Quem te ensinou a fazer isso aí? | Douglas Souza

 por Douglas Souza | 


Foto de Jodie Walton na Unsplash

Quem te ensinou a fazer isso aí?

Me peguei reflexivo hoje, enquanto realizava uma atividade. Sempre me perguntam onde aprendi a fazer tal coisa, ou quem me ensinou, e eu sempre respondo: “a vida, né?”. Porém, enquanto pintava um quarto, fiquei pensando em tanta coisa que sei fazer.  Sem me gabar ou romantizar, no fim, é a necessidade que leva os filhos dos trabalhadores(as) a aprenderem cedo algo pra se “virar”. 

Lembro-me de uma vez em que eu queria comprar um tênis. Tinha uns 12 anos e passei a  semana toda na casa de um senhor ajudando-o a montar móveis. Aprendi a parada.  Porém, no dia do pagamento, lembro que ele me deu 20 reais pela semana inteira. Saí dali frustrado, mas aprendi que não se trabalha sem antes combinar os valores. 

Essa sede por procurar algo sempre me acompanhou. Pra mim, ali naquela realidade, primeiro tinha que arrumar um trampo; depois, ver esse negócio de estudar. E a faculdade? Estava distante demais pra nóis dali. Depois dos 12 anos fui de tudo um pