Quando cheguei aos 100 dias | Carlos Monteiro

 por Carlos Monteiro__














Quando cheguei aos 100 dias


Uma jornada imensa de contagem. Quantos dias mais ficaríamos no isolamento social-quarentena? Ninguém podia prever naquela altura. O fato que a missão — de fotografar o amanhecer diariamente naqueles tempos sombrios — se tornou perene.

Em, “101 dias em Bagdá”, livro escrito pela jornalista norueguesa Asne Seierstad sobre sua estada no Iraque em 2003, antes e depois do conflito na ditadura de Saddam Hussein, temos:

“A primeira coisa que vi foi a luz. Penetrou-me pelas pálpebras, abriu caminho pelo sono com carícias e deslizou até o sonho. Não era como a luz da manhã que eu costumava ver, não era branca e fresca, mas sim dourada. Com os olhos entreabertos em frente a uma janela com grandes cortinas de tule… Estou em Bagdá!”, é assim que ela descreve a sua chegada à cidade.

Da mesma forma passei a enxergar o Rio. Havia algo “abafado” no ar naqueles dias de maio. Naquela altura, já estava há exatos 50 dias confinados, desde o decreto que assim o determinou. Vinha fotografando esporadicamente os amanheceres, mas, ao perceber que os tons da paleta do Criador, uma espécie de Pantone® celestial, havia sido ampliada, resolvi criar o ‘Projeto fotos da janela na quarentena’. O ar se encontrava mais límpido, a natureza, antes gritando por socorro, demonstrava toda sua exuberância, o som ensurdecedor das máquinas movidas a querosene, gasolina e óleo diesel, deram lugar ao mavioso cantar dos pássaros.

Todos os dias havia o ensaio das fragatas, com muito açúcar e afeto, provavelmente pedindo bênção a íbis esculpida na montanha. Hoje, já apresentam seu espetáculo alado em outras paragens mais distantes.

Os dias foram passando, o ‘novo normal’ veio vagarosamente, diria até sorrateiramente, em busca do que é seu, dando lugar a um certo caos que, infelizmente, já estávamos acostumados. Triste, o mundo mudou para muito pior que já estava!

Mas, a paleta de cores excelsa, caetaneada, continua exibida. Capim-rosa-chá com detalhes em mel de cor ímpar.

Fotografo, fotografarei sempre. Começo a sessão diária clareado pela Clara Guerreira e um hino composto por Nelson Cavaquinho e Élcio Soares…

Cantarolo… “O Sol, há de brilhar mais uma vez/A luz, há de chegar aos corações/Do mal, será queimada a semente / O amor será eterno novamente”



Carlos Monteiro é fotógrafo, cronista e publicitário desde 1975, tendo trabalhado em alguns dos principais veículos nacionais. Atualmente escreve ‘Fotocrônicas’, misto de ensaio fotográfico e crônicas do cotidiano e vem realizando resenhas fotográficas do efêmero das cidades. Atua como freelancer para diversos veículos nacionais. Tem três fotolivros retratando a Cidade Maravilhosa.