Qual o quê?!, um conto de Adriano Espíndola Santos

 por Adriano Espíndola Santos__





JR Korpa


A hora era ingrata: 2h da manhã. Nem por decreto papal eu sairia de casa. Durmo regularmente cedo, às 20h; no mais tardar, às 22h, para atender às necessidades sociais de convivência humana – que, diga-se de passagem, odeio. Mas fazer o quê? Sou professor e escritor, tenho de manter um certo ar substancial de sapiência e de cordialidade. O que não sabem é que sou autista. Descobri-o aos quarenta e sete anos – ou, no meu caso, terá sido aos quarenta e sete do segundo tempo? –, quando já era professor. Antes, não tinha a menor noção do meu medo de tudo, do meu incômodo de lidar com uma discussão humana, com os sons, com as desordens – que o meu médico diz serem próprias da vida, e venho, apenas por esse motivo, tentando acalmar o coração. Hoje, não vale a pena dividir isso com ninguém. A não ser com o Carlos, meu filho, que acha uma tremenda bobagem; diz que o laudo está errado – sendo ele engenheiro mecânico, ou seja, não sabe patavinas disso – e que eu sou somente um “esquisito gentil”. Nesse dia, porém, abri uma exceção. Carlos estava em apuros; ligou-me atordoado, com a voz embolada, dizendo que todos os primos não lhe atendiam e que foi “obrigado” a ligar para mim. Pretendia dar um esporro, mas contive os ânimos, dada a aparente gravidade. Ora, ora, ele me deu um endereço que, quando encontrei no mapa, ficava em outra cidade: Eusébio, a alguns – bons – quilômetros de Fortaleza. Não pude conter a raiva e socar o carro umas tantas vezes enquanto dirigia, e percebi que, se continuasse assim, eu que teria sérios problemas. Carlos me provoca as piores e as melhores sensações. Dizem que o criei mal. E a mãe, que sequer o criou?! Ora, tive de me virar sozinho, durante anos a fio – até hoje –, para dar assistência a um menino órfão de mãe vivíssima. Eu o agradei na medida correta, creio. Não tinha esse negócio de estar enfurnado em computador, em celular – até porque à época não existiam. Laborei para fazê-lo um homem independente, dono de si, responsável e solidário. Fracassei em algum ponto. Carlos não tem a menor preocupação com a sua nem com a minha vida. Já lhe disse que brinca de morrer. É o pior dos cafajestes. Quando apronta, vem com uma cara lisa me pedir dengo. Pelo menos, é um homem que sabe se virar. Todavia, vez ou outra precisa logo de mim. Como ia dizendo, larguei-me para aquele fim de mundo, onde não pisava talvez desde 2010. A sinalização não é lá grande coisa, mais atrapalha do que ajuda. Como não tinha trocado o óleo no tempo correto – venceu há dez dias –, passei a metade do caminho dirigindo trêmulo, com o coração na mão. Carlos me mandou uma mensagem pedindo que eu viesse devagar, porque não era “nada grave”. Quando ele escreveu a palavra grave, lembrei-me de todas as benditas vezes em que ele fez o mesmo, e, quando chegava ao acontecido, parecia um cenário apocalíptico. Tive de acelerar mais do que o permitido. Passei para 100km/h. E eu pensava que ele iria me pagar todos os tostões, pelo desplante de me deixar agoniado. No caminho, ainda pensei na aula que daria às 7h30min; que não iria dormir direito e que, logicamente, seria uma merda o meu dia. Não foi preciso adentrar a cidadezinha. Avistei Carlos na via estadual, acenando – só podia ser eu àquela altura. Em milésimos de segundo, cogitei passar o carro por cima dele, por me colocar em situações tão complicadas, às quais sequer dei causa – a não ser ao nascimento dele. Estacionei o carro num posto logo à frente. Carlos chorava muito. Notei que sua aura era de álcool. Teria feito uma grande babaquice. Depois de muitos soluços, ele soltou que a sua noiva, a Camilinha, estava farta dos seus problemas, dos seus disse-me-disse, e que teria arrumado outro. O outro era o tal do Jardel, um colega seu de infância, que supostamente tinha se aproveitado da proximidade e aplicado um golpe, para subtraí-la. A solução foi levar o homenzarrão no meu carro – depois daria um jeito de buscar o dele –, para dormir na casa do papai. No caminho, Carlos alertou que chorava, também, porque soltou uma bomba caseira na casa do “canalha”. Estava, ou estávamos foragidos. A bomba literalmente arrebentaria em mim, se não tomasse uma providência imediata. Foi o jeito devolver o queridíssimo Carlos ao dito posto de gasolina, onde estava o seu carro, e dar-lhe um trocado para resolver os seus pepinos. Uma pena. Eu sempre soube que Camilinha era uma menina ajuizada.







Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. Instagram:@adrianoespindolasantos | Facebok:adriano.espindola.3 email: adrianoespindolasantos@gmail.com