O sentido e o fim, de Mike Sullivan

 

por Adriane Garcia__




 

Diz Montaigne que “a meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira?” Cegueira que parece querer ser evitada, no livro O sentido e o fim, de Mike Sullivan, que escreve onze contos, todos eles com histórias que são atravessadas diretamente pela morte, ou por sua iminência.

 

A morte coloca o ser humano diante do questionamento sobre o sentido da vida. Na abertura do livro, é ela mesma quem fala, é sua voz soberana que se apresenta: “Não me encontrarás em cemitérios. Para que me servirá um cadáver? Habito quartos e corredores superlotados dos hospitais, salas de quimioterapia, campos de guerra, conflitos civis, ambulâncias, acidentes em rodovias, atentados terroristas, armas nucleares, tempestades, terremotos, hemorragia, quedas, incêndios, afogamentos, desequilíbrio, surtos psicóticos. Passeio ao lado da fome, nos quatro cantos do planeta. Sou também a salvação dos que têm dores e pressa por alívio imediato.

 

Se seguimos por Montaigne, que ao citar Cícero nos ensina que “filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte”, percebemos que já no primeiro conto de O sentido e o fim, intitulado Dentro de mim há um tempo se esgotando, não há qualquer garantia a respeito. O protagonista é um especialista em pacientes terminais, considerado o maior estudioso de Tanatologia do país, uma vida inteira dedicada a compreender a morte – dos outros – e que agora se vê, ele mesmo, diante do que não compreende: “Pensar em minha própria morte é absurdo demais”. Mike Sullivan trabalha com o paradoxo: escreve sobre a morte, no exercício de pensar sobre ela e, ao mesmo tempo, seu próprio personagem mostra o quanto isso pode ser inútil.

 

Em alguns dos contos é a situação limite da morte que se apresenta, noutros é a sua proximidade ou mesmo aquela morte em vida que acomete tantos. Em Eu não sou louca a mãe acumuladora, provavelmente tomada em algum momento pela síndrome de Diógenes relata seu encontro com o filho e a impossibilidade do encontro, nas diferenças de mundo entre eles. Estamos no terceiro conto e, até aqui, o livro nos fala de um filho abusado sexualmente pelo pai, um filho que quer conduzir a mãe a uma clínica de tratamento e um filho abandonado; um bebê entregue à roda dos enjeitados, criado em um convento e que, misteriosamente não envelhece, o que desperta o interesse da ciência, ciosa por entender os caminhos de uma delirante imortalidade. “Todos os dias, Tereza desejava a morte do filho. Mas, por amor ou meramente por vingança, ele não morria nunca. Parecia eterno.” Esse é o conto A um passo da imortalidade, em que os ditames sociais colaboram para o abandono infantil.

 

Em O fogo da salvação, a morte era encaminhada para chegar como vingança contra Iolanda, porém o conto deixa claro que ninguém conduz a morte, ela é quem conduz a si mesma. E aqui, novamente é a figura do filho que se mostra. Um filho adotivo, utilizado pela figura materna para exploração sexual. Em Justiça, o filho não existe, foi abortado. A mãe, profissional que vai assumir uma Comissão de Direitos Humanos, questiona-se com relação ao aborto a que se submeteu e à sua participação na punição dos homens que a estupraram. Já em Seus olhos de azeviche, o filho relata sua experiência de alívio com a morte do pai, a dificuldade de passar tanto tempo com um doente terminal: “Mas ninguém é capaz de suportar por tanto tempo a áurea de decadência imposta pela aparente presença da morte. Amigos e familiares acabam se afastando, perdendo-se em promessas vãs de “pode contar comigo”. Ao mesmo tempo, esse filho agora luta pela adoção de uma filha e não guarda mais o grande segredo que escondeu do pai ao escolher um carrinho quando seu desejo era a lousa mágica rosa.

