

era treta.

[...]


Resistiu

Se aprofundou na sua história

Tinha dados guardados

na memória

Frases

olhares de reprovação


Aqui não é teu lugar, não.


São pra lá, seu vacilão

Também sou dona desse quinhão

Não encosta a mão em mim, não.

[...]


e autoestima:


Meu cabelo quando cresce,

vai direto para o céu

É um universo de pretitude

Ele tem atitude

Não se deixa disfarçar

fica como combinamos

nunca brigamos


Dele nunca me queixo

Não canso de sua crespitude explorar.

Alguns chamam de ninho

sim, ninho de passarinho.

[...]


A preta que foi estudar e o cabelo que obedece remetem, imediata e respectivamente, a Cristiane Sobral e a Carolina Maria de Jesus. Esta, em particular, é referência direta para Fátima Farias, pois habita um de seus poemas (“Relendo Carolina”). A poeta se vê na escritora na cor, na luta, nos cadernos, no cabelo, na mãe, na filha, na mulher, nos traços na escrita, na identidade. Com toda a certeza, muitas mulheres também veem esses e outros traços nos versos de Fátima Farias que, tal qual Carolina Maria de Jesus, chegou ao mundo para pegar o bastão da que veio anteriormente e passá-lo adiante.







Fátima Farias
é poeta, compositora e ativista social. Nasceu em Bagé/RS, filha de Estanislau Farias e Maria de Lourdes Gomes Farias. Tem como profissão a gastronomia inspirada na cozinha tradicional com temperos e ingredientes orgânicos. Participa dos grupos Sopapo Poético, Afrogueto Urbano e Gente de Palavra. Fonte: Literatura;RS







Iaranda Barbosa
, formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (Selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.