por Luiz Henrique Gurgel__
A moça tinha marcado uma ponta com o parceiro no motel Eros. Mas no do Recife, para ser exato, já que devem existir uns 5 mil estabelecimentos com esse nome no país, um para cada município. A ideia era ter uma noite de amor filmada como “exercício de intimidade de um novo casal”, ela contou. Mas a moça com sua lingerie preta acabou sozinha na suíte, frustrada com o mancebo que roeu a corda e não apareceu. De celular na mão e um tripé com a ring light apagada, veio a vontade de filmar a si mesma nos espelhos, estendida na cama redonda, em autocontemplação, estudando posições, ângulos, luzes e reflexos. Enquanto se divertia em silêncio, entre pensamentos e o tédio, outros sons foram enchendo lentamente o espaço. Grunhidos, gemidos, gritos e risadas, intimidades da vizinhança que chegavam e mexiam com a imaginação dela. Talvez esta deva ser a segunda experiência mais excitante para frequentadores de motel depois do sexo propriamente. Os sons ao redor estimularam a moça a pensar num filme. Esse lugar, com toda a liberdade sexual do mundo atual, até hoje é envolto em mistérios. Para além dos desejos, esconde as identidades dos frequentadores.
É mais ou menos assim que se inicia o documentário Eros (2024) de Rachel Daisy Ellis, que chegou faz poucos dias aos (bons) cinemas do ramo. Em verdade, o filme começa mesmo com cenas gravadas em um carro percorrendo avenidas do Recife repletas de motéis até chegar a um, específico, com letreiro neon vermelho — obviamente — e que pisca insistente: Eros . É a própria diretora quem vemos chegando, escolhendo a suíte e depois se entregando aos devaneios solitários das cenas no quarto.
O estalo de Rachel demandou dois anos de pesquisa, são dez histórias filmadas e narradas em quartos de motel pelos próprios frequentadores, inclusive com direito a sexo explícito, que nem é o ponto mais interessante do filme. O jeito de trazer e mostrar gente como a gente e suas histórias (e cenas) íntimas é que faz a diferença.
No telão do cinema, enquanto as conversas, as histórias e o sexo rolavam solto, imaginei como o grande documentarista Eduardo Coutinho faria um filme desses. Certamente Rachel bebeu naquela fonte inesgotável, naquele jeito singelo e respeitoso de extrair com delicadeza a alma dos entrevistados. Claro que ela não esteve presente nas filmagens, mas sua edição e montagem deixaram as personagens plenamente à vontade para filmar, falar e transar. Verdade que todo mundo se transforma diante de uma câmera, ainda mais em tempos em que se faz “selfies” para as coisas mais tolas e banais. Embora todos soubessem que suas imagens iam acabar no cinema, usaram os celulares como se filmassem apenas para si mesmos, como lembranças de momentos bons que seriam vistos depois, numa sessão caseira a dois (ou a três, há um trisal) ou para guardarem no celular e rever quando bate uma saudade. O filme é capaz de sensibilizar até quem busca um pornô hard-core. Há certa doçura no casal homoafetivo e evangélico que discute sobre Jesus, religião e pecado, nus na cama, olhando o teto de espelhos de uma suíte tipo “Caverna do Dragão”. Difícil não sentir empatia com as falas da mulher sexagenária conversando com seu “Nego” e dizendo que tem uma vida sexual mais livre que a maioria dos jovens. Ou na explicação da sexóloga evangélica que há anos frequenta o mesmo motel com o marido para descansar um pouco dos filhos. Ou ainda não sentir a delicadeza do relato de uma mulher trans, que se prostitui para custear os estudos e que está se despedindo de um amor. Há uma variedade bonita de gente humana e de corpos que passam longe do padrão glamourizado de personas torneadas, bronzeadas e plastificadas.
Fez lembrar o que ouvi de um velho comunista certa vez: desconfie de quem não gosta de bicho, de planta e de gente. Rachel gosta de gente. E se Eros é o tal impulso caótico e criativo do existir, o princípio de vida e de energia que nos mantém a salvo e felizes, então, Eros para todos.
Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)