 

No conto Distantes, um conto curto preenchido por longo silêncio que diz de uma vida inteira, o filho, que amava a princesa Diana, sofre com sua morte e busca materializar a distância que sempre existiu entre ele e sua família: “Meu irmão idolatrava Romário e Bebeto. Falava abertamente sobre futebol no jantar. Eu, calado, sentado à mesa, engolia a comida junto com meus segredos”. Em seguida, em Vivo ou morto um paciente com paralisia corporal e respiratória só vive por meio de aparelhos. A hipótese levantada pelo médico é a de Síndrome do Encarceramento ou Esclerose Lateral Amiotrófica e a discussão ética é pelo desligamento ou não dos recursos artificiais, se o paciente está vivo ou morto, mas o apego do médico se deve a questões muito mais pessoais e profundas do que profissionais. No conto O enterro dos ossos, um senhor muito idoso, que vive em um asilo, cuja família e amigos já morreram todos, vê-se inusitadamente solicitado a comparecer ao cemitério que será destruído a fim de transferir os ossos de seus familiares para outro lugar. Em Garotos I, a partir do anúncio de que o hamster de Diogo morreu, coloca-se o desejo do narrador em consolar o amor longínquo, amor que sempre se encontra impossibilitado e substituído por outro tão impossível quanto: “Um amor impossível que me salva de outro amor impossível” e em Garotos II, a visita do narrador à casa do pai do amigo/amor morto compõe o retrato da incompreensão e do preconceito separando duas pessoas por suas diferenças de orientação sexual. Na atmosfera desse conto, a pequena trégua da morte, os personagens estão momentaneamente unidos pela mesma tragédia.

 

Assim como o livro traz a introdução ditada pela morte, apresenta também uma espécie de posfácio ditado pela vida. O luto é feito, “um dia você acorda e não tem mais vontade de morrer para esquecer”. Talvez Montaigne estivesse mesmo certo. Talvez, inversamente, o percurso desenhado até a última página, pensando sobre o morrer, tenha ensinado a viver. Chama a atenção a recorrência da figura filial em quase todos os contos, do filicídio como caracterizado pelo pediatra e psicanalista Arnaldo Rascovsky: “o maltrato corporal e afetivo dos filhos mediante o abandono, a desvalorização, a superproteção, o abuso sexual, a mutilação e o assassinato, como acontece nas guerras de uma forma aceita socialmente”. Diferentemente da “fama” do parricídio, o filicídio contém um tabu, continua escondido nas camadas mais obscuras da sociedade e principalmente na “sagrada” família. Está presente desde as mitologias antigas, como Chronos engolindo seus filhos, Abraão indo matar Isaque, ou mesmo Laio, o pai de Édipo, tentando matá-lo de forma cruel quando criança. Filicídio dos filicídios: Jeová oferecendo Jesus ao holocausto.  O livro de Mike Sullivan também está dizendo, contra os conservadores que se beneficiam do silêncio (afinal, não raro, são os que perpetuam a violência infantil, principalmente sexual): prestem atenção ao que fazem com as crianças dentro das suas próprias casas. Em comum, na maior parte dos contos de O sentido e o fim, há também a questão da homossexualidade e, com ela, o autor nos transmite a dor e a solidão que a sociedade causa nessas pessoas, impondo a heterossexualidade como padrão normativo, por meio de comportamentos homofóbicos que muito mais revelam a fragilidade heterossexual, diante da necessidade de tamanha afirmação.

 

O sentido e o fim nos faz refletir, leva-nos ao encontro do outro, aproxima-nos de personagens que falam de vida e de morte, rodeados que estamos por ela, ainda mais a partir do ano de publicação do livro, 2020, quando a pandemia do Coronavírus assola o mundo e particularmente o Brasil, com seu governo aliado da mortandade. Claro, o fim é a morte, mas o sentido – Mike Sullivan o afirma no desejo de seus personagens – é o amor.

 

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O sentido e o fim

Mike Sullivan

Contos

Ed. Reformatório

2020

 


Mike Sullivan
nasceu em Itaocara-RJ. É autor de “Corpo sepulcro” (Confraria do Vento, 2015), menção honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte 2013, “O inferno é logo ali” (edição do autor, 2017), “Ninguém me ensinou a morrer” (Editora Reformatório 2018), Atire a primeira pedra (edição do autor, 2019) e “O sentido e o fim” (Editora Reformatório, 2020). Fotografia: Viviane Magnon.

 



Adriane Garcia
, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020