Pena de passarinho, crônica de Yvonne Miller


por Yvonne Miller__




Foto:Amee Fairbank-Brown


Estava eu descendo ao supermercado quando, no último lance da escada do meu prédio, um movimento alado me pegou de surpresa. Até esse momento eu descia as escadas sem mesmo perceber o que estava fazendo. O leitor deve saber como é. Coloca-se um pé na frente do outro, flexiona-se o joelho, pisa-se no degrau inferior e repete-se esse movimento as vezes que forem necessárias até, enfim, pisar em terra plana. Eu vinha então descendo as escadas no modo automático e repassando a lista das compras na cabeça – dois pãezinhos, manteiga, café, mamão –, quando uma repentina cor nos ares cinzas do saguão me trouxeram para o aqui e agora. Tratava-se se um pequeno passarinho, um pequeno passarinho de peito amarelo, que, ao me ver descendo as escadas, levou tamanho susto que esvoaçou pela porta afora e ficou sentado no chão da garagem. Nos encarávamos, ele e eu, eu e ele; e esse encontro com o outro – o outro emplumado – me enchia de ternura até que percebi que ele não estava me encarando coisa nenhuma: ele estava era encarando uma barata grande e marrom no meio do saguão que nesse momento se pôs em movimento e desapareceu – tactactactactac – embaixo de um puff verde-vômito. 

Fiquei logo com um peso na consciência. Não só o havia assustado com minha presença o pobre passarinho, impedindo-o de desfrutar do seu café da manhã rico em proteínas, como também havia possibilitado a fuga da praga. Depois, veio a pena. Que mundo cruel é esse, em que os passarinhos têm que andar atrás de baratas sujas em prédios de concreto mal-cuidados e pior-decorados? Não deveria o passarinho estar voando entre as copas verdes da mata, apanhando insetos saudáveis em pleno voo, para logo mais pousar em algum galho e fazer a digestão?

Olho do puff verde-vômito para o passarinho e do passarinho para o puff verde-vômito e tomo uma decisão. Hoje, ninguém precisará sobreviver a base de barata. O passarinho pula para o lado quando passo correndo. Ainda bem que o mercado fica logo na esquina. Pego os cariocas, a manteiga, o café e o mamão, mais um pote de sementes de girassol e volto correndo. Mas, ao entrar no saguão não encontro mais o passarinho, tampouco a barata grande e marrom. Apenas uma singela pena amarela em cima de um puff verde-vômito, única testemunha do que na minha ausência ali aconteceu. 

Ficará para o leitor o mistério e para mim, as sementes de girassol.


Fortaleza, 26 de abril de 2023




*Crônica produzida para a oficina “O fascinante e o trivial em Rubem Braga”, mediada por Anthony Almeida, em parceria com a Revista RUBEM.





Yvonne Miller
 (*1985) é natural de Berlim, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017 com sua esposa, enteada, gato e cachorro. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais. Também colunista da revista Mirada, com crônicas e contos publicados em várias antologias, e uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos “Quando a maré encher” (Mirada, 2021). 
“Deus Criou Primeiro um Tatu – Crônicas da Mata” (Aboio, 2023) é o melhor que ela já escreveu.