O que perdemos no fogo, conto de Alessandro Caldeira

 por Alessandro Caldeira__


Foto de Adam Wilson na Unsplash


Já estava fora do estádio quando, de repente, senti meu coração pulsar mais descompassado do que antes. Olhei ao redor, estreitando meus olhos, mas a visão continuava embaçada e dificultava qualquer distinção que pudesse fazer entre os acontecimentos ao meu redor. 

A única capacidade que eu tinha era de ouvir os gritos passando como se fosse sons de moto, isso me espantou mais do que a minha dificuldade ocular. Minha audição parecia mais compenetrada nos assuntos, atenta e seletiva, como se ganhasse poderes em um momento oportuno. 

Os gritos, portanto, ficavam cada vez maiores na minha cabeça. Coisa estranha. Todos aqueles gritos pareciam o desespero de minha mãe. 

Minha mãe, uma mulher idosa, com passos indecisos e uma visão defeituosa, sempre fora colérica e gritava com naturalidade, um grito áspero que arrancava a carne de qualquer um que estivesse por perto. Foi devido aos seus gritos e adquiri um pavor por qualquer barulho, qualquer som desordenado. 

Não obstante, o que me impressionava ainda mais era a sua incapacidade de chorar. Antes das lágrimas sempre vinham os gritos. A sua garganta lhe concedia poderes absolutos e ela se despedaçava em lágrimas. Sim, descobri com a minha mãe de que o grito é anterior ao choro. 

É provável que todo medo que adquiri nessa vida tenha origem materna. Minha mãe me censurava sobre quase tudo. Olhava-me com os seus olhos tortos, imprecisos e duros, dizia-me: não entre na água. Esse era o seu maior temor em relação a mim e me intimava a nunca entrar em rio, lago, cachoeira e, sobretudo, no mar: filha, eu não gosto de água, menos ainda água do mar. Me promete que nunca vai entrar em um? 

Com pena, prometia e, consolada, ela jogava um olhar fraternal como se tivesse orgulho da moça que me tornaria um dia. Ela, porém, ainda insistia em temer o que eu pudesse fazer: primeiro por que nunca fui obediente e, segundo, o mar era longe, por que, para mim, quanto maior a distância, melhor a aventura. 

Essa foi o motivo, por exemplo, que me apaixonei pelo futebol: era o esporte que me inventava a ir para longe, para o horizonte. Por isso, antes de torcer para um time, quis conhecer todos os times. Para me acostumar, comecei com os times do meu próprio Estado: Cruzeiro, Atlético-MG, América-MG. Os passeios nos estádios me faziam esquecer os gritos ásperos de minha mãe e, em vez disso, comecei a cantar. 

Acho  que aprendi primeiro a cantar e não a torcer. Às vezes confundia o canto das torcidas, o que era, obviamente, um problema. Porém, me sentia aliviada por expulsar os demônios de casa transmitidos pela minha própria mãe. 

Sentia que, finalmente, podia nadar e mergulhar em alto mar. De repente, não estava mais entre as torcidas, mas no oceano e deixava com que ele me levasse para todo o canto como um lenço branco viajando após ser usado como sinal de despedida no porto. 

 Logo depois escolhi um time para torcer: Santos. Fica longe de casa, do meu Estado e de minha mãe. Além disso, ainda tinha a questão da identidade. A torcida não precisava me chamar de filha, com eles eu só ouvia meu nome: Line vai ver o jogo? Ou então: “Aline, amanhã tem jogo!”; eles me convidavam com o mesmo entusiasmo como quem te convida para uma cerimônia religiosa. 

Sentia-me importante. “Mais importante do que os jogadores, Line?”, ah, sim, muito mais. Existia em mim certa entrega de torcedora, pelo qual me fazia imaginar levantando o troféu. Acreditava que quem dava energia para os jogadores para fazer esse ultimo gesto eram nós, torcedores. 

Parece até um ritual: todos de braços para cima, as mãos trêmulas até que o capitão pudesse colocá-la acima da cabeça e entregávamos nossa confiança para que ele pudesse dar o seu último suspiro. 

Mas naquele dia os gritos eram de minha mãe. Sem fôlego, ouvia dentro de mim: “filha, não entra na água”; queria parar no meio da rua e gritar também, mas não conseguia, comecei a chorar. 

Não estava mais na água, mas no fogo se alastrando como uma cobra em minha direção, por todos os corredores das ruas; imaginei que seria queimada viva. 

Ironicamente, morreria devido a uma substância química que a água seria capaz de combater. 






Alessandro Caldeira
é jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema