Mapas para desaparecer, de Nara Vidal

 

por Adriane Garcia__

 



Nos doze contos do livro Mapas para desaparecer, todos associados, nos títulos, com substantivos abstratos que denotam falta, negatividade ou encerramento, Nara Vidal nos traz uma coletânea primorosa regida pela temática do desejo de desaparecimento, da evasão ou do escapismo e pelo desaparecimento real das pessoas.

 

Em sua maioria, os contos trazem vozes de mulheres como narradoras, mas há também vozes masculinas protagonistas nos contos finais. O universo dos relacionamentos é explorado em diversas situações conflitantes e, muitas vezes, violentas. A condição da mulher – uma preocupação central nos livros da autora – aqui também se apresenta realçada. Se o mapa para desaparecer é inscrito sobretudo no corpo, como fica claro no conto homônimo ao livro, o corpo da mulher é um lugar privilegiado para demonstrar esse desejo e a sua realização.

 

O desparecimento se apresenta de várias maneiras; em Castanheira, a mãe quer desaparecer porque a filha desapareceu. Aqui, a leitura leva à dor de todas as mães que perderam seus filhos e nunca mais se libertaram do adeus que não se concretiza, mas que também não se encerra. A mãe que perde um filho por desaparecimento não cessa de esperar, a espera é crônica e absoluta. A vida pausa na espera e é espera até o fim. “Fico aqui até ela voltar ou até eu morrer.”  É notável a habilidade de Nara Vidal em instalar nas narrativas simbolismos de forma muito natural: “Os peitos amolecidos, flácidos, vazios de vida se esparramam cada um para um lado do meu torso”. O estado em que se apresentam os seios denotam o esvaziamento da função maternal, o abandono do corpo, de qualquer vaidade. O desaparecimento congela a mãe e faz perder a mulher. O remorso por não ter estado com a filha a ponto de protegê-la do desaparecimento leva ao descuido de si como uma forma de punição – e expiação – diante da culpa.

 

No conto A morte do caixeiro viajante, uma mulher sai do teatro, tendo assistido à peça de Arthur Miller e se desencaminha do seu trajeto que seria para a casa, na noite de folga em que seu marido ficou com as crianças. Dali em diante, sabemos que ela está “à espera de um trem que me leve de volta para o casulo da decência que é ser mãe, esposa, uma pessoa normal”. Porém, assim como o personagem Willy da peça de Miller, a mulher vê sua vida em franca decadência, sua existência familiar moralmente correta, aplacadora dos desejos é uma grande mentira. Na madrugada em que a maior parte do conto se passa, a protagonista dá azo ao desejo, mas o encontro com a realização deste anseio é precário, é fonte de desprazer e acelera a sua queda vertiginosa, tendo no furo da meia calça a metáfora para a ferida que se abre: “o declínio do caixeiro viajante”.  O desaparecimento da mulher “normal” que por instantes levou à consumação de uma liberdade sexual encontrou a violência. O desejo maculou-se de arrependimento. A personagem queria fugir mas queria ficar, mostrando a hesitação dos sem-lugar, pois nenhum lugar se afigurou como uma solução. A ambiguidade é interessantíssima não só por enriquecer a personagem, mas também por confirmar a analogia que faz de si mesma com o caixeiro viajante. Não há saída a não ser continuar fingindo que o casamento é ótimo, que os filhos são tudo o que importa, que a vida está maravilhosa, mesmo quando tudo rui e a verdade se aproxima. “Pensar no futuro. De hoje em diante, só pensar no futuro. Fazer almoços e sobremesas, escolher filmes, ir nadar com as crianças. A vida é isso.” A fala da personagem solitária, que não tem com quem conversar e tenta elaborar os acontecimentos de sua vida por meio de obras artísticas vai direto na fala do caixeiro Willy da peça a que se refere: “Pois é. A gente trabalha a vida inteira para comprar uma casa e, quando a casa é da gente, não há ninguém para morar nela”, ou ainda, a fala de Linda, esposa do caixeiro: “Mas meu amor, a vida é assim mesmo. Sempre foi assim. A vida é uma derrota”’.

