Através do espelho | Íris Cavalcante

 

por Íris Cavalcante___


Jr Korpa




Encolhe só mais um pouquinho que entra.


Não era apenas uma mulher no espelho. Era uma mulher e a mesma roupa, que ela vestia todos os dias. Dia após dia.


A roupa foi ficando pequena e começou a apertar, tornou-se sofrido vesti-la, movimentar-se com ela. A roupa arranhava a pele dela, ela se espremia toda para entrar na roupa que arrebentava. Saltava o braço aqui, o mamilo rosa ali, rasgão nos quadris e debaixo das axilas, o abdômen inflava sob a superfície da roupa, intimidades à mostra.


 Cerrava os punhos para aguentar de dor. Diziam para ela ter vergonha daqueles pedaços de corpo descobertos. Contorcia-se toda para esconder as vergonhas.


Ela suplicava um respiro de tão sufocada. Náusea, ânsia de vômito, agonia, falta de entendimento, taquicardia. Tudo a querer saltar do peito. Via-se disforme no espelho, imóvel feito estátua, com uma roupa que não lhe cabia. O espelho tentou avisá-la.


Os graus centígrados aumentavam no ritual de vestir a roupa. De banho tomado, ela pingava suor. Irritava-se do calor, da coceira, automutilava-se com unhas vermelhas, até minar rubis de sangue na pele. Uma broca lhe roía os interiores, a dor fazia seu percurso até materializar-se no canal lacrimal, chegava seca pela aridez do caminho. Não havia nome para aquilo, ela intuía que era algo que nunca lhe disseram. Foi descobrir sozinha.


Aconteceu que um dia, ela apagou. Quando abriu olhos, se deu conta da própria imobilidade.


A mulher contraía-se ao extremo. A roupa já estava tão pequena, tão pequena, que não lhe cobria mais parte alguma. Ela não percebeu: não era a roupa que diminuía, era ela que tinha crescido. Ninguém entendeu a coisa do crescimento. Nem ela. A roupa que a espremia era sua antagonista. Não uma aliada, como pensou. Expunha suas fragilidades, em vez de cobri-las.


Então, a mulher despiu-se dos molambos e comprou uma roupa que lhe coube. Pagou um preço alto pela roupa nova tudo o que tinha mas recuperou o movimento, ação e verbo no infinitivo.


Roupa espremida lateja, irrita, machuca, agoniza, arde, mas nunca é tarde para uma roupa que lhe cabe. Do despir-se ao vestir-se de novo, ela chamou de arte.




Íris Cavalcante
, escritora cearense nascida em Baturité, Especialista em Escrita Literária pela FBUNI. Tem algumas publicações independentes e participa de antologias de contos, crônicas, poemas, colunista semanal da Revista Tamarina Literária. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2018 na categoria poesia com a obra Vento do 8º andar e autora de Por quem elas se curvam, Editora Rima Rara, 2021, disponível em e-book na Amazon e livro físico à venda nas principais livrarias de Fortaleza.