Trechos de dois contos do livro Coisa Amor, de Pedro Jucá


por Pedro Jucá__





Trecho do conto “Oráculos, Ondas”


(...) Por vingança, segurei suas mãos, puxei-a para a areia e, solfejando Sobre as Ondas, forcei-a a dançar valsa. Ela retorquiu que aquela era uma valsa que nunca poderia funcionar — disse isso apertando os seios com as mãos, como se me lembrasse de que, afinal de contas, ela era uma mulher —, ao que eu também comecei a gargalhar.

Eu sabia que o mais difícil seria apagá-lo de mim, apagar essas pequenas marcas que meu cérebro, meticuloso e referencial, teimava em encontrar; impressões de vento na areia dura da duna, minha memória, minha memória, minha memória. Lugares, palavras e cheiros passavam a evocar sensações e imagens que, como só pertencessem a mim — nem dele eram —, magnificavam meu sentimento de solidão e me transportavam até ele: esta cobertura de hotel, este lençol listrado, esta ponte sobre o mar, esta curva (na avenida), esta cadeira quebrada, este tropeço na pedra da rua, esta marcha à ré com o carro — relicário que sequer me atrevo a descrever com minúcia. Guardo-o, não por escolha, até o dia em que não puder me lembrar de mais nada — e meu próprio nome tiver sido apagado de mim.

Havíamos acabado de soltar as mãos, as risadas se diluindo em soluços. Ela baixou a cabeça um instante e, sem que eu pudesse ver seus lábios, balbuciou algo que me escapou. Enquanto o calor da gargalhada recente se dissipava como mormaço em começo de noite, pedi que repetisse o que havia dito. Ela levantou o rosto com solenidade, como se prestes a pronunciar um vaticínio. Metade de seu rosto estava iluminada pelas luzes dos postes da rua; a brisa vinha da terra ao mar, movimentando de maneira pouco natural, como a um dossel, seus cabelos longos e lisos. Então, incorporando-se da triste beleza de um oráculo, ela me olhou com profundidade e apontou para onde o mar terminava (ou começava).

Não perguntei nada. Virei meu corpo inteiro para o mar. À nossa frente, a alguns metros de nossos pés, as ondas vinham insistentes, deslizando suaves umas sobre as outras. Depois se desmanchavam, fundiam-se em um tapete de espumas que avançava ligeiro e logo se retraía, engolido pela própria origem.

Por debaixo, sobrava uma areia úmida, renovada, livre de marcas de pés, de estrias de vento. 

Por um breve momento, pareci entender seu ensinamento e, sob uma tal comoção, senti minhas pernas tremerem. Olhei para ela. Seu rosto bonito, de olhos grandes que me esquadrinhavam com imersão — razão e mistério —, encheu-se de uma generosidade altaneira. Virou o rosto para o mar, volveu-o de novo para mim, abriu um sorriso e, desmanchando o feitiço, voltou a ser quem era. Caí de joelhos, virando, eu também, areia da praia — profecia que se autorrealiza. Ela me abraçou, e, sentindo a onda de calor que vinha dela a mim, comecei a chorar, comecei a chorar, comecei a chorar, pois talvez, afinal, eu não estivesse assim tão só no mundo: se eu havia compreendido sua silenciosa parábola, era porque ela também havia compreendido a mim — traço fugidio, redentora ilusão.


Trecho do conto “Ela”


(...) De tarde, eu me dedicava a fazer pequenos reparos pela casa, acho que era uma maneira de ainda me sentir engenheiro. (...) Com o tempo, a casa foi ficando meio remendada, e Lygia reclamava muito, falava que era impossível de se viver num local caindo aos pedaços. Queria fazer obras e mais obras na casa, e eu logo cortava essa história, não havia necessidade de se ficar gastando dinheiro à toa, ainda mais com aquela conta de luz altíssima.


Eu só permitia que as luzes fossem ligadas depois do completo anoitecer, porque Fortaleza tinha muito sol, era muito iluminada o tempo todo. Na verdade, eu segurava até quando desse, mas logo Lygia começava a gritar que não era possível viver naquele breu. Eu cedia, até porque estava com fome, e ela tinha que preparar meu jantar, que trazia a meu quarto enquanto eu assistia ao noticiário e, às quartas, ao futebol. Durante a noite, eu sempre andava pela casa fiscalizando tudo. Quando encontrava uma lâmpada acesa em um cômodo vazio, ficava possesso e voltava batendo muito forte nas paredes do corredor, para ver se fazia Lygia e Regina entenderem que dinheiro não nascia em árvore. Regina gritava de volta, retrucando que naquele mês pagaria as porras das contas, e eu a avisava de que, com aquele emprego de bosta dela, não dava nem para comprar papel higiênico para limpar o cu. Se ela quisesse, que fosse morar fora, uma mulher de quase 30 anos morando com os pais era um vexame. Ela se calava e pegava o Tweed no colo. Nesses dias, eu ouvia por cima do barulho da novela o fungado de Lygia chorando no quarto dela, mas só até as dez da noite, quando, por segurança, eu trancava uma a uma as portas da casa e exigia que todos fossem dormir. Elas levavam uma garrafa de água para seus quartos para não terem de ir à cozinha, e, de madrugada, já não se ouvia mais barulho vindo dos banheiros, porque eu proibi descarga antes das sete da manhã.


Vivíamos muito bem nessa rotina, vivemos assim por uns 20 anos. Lygia envelheceu muito, eu também, Regina também. Antes de morrer com mais de 14 anos, Tweed havia ficado cego e sem conseguir andar, mas Regina insistia e o manteve vivo por alguns anos. Três vezes ao dia, antes de sair para o trabalho, na hora do almoço e no comecinho da noite, ela lhe dava direto na boca uma ruma de comprimidos e algum tipo de comida amassada que ela mesma cozinhava. Um dia, acordei com o grito de Regina. Tweed estava duro no colchão que ela havia disposto no chão do quarto para que ficasse mais confortável. Minha filha estava roxa e com o rosto deformado de tanto chorar, eu nunca tinha visto ninguém daquele jeito, nem na época do Exército. Ela berrava de dor, abraçada com o corpo morto do cão. Eu senti uma pontada no coração, fiquei muito triste, porém reagi a isso mandando-a parar com aquela gritaria e aquele choro idiota, que ela não era mais nem criança. Lygia então apareceu furiosa e me empurrou com força, foi a única vez que usou da força física contra mim, contra meu corpo. Em seguida, me deu soco forte no peito e me disse que eu era um demônio, que um dia eu ainda ia pagar por todo aquele sofrimento que eu as fazia passar. Eu fiquei sem entender, perplexo e muito assustado, então saí do quarto de Regina, deixando que as duas resolvessem como enterrar o cachorro. Naquele dia, não falei mais nada.






Pedro Jucá nasceu em Fortaleza, Ceará, no ano de 1989. Entre a Literatu­ra, a Psicanálise e o Direito, escreve, labuta, sofre e se diverte (não necessariamente nessa ordem). É pós-graduado em Es­crita Criativa e trabalha como Procurador do Estado do Para­ná. Mora em Curitiba com seus três gatos — Willow, Hopper e Nimbus. Coisa Amor (Editora Urutau) é seu primeiro livro publicado – mas há um romance por vir.