Pobres saúvas, crônica de Sara Klust

 por Sara Klust__



Fazia tanto tempo que eu nem me lembrava quantos anos tinha, quando entrei pela primeira vez naquela comunidade ribeirinha com Joelma, filha da vizinha, para dar um recado de sua mãe à lavadeira. Não me recordava o nome da mulher, aquela que, com mãos calejadas, retirava todos os dias a sujeira das roupas dos moradores do nosso bairro e que, apesar da pobreza, sempre sorria. Ela vivia sozinha com os três filhos, uma menina chamada Dinda e dois meninos, e trabalhava arduamente para criá-los. O casebre da família era uma construção de madeira coberta por palhas de coco cheirando à fumaça, liberada pelo fogão a lenha.


“Dinda, vamos brincar?”, eu gritava do portão da minha casa, quando a filha da lavadeira passava pela rua. “Preciso ajudá minha mãe a lavá as roupa das patroa.” Sem frequentar a escola, Dinda perdia a infância no trabalho infantil. Ao retornar da lida, vestida com seus farrapos, olhava para mim da calçada, com olhos pedintes. “Mãe, sobrou almoço?” Minha mãe servia à faminta menina o mesmo que servia a seus filhos. “Ei, tem mais pra eu levá pros meus irmão?” Geralmente não havia sobra. Minha família não era rica, mas para aquela menina, que dependia da caridade alheia, nadávamos em dinheiro.  “Tu não leva carão quando brinca comigo?” “Não. Por que meus pais brigariam?” Dinda baixou a cabeça, alisou com seus dedos e unhas sujas o vestido rasgado, e, respondeu num sussurro: “Porque sô do mangue. Aqui na vila muita gente não deixa os filho brincá com criança da favela.” Meus olhos marejaram.


Algum tempo depois, uma notícia fez minha mãe ponderar sobre minhas idas à comunidade. “Dona Marluce, corre lá no barraco da tua diarista, o marido deu uma facada nela.” Perplexa, mãe disse para eu ficar olhando os irmãos enquanto ia prestar socorro. “Eu vou com a senhora!” “Isso não é assunto pra criança!” Mas eu fui. Ao chegarmos, encontramos os vizinhos da trabalhadora doméstica, assim como a lavadeira, apreensivos e uma mancha de sangue no chão de barro batido. “Cadê ela?”, gritou mãe apavorada. “Quero ir embora!”, clamei, tapando meus olhos. “Menina teimosa, falei pra ficar em casa!” Me repreendeu, enquanto víamos a mulher ser encaminhada para o hospital; o marido fugira após o crime. “Mais uma mulher que entra na lista das vítimas desta sociedade machista!”, comentou minha mãe, enxugando as lágrimas.


Passado o choque inicial, mãe liberou minhas idas com Joelma à choupana da menina do mangue. “Vamo pegá tanajura?”, Dinda convidou. A sugestão me pareceu um divertido passatempo e como eu não sabia de fato do que se tratava, topei entrar na brincadeira. Mas logo senti pena das pobres saúvas fêmeas, pois perdiam o abdômen gorduroso nos dedos ágeis da filha da lavadeira. Depois de  serem fritas na própria banha e servidas com farinha de mesa e pimenta, as formigas aladas seriam o jantar de Dinda e de sua família naquela noite.


Após uma tempestade, em Olinda dos idos de 1970, dois eventos me afastariam de vez da comunidade e do convívio com a menina do mangue. “O rio transbordou e destruiu o barraco de Dinda, vamos lá olhar?” Na sua inocência, Joelma me dava a notícia rindo de um canto ao outro da boca. Juntas corremos até o local. Quando chegamos, nos deparamos com um entulho de troncos e palhas de coqueiro onde antes ficava a choça de Dinda. Dela e de sua família, nenhum sinal. Em outro barraco, parcialmente danificado pelas águas, uma mãe chorava. Ela, com peitos murchos, alimentara seu bebê com uma mistura de farinha de mandioca e água. Fui tomada pelo pânico: às crianças também era reservado a morte como destino?


Mais de quarenta anos se passaram desde aquela inundação. Muitos deles vivendo na Alemanha. E, um dia, ao adentrar a comunidade, acompanhando minha mãe que precisava falar com a nova diarista, fiquei admirada. As casas agora eram de alvenaria. Algumas delas pareciam, até mesmo, com as casas do bairro. Não vi pessoas com roupas maltrapilhas. Mas o progresso não trouxera apenas benefícios. O Rio Doce, onde os primeiros ocupantes da área pescavam seus alimentos, sufocara com a poluição e o lixo, e tornara-se um córrego pestilento. 


Tonha. De repente, me lembrei do nome da lavadeira, a mãe da menina do mangue, a amiga de infância que partira sem despedida.






Sara Klust
- Graduada em Comunicação Social, trabalhou nas rádios Cidade e Manchete FM, na assessoria de imprensa do DETRAN e no Jornal do Commercio, antes de se mudar, em 1994, para a Europa. Em 2020 publicou Um novo começo em Hamburgo, e, em 2022, A mãe brasileira, disponíveis apenas na Alemanha e Áustria. É uma das organizadoras da antologia de contos Tinha que ser mulher, cujas vendas são revertidas à Associação Fala Mulher. Mora com o filho e o marido na região do Vale do Ruhr, no oeste do país.