Teus olhos rímel com poesia

 

por Renata Pimentel __







 Prefácio a

Teus olhos rímel com poesia

ou ainda

como segue urgente a vida aqui dentro

 

            Os olhares se projetam pelas frestas, quaisquer que sejam: o primeiro momento foi certa perplexidade, susto, muitas dúvidas. A espécie humana já viveu momentos de exceção, diversos. Talvez, aliás, o que costumamos chamar de normalidade seja a ilusão de alguma ordem, ou uma anestesia necessária para que consigamos seguir cotidianos tão repletos de sobressaltos. Convenhamos: a humanidade não tem tratado a si mesma e ao planeta que habita da forma mais gentil. Sim, há muita riqueza, há muita beleza, mas quem delas usufrui? Na outra ponta, em volume muito maior, podemos contar as multidões de corpos abandonados, desassistidos e neste exato momento amontoados, inclusive, como material orgânico morto, infectado, perigoso.


            E a matéria de que se nutrem as poetas, essa estranha e resistente espécie que insiste em olhar pelas brechas, é tão ampla e indefinível: da mais ínfima insinuação do calor ao mais denso e claustrofóbico ar que nos falta, quando sabemos que estamos deste lado do equador, abaixo da linha, “onde não existe pecado”, no paraíso do Eldorado, no saqueado sul global: somos todas mulheres que escrevem sob a forma de (r)existência aos diversos confinamentos a que nos quiseram condenar.


            O lar já foi prisão, a casa por vezes ainda é lugar de medo, mais que de proteção. Em um mundo em colapso, regido por um vírus em rota pandêmica, a casa precisa ser lar. Mas como é absurdo pensar que um lar, um teto de abrigo, se converte em um privilégio, quando o isolamento é a melhor forma de manter-se viva, sã e, ainda mais, de proteger a coletividade em meio a um mundo em que pessoas vivem sem teto, nas ruas e o vírus segue se espalhando. Descemos ao mais básico: os peixes sem água limpa onde respirar.


            Há tantas perguntas fundamentais que seguem tão urgentes quanto permanecer vivas: que responsabilidade nos cabe como parte dessa humanidade? O que pode a poesia contra o abandono, contra a falta de políticas públicas de saúde devidamente eficazes? O que podemos nós, poetas, articulando-nos como redes e comunidades, efetivamente fazer? Algo que parece tão pouco face a um abstrato sistema que concretamente nos aniquila, com sua necropolítica, como tão contundente e claramente nos revela o pensador camaronês Achille Mbembe (2018[1]). Escrevemos porque os gritos surdos estão em nossas gargantas; porque as lágrimas borram o rímel dos olhos que algumas de nós insistem em usar para seguir na festa de estar vivas.


            Neste encontro entre mulheres, poetas das várias regiões, capitais e interiores, deste agonizante país continental intentamos construir uma verdadeira rede, um novo tipo de poder, para além das antigas formas de guerra do mundo dos homens: acreditamos na mágica dos encontros, nas encruzilhadas em que as forças encantadas nos regem e insistimos em ver futuro, em tecer um presente do futuro. Sopramos versos para que se atem como mãos em uma ciranda de pés descalços sobre a areia, como zarabatanas envenenadas de vida. Insistimos, porque renascemos das cinzas das fogueiras mais antigas. E às/aos leitoras/es que se permitam contaminar com a força dessa poesia, pedimos: entendam que, mesmo quando possamos soar duras e tristes e graves, ousamos aqui sonhar e grafar o mundo que desejamos, fazendo eco à poeta Audre Lorde[2]:

 

Agora o futuro é nosso, com visão e trabalho. E esse trabalho não será fácil, pois aqueles que temem nossos planos vão tentar mantê-los silenciosos e invisíveis. Mas a ignorância vai acabar quando estivermos preparados para nos arriscar e dar fim a ela, dentro de nós, dentro das comunidades em que vivemos. (2020, p. 54) 

 

            O projeto do qual resulta este livro que se vai abrir após estas páginas - um prefácio que não é cortina de fumaça, mas exala lavanda e alfazema, incenso e ervas defumadas – é o resultado de um chamado do portal Mirada, abrindo a brecha precisa para que ergamos nosso canto conjunto, vozes em teia para que a vida siga imperiosa: não nos verão caladas, não nos verão aniquiladas. Somos este presente do futuro que tecemos em poesia.

 

Renata Pimentel

(aos 15 dias do mês de fevereiro, do ano sem carnaval, do segundo ano sob a pandemia do coronavírus, 2021)

 


 

 



[1] Conferir: MBEMBE, A. Necropolítica. SP: n-1, 2018.

[2] Conferir: LORDE, A. Sou sua irmã: escritos reunidos. SP: UBU, 2020.



por Taciana Oliveira__


“Teus olhos rímel com poesia” é um projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc (sob incentivo do governo do Estado de Pernambuco), categoria Criação, Fruição e Difusão LAB PE, composto por uma série de 08 videopoemas e a publicação de um e-book. A plataforma Mirada (www.miradajanela.com) promoveu uma chamada pública para a seleção de poemas inéditos e convidou alguns nomes do cenário literário brasileiro para participarem do projeto. A proposta é fomentar a circulação da arte visual em consonância com a narrativa literária gerando debates sobre a pandemia, feminismo, cidadania, gênero, diversidade sexual e feminicídio.




Quem está em “Teus olhos rímel com poesia”?

 

Adriane Garcia, Alice Neto de Sousa, Ana Claudia Abrantes,  Angellita Guesser, Ariel Coletivo Literário (Aline Souza, Camilla de Melo, Clara Farias, Haissa Vitoriano, Micaela Sá, Thays Albuquerque), Carmelita Zuzart, Cinthia Kriemler, Daia Moura, Dandara de Moraes Geisseler,  Déh Zabelê, Ezter Liu, Fernanda Limão, Fernanda Luiza de Souza Farias, Gisele Carvallo, Graça Carpes, Isabel Campos, Laís Eutália de Souza, Lisa Alves, Manoela Cracel, Marcela Maria Azevedo, Maria Williane, Nádia Santos de Paiva, Renata Pimentel, Rosa Morena e Suelany Ribeiro e Pérpetua Amorim e Thalita Medeiros.

Para download:clica aqui



Curadoria & Organização

Taciana Oliveira


Produção

João Gomes


Revisão

Carla Vilella de Mattos


Diagramação & Capa

Rebeca Gadelha

 

VIDEOPOEMAS

Atrizes

Aurora Jamelo

Andréa Veruska

 

Trilha Sonora

Wavy Gravy

Inê Gonzaga

 

Imagens

Sidney Souza

Taciana Oliveira

 

Som

Lucas Hero

 

Tradução, interpretação e coautoria em LIBRAS

 Liliana Ripardo

@literaturalibras

 

Direção, Roteiro, Edição e Produção

Taciana Oliveira



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Renata Pimentel é Bacharel em Letras, com Mestrado e Doutorado em Teoria Literária pela UFPE. Desde 2010 é professora associada de literatura na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Publicou Uma lavoura de insuspeitos frutos (ed. Annablumme, São Paulo, 2002); Copi: transgressão e escrita transformista (ed. Confraria do Vento, 2011); Da arte de untar besouros (poesia, ed. Confraria do Vento, 2012) e Denso e leve como o voo das árvores (poesia, ed. Confraria do Vento, 2012); além de diversos artigos em vários periódicos e capítulos de livros. Tem formação também em dança clássica e atua nas áreas criativas da dramaturgia em dança contemporânea e teatro e com curadoria e pesquisa em artes visuais. Foi colunista do JC on line e da Revista e site Outr@s Crític@s.  




Taciana Oliveira é mãe de JP, comunicóloga, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.