 

Em Cipó mil-homens, cujo substantivo abstrato de ligação ao título é indigência, um retrato crudelíssimo dos socialmente marginalizados. Nesse conto não só a continuidade da miséria por gerações, como a continuidade do abuso sexual dos adultos contra as crianças mostram-se em uma história emocionante e contundente sobre de que modo a opressão pode se naturalizar e se repetir. A planta conhecida como cipó mil-homens, cuja flor está ilustrada na capa do livro, aparece estrategicamente como simbologia, metáfora (espécie de trepadeira, suas flores são de uma beleza exótica assemelhada a uma vagina, sua ramagem é forte e inquebrantável, suas folhas são abortivas e antiofídicas) e como solução na estratégia de sobrevivência das personagens, a mulher e seu filho, acossados pelo mundo fálico com sua cultura de estupro, filicídio e pedofilia.


A personagem Rose, do conto de mesmo nome, apresenta-se estranhamente livre (pode-se ler também feliz) após a morte do marido. Dá-se uma nova identidade: Rose. E não se sabe como se nominava antes, pois a história é narrada por sua vizinha que, de Rose, só sabe que foi taciturna. A história mostra uma mulher cujo casamento e maternidade funcionaram como uma espécie de prisão em si e que, após a independência do filho e, finalmente, a morte do marido, recupera prazeres simples como andar de bicicleta: “Sem Alfredo, a Rose agora ficou assim, insensata, descontrolada, ri de gargalhar, perdeu os modos, começou a tocar piano, coisa que ninguém da rua tinha ouvido antes”. Uma história emocionante sobre fuga e recuperação (reinvenção) da identidade.

 

Em, Luciana Espírito Santo, lemos a história de uma pobre escritora massacrada pelas redes sociais. É interessante que o substantivo abstrato ligado a esse conto seja cancelamento. Em uma narrativa que usa de muito humor, Nara Vidal retrata o sofrimento daquelas e daqueles que vivem em função do “comportamento ideal” nas redes para obter sucesso literário. Uma luta inglória, por vezes insana. Luciana Espírito Santo quer a atenção dos que não a consideram (editores, escritores badalados, críticos influentes) e dispensa a atenção de parentes e amigos de sua cidade: “O maior problema dela é a falta de credibilidade. Ela se sente ignorada exatamente pelas pessoas que mais respeita. Outro dia, ela postou que operou. Uma apendicite dos diabos. Postou até uma foto deitada na cama do hospital. As únicas pessoas que comentaram foram as tias, os parentes do interior. Vários postaram a frase “Maria passa na frente.” “Deus no comando”. No mercado das curtidas de Facebook ou Instagram, Luciana definitivamente não sabe se comportar: “No fundo, o que Luciana realmente queria saber era se as pessoas gostavam do que ela escrevia, mas isso era um mistério”. A escritora seguirá o caminho de levar seus anseios por ser famosa às últimas consequências, mostrando que a busca do amor (a admiração dos outros) pode encontrar um terreno pedregoso e perigoso nas redes sociais.

 

No conto O casamento de Daniel, Nara Vidal mostra personagens envolvidas em um padrão de agressividade sexual muito difundido pela pornografia. Reinam a incomunicabilidade e o silêncio como saída para evitar discussões. O casal não combina no humor; a narradora constata que acha que ela e Daniel não combinam em nada. A forma com que a autora escreveu esse conto é notável, funcionando em várias temporalidades: o tempo em que a personagem está na relação sexual e o tempo em que ela não se lembra exatamente do que aconteceu nessa transa (da qual o leitor acabou de obter detalhes); depois o salto de mais uma década e outra. A deterioração do relacionamento é uma sequência nos anos que se seguem. A dependência financeira dela, a ambiguidade do sentimento amor-ódio, o sexo como obrigação revelam não pontos de dissolução do casamento (cujo título revela que é só de um, o casamento é só de Daniel), mas de castigos mútuos derivados do fracasso de fugir, da troca da tomada de atitude de se separar pela omissão contida no silenciamento.

 

Em Carmem, Nara Vidal trabalha com o extravio. A vida extraviada dos menos favorecidos, dos excluídos, daqueles que na ancestralidade já sofreram o prejuízo de uma história de usurpação para todo o futuro. Carmen vem de uma família de empregadas domésticas e considera que já melhorou de vida com relação às suas ancestrais, pois mora a dois quarteirões da casa dos patrões. Temos então um bairro em que, frente a frente, existem os prédios da classe média e a favela. Sem saída, pessoas como Carmen não podem nem pegar um ônibus e voltar ao interior onde se têm parentes, tampouco poder cuidar dos próprios filhos quando se fica o dia todo à disposição dos filhos dos outros. A história começa no horário de término do trabalho da empregada doméstica na casa dos Ortega, quando resolvem lhe fazer uma surpresa, um bolo de aniversário sabor limão (que ela detesta). Nara Vidal nos mostra o descaso travestido de consideração, fato tão conhecido da sociedade brasileira, marcada completamente pelo escravismo, em que a frase “ela é como se fosse da família” tenta ocultar todo tipo de violência. O conto nos desfia não só o extravio social, mas o extravio sexual, o desejo voltado contra si, o estupro.

 

No conto Não ficção (engano), quem sai enganado é o próprio leitor – talvez também a personagem – uma esposa de diplomata que não pode fincar raízes em lugar algum, tendo morado em Moscou, Lima, Washington, Praga, Angola. De amiga em amiga (todas provisórias) ela vai contando seus segredos ao mesmo tempo que essa amizade também passa a sufocá-la. A personagem vai criando identidades, talvez uma forma de se esquivar da sua própria, aquela que o leitor também não poderá ter certeza de qual seja; afinal, quem quer desaparecer deseja se esquecer de quem é.

 

Em Lucien Roland, Nara Vidal volta ao cenário desenvolvido em Luciana Espírito Santo, o meio literário e suas agruras, principalmente para a mulher já que, sendo um meio contido na estrutura maior, não poderia deixar de trazer os defeitos e características da sociedade como um todo: machista, patriarcal, abusivo, sexista, racista, elitista. Aqui, a personagem Ana Cristina tentará alçar seu voo na fama escrevendo a biografia (falsamente não autorizada) de um escritor famoso, Lucien Roland, autor premiado, professor em concorridas oficinas criativas e acostumado a seduzir suas alunas em troca de facilitação de publicações e trânsito literário. Com um humor agudo, traduzido em ironia, Nara Vidal mostra a falta de profissionalismo do meio literário e editorial e a falta de preparo intelectual travestida de erudição: “Ainda assim, quando participava das festas literárias, das entrevistas, dos podcasts, Lucien sempre surpreendia e na sua erudição espetacular, citava nomes que pouquíssimas pessoas conheciam. Às vezes, só o entrevistador tinha ouvido falar, mas não tinha lido”. Assim, como em Luciana Espírito Santo há um modo de se comportar no meio literário, há regras a cumprir, há deveres a fazer com relação aos relacionamentos (a escrita de qualidade é importante, mas pode não ser suficiente). Aqueles que não jogam o jogo podem desaparecer e os que mandam no tabuleiro trocam apenas de nome, mas não desaparecem nunca.

 

Associando a palavra disfarce, no conto O casamento de Letícia (mais uma vez o casamento é só de um), Nara Vidal nos trará um narrador cuja esposa veio como salvação, fuga de um grande desejo. A esposa abandonou a carreira de advogada para se tornar esposa e mãe. O casal tem dois filhos com ideias políticas muito divergentes e o filho Gustavo, com ideias e comportamento progressista, é visto como a ovelha negra da família. Lucas, o outro filho, acompanha o casal, ditas pessoas de bem, nos seus valores excludentes. As diferenças de Gustavo acentuarão a presença dos fantasmas que frequentam os segredos do pai.


