Feijoada de Canguru, crônica de Yvonne Miller

 

por Yvonne Miller__




Ela chegou com a certeza de quem sabe o endereço, o número da casa e o CEP. Como se alguém tivesse lhe dito “Tenta ali na casa amarela, perto do açude”. 

Era por volta  das dez  horas da noite, a gente voltando de Recife, e ela entrou na garagem junto com o carro. Bastou um olhar para saber que não pertencia àquela turma de cachorros abandonados e foragidos que se instalaram na área da coleta de lixo e amedrontavam os condôminos das redondezas: amedrontada estava ela. O rabinho não só entre as pernas, mas colado na barriga, ficou ali tremendo-se no corpo todo. Aguardando nossa reação. Esperando ser enxotada mais uma vez. Acuada. Tremendo. Rabinho colado. Mas ficando. 

Tenho para mim que só o amor e a fome são capazes de vencer o medo. E amor não era o caso dela. 

Batizei-a de Feijão no mesmo instante em que enchi um pote de sorvete com a ração do Chico. Nos primeiros dias, ela comia com desespero no canto da rua onde eu colocava a tigela. Achava eu que assim não associaria o alimento com nossa casa, que não criaria vínculo com o lugar. E que, uma vez abrandada a fome, continuaria seu caminho. Estava errada, claro. 

Porque a gente não quer só comida, né? Nem ela. Ela também queria diversão e lar. E um pouco de amor. No fim das contas, o que todos nós queremos. 

E assim foi ficando. Fez do pote de sorvete seu prato, do Chico o companheiro das diversões caninas, da varanda, o lar, e da lixeira, seu altar. Deve ser costume antigo. Foi perdendo as pulgas e ganhando corpo. Nunca desrespeitou o gato e nos avisa sobre movimentos suspeitos na mata ou sobre a chegada do homem do gás na hora em que a moto dobra a esquina. Muito espertinha, se liga em tudo. Estratégia de sobrevivência.

E sobrevivente ela é. Bastou um olhar para saber. Bastou ver a patinha traseira com dois dedos a menos – lesão antiga e já sarada, como as cicatrizes no focinho e na barriga –, a infecção remelequenta e esverdeada nos olhos, o corte em carne viva na perna dianteira. Bastou jogar um graveto para ela na brincadeira e vê-la fugir em pânico. Quantas coisas já terão atirado nela? Quantos pontapés já terá levado? Quantas maldades  terão inventado para se livrarem da sua presença? Nunca fiquei tão feliz de vê-la aparecer de novo na varanda, algumas horas depois. Corri para abraçá-la, afagar seu pelo curtinho, caramelo, e ela deixou. Deve ter intuído que não fiz por mal, cachorro sente essas coisas. Mas, por via das dúvidas, dali em diante guardei os gravetos pro Chico.

De manhã, Feijão pula feito canguru quando me vê descendo pela escada. No passeio com Chico, trota feliz ao lado da gente e mais de uma vez já negociou nossa livre passagem com a turma do lixão, que costuma receber qualquer transeunte com latidos ameaçadores. Chegando no açude, ela se aproxima da margem, começa a beber e deixa-se levar pela língua sedenta, até que a gravidade vence e ela cai na água. E lá vai a Feijãozinha flutuante, nadando e bebendo ao mesmo tempo, desenhando sempre um semicírculo antes de sair em outro ponto da beira, com a sede satisfeita e sacudindo o corpinho molhado como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. Nem parece que tinha medo de água quando chegou aqui. 

Caminhando pelas trilhas, às vezes se taca no mato e some entre troncos e folhas. Mas já desisti de achar que ela vai embora, retomar seu rumo, arrumar outra dona. É só o pensamento chegar que ouço o batuquezinho das suas patas atrás de mim, e lá vem ela novamente, correndo livre e feliz, vez ou outra sem encostar o pezinho mutilado no chão. De volta à casa, recebe a ração na varanda mesmo porque não adianta tentar enganá-la; é esperta demais.

Só houve uma vez que fiquei descontente com ela. Foi logo nos primeiros dias. Saí de casa e na volta encontrei meu chinelo jogado no chão da varanda, comido pela metade. Tentei brigar: "Vou fazer feijoada de você!” Mas lá veio ela, pulando feito canguru, naquela alegria de me ver, e não tive como não sorrir. Baixei o dedo levantado em inútil advertência, e ela parou de saltar, deitou no chão e me ofereceu a barriguinha macia: vai um carinho? 

Pensando bem agora, talvez tenha sido um ato de vingança; coisa de trauma. Quem é que sabe? Só posso imaginar que os chinelos nem sempre são amigáveis com um cachorro de rua.

Esta crônica está chegando ao final, como o meu tempo aqui em Pernambuco e nesta casa. Em breve irei me mudar e não posso levar a Feijão. Por isso peço, por meio da presente, que me ajudem a arrumar um final feliz para ela. Não precisa de muita coisa: é só comida, diversão e lar. E um pouco de amor. No fim das contas, o que todos nós queremos. 

Ela retribuirá com os olhos caramelos mais amorosos que vocês possam imaginar e com um sorriso lustrado de quem já roeu muito osso à beira da estrada. Vai um carinho?


*[Entre em contato via DM: @yvonnemiller_escritora. Feijão e eu agradecemos!]





Yvonne Miller nasceu na cidade de Berlim em 1985, mas mora, namora e se demora no Nordeste do Brasil desde 2017. Escreve contos, crônicas e literatura infantil em alemão, espanhol e português. Tem textos publicados em coletâneas, como Paginário (Aliás Editora, 2018), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck Editora, 2021). É cronista do coletivo sócio-literário @bora_cronicar, do blog Escritor Brasileiro e assina a coluna “Isso dá uma crônica” do ColetiveArts. Além de ficcionista é autora e redatora de livros escolares. É uma das organizadoras da coletânea de contos cearenses “Quando a maré encher” (Selo Mirada, 2021). Instagram: @yvonnemiller_escritora