Enzo Daniel e sua raiva enraivecida, um conto de Marcela Elisa

 por Marcela Elisa__


Foto de Erik Mclean na Unsplash


          A escola é de bairro, como dizem. Escola de bairro é daquelas que é o centro comunitário dos moradores ou deveria ser. Os ônibus chegam apinhados de estudantes à esquerda e à direita da estrada, o que significa que estamos entre a zona rural e a zona urbana, pelo menos nos modos, porque nos impostos do município o urbano já está em tudo e pagamos como se tivéssemos asfalto, iluminação, coleta de lixo, saneamento básico e todo o pacote. Mas não é bem assim. 

Bom, a professora chega na escola quase que na mesma hora dos ônibus. Não raro encontra as crianças pelas ruas, dá com a mão exageradamente e eles retribuem, quase sempre, com beijos e sorrisos. Carla, a professora, já passou por eles animada, frustrada, esgotada, dançando no banco do carro, só com os ombros. Chega, ultrapassa o portão branco desbotado, estaciona no sol e sai com a mochila, pasta, caderno, celular, chaves do carro, garrafa d’água. Um tchau aqui, outro na grade, mais um no corredor e em muitas esquinas daqueles muros altos. Caminha apressada até a sala dos professores e vai embora na mesma velocidade, em direção à sala de aula.  

O sinal da escola, para avisar que todos precisam dar início ao turno vespertino da Escola Estadual Mario de Andrade, é um tocar de música. Tem dias que é Toquinho, tem dias que é Balão Mágico. Arrisco a dizer que qualquer música é melhor do que aquele sinal de fábrica, gritante, demorado. Carla trabalha na Mario de Andrade há um ano e dança a cada troca de recreio ou troca de aula, seja qual for o ritmo nos autos falantes. 

Quando desponta pela porta de correr, no acesso à parte externa da escola, já ouve seu nome nas vozes das crianças e adolescentes se engalfinhando em meio a sorrisos calorosos: Prô, você vem aqui hoje? Prô, agora é você aqui! Carla vai passando, arrastando a caixa de música, além da mochila, pasta, caderno, celular, chaves do carro, garrafa d’água. Coloca os pés no sétimo ano C e solta um “Boa Tarde” alto e escandaloso. As crianças estão eufóricas, andando conversando, se juntam em volta da mesa e todas falam ao mesmo tempo. Todo dia é assim. 

Depois de fazer a chamada costumeira, a Prô Carla se levanta, pega sua caneta de quadro branco, vermelha, e escreve seu rito na lousa. Rotina: Diário, Aula de Leitura. Às sextas-feiras, o sétimo ano C inteiro já sabe que é o dia de ir à Biblioteca e exercitar a leitura por duas aulas seguidas, mas antes, o famoso diário. Carla avisa a todos que hoje a prática do diário pessoal possui um tema e mais da metade da sala bufa, em tom desanimado. Rapidamente ela pega a caneta de cor preta e escreve no quadro: Do que você tem raiva?

Os olhos dos adolescentes fixam-se na professora com ares de assustados. Ela, por sua vez, diz de forma calma e confiante que é preciso que todos saibamos o que nos dá raiva, esse sentimento tão poderoso e ao mesmo tempo, perigoso. Alguns abaixam suas cabeças e colocam os lápis em palavras, nas folhas dos cadernos de Língua Portuguesa. Outros estão parados, olhando para algo que não se vê, esperando a cabeça pensar na raiva que dá de vez em quando. Carla anda entre as fileiras, música ao fundo, o silêncio quase se faz por completo. 

Os vinte minutos habituais para esta atividade se finda e os estudantes começam a levantar-se para que a professora dê um visto no caderno. Alguns pedem para que ela leia, outros dizem ser segredo. Enzo Daniel, menino franzino, de pés com chinelos e dentes encavalados, vai até a mesa de Carla e pede o visto. Diz que é segredo. Carla assina seu nome e devolve o caderno para o aluno. Na volta, de cabeça baixa e uma lentidão pesarosa, é surpreendido por Victor e tem seus escritos arrancados com violência de suas mãos. Um bate-boca tem início.

A sala torna-se uma algazarra, gritaria, cadeiras arrastadas e pedidos de calma se fazem em alto e bom som. A professora tenta sair de seu lugar, mas o amontoado de crianças a dificulta andar e retirar das mãos de Victor as páginas do caderno de Enzo Daniel. Com rápido movimento circular, escapando das garras de Manu – melhor amiga de Enzo – Victor se prostra diante da sala, sobe em uma cadeira e lê o diário do menino, sem rubor na face:

“Eu tenho raiva de ser feio. Eu tenho raiva de ser pobre. Eu tenho raiva dos filósofos que dizem que sou pobre porque eu quero.”

Silêncio completo.

Carla está de boca aberta e lágrimas escorridas no rosto. A sala toda se esvai em palmas e urros de “Poeta! Poeta!” Victor, envergonhado, devolve as folhas para o dono e Enzo Daniel sorri pela primeira vez desde o início do ano letivo.  Nada permanecerá como antes.




Me chamo Marcela Elisa e sou mãe do Francisco, além de escritora, professora na educação básica e pesquisadora da Linguística Aplicada. Atualmente, moro no sul da Bahia e me dedico a ensinar Língua Portuguesa para a comunidade de Taipu de Dentro, enquanto escrevo meu primeiro livro sobre as experiências de ensinar e aprender pelo Brasil afora.  No mais, gosto de tarot, de ir a shows e de suar na corrida.