Em Seguro de vida, relacionado à palavra morte, mais um casal que posa como família funcional, escondendo seus sentimentos.  A mulher, não se sabe se sofre de uma doença física grave ou de transtornos que levam à hipocondria; o marido, narrador, contrasta seus atos de servir à mulher com simpatia e odiá-la em pensamento, desejando que esteja mesmo doente e que morra logo: “A cabeça da Marina estourando era uma pintura. Miolos partidos e espalhados na mais profunda cor vermelha pelo travesseiro. Mas ela ainda tem energia para me gritar lá de cima.” Como em todo o livro Mapas para desaparecer, há uma maestria em contar. Aqui, Nara Vidal nos leva estrategicamente a pensar em duas soluções possíveis para o fim, conduzindo-nos a um desfecho surpreendente.

 

O conto Mapas para desaparecer fecha a coletânea de forma belíssima, usando recursos de prosa poética e fazendo uma reflexão que poderia ter sido a de todos os personagens dos contos anteriores sobre o sentido da vida e a inevitabilidade do desaparecimento; sobre o corpo e o tempo; ou melhor, sobre o corpo como única eternidade possível: “Você evapora e isso coincide com o seu esquecimento. As pessoas que habitaram seus mapas já não se lembram das suas feições, do seu cheiro”.

 

Paradoxalmente, já que um mapa é um objeto cuja função é ajudar a encontrar, Nara Vidal nos revela sua função de ajudar a perder. Viver não deixará uma história cravada no tempo, tudo caminha para o desaparecimento. Esse mapa é marcado pelo lugar derradeiro e não nos deixa outra saída a não ser optarmos por nós mesmos, sem esconderijos, enquanto fazemos o trajeto que não sabemos até que ponto podemos mapear, pois nossas linhas dependem também das linhas dos outros, nossa geografia é atropelada por outros acidentes geográficos que nos avizinham. Nos contos de Mapas para desaparecer o que está posto é a ruína da entrega à desistência de si. São poucos os personagens, como Gustavo, por exemplo, ou Rose, que terão coragem de ser em algum momento, de existir aparecendo, assumindo-se. No geral, a vida será assolada pela morte, ainda que travestida por nomes como disfarce, engano, ausência, cancelamento, apagamento, extravio, anulação, indigência, final, fuga.

 

É ainda de se notar que Nara Vidal escreveu um livro que fala do desaparecimento em plena época de excesso de aparição. Uma época em que a esperança foi tocada de forma vertiginosa e encontra-se ferida, pois hoje não é somente um novo modo de vida, de sistema econômico, de sentido existencial que buscamos, mas novas formas urgentes de nos relacionarmos com um planeta estafado da raça humana. Se o que há de mais certo é o nosso desaparecimento – metafórico e real – Nara Vidal, ao escrever sobre ele, de certa forma, está falando também do desaparecimento de si e da sua obra. Enrique Vila-Matas, outro autor que trabalha a temática do desaparecimento, sabe também sobre esse mapa quando nos diz: “Mas, se é certo que a obra e o escritor, como você disse, tendem a se perpetuar, também é certo que no fim, através do tempo, a obra viajará irremediavelmente sozinha na imensidão. E um dia a obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirão o Sol e a Terra, o sistema solar e a galáxia, e a mais recôndita memória dos homens”. Escrever é lutar contra o desaparecimento. Não para vencê-lo, pois é impossível, mas para adiá-lo.

 

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Mapas para desaparecer


Nara Vidal


Contos


Ed. Faria e Silva


2020







Nara Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, mudou-se para Londres em 2001 hoje concluiu um Mestrado em Artes. É autora de vários infantojuvenis e tem dois títulos adultos publicados no Brasil. Sorte (Ed. Moinhos) é seu primeiro romance. Nara foi premiada com o Maximiano Campos na categoria contos e ganhou por duas vezes o Brazilian Press Awards em Londres pelo seu trabalho em literatura. Mora na Inglaterra. Seu livro Sorte foi premiado com o terceiro lugar na edição de 2019 do prêmio Oceanos. Lançou em 2020, Mapas para desaparecer - publicado pela Faria e Silva. É editora da Capitolina Revista, trabalho que lhe rendeu um prêmio APCA. Atua como tradutora e colunista da Tribuna de Minas e do Jornal Rascunho.

 



Adriane Garcia
, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adultos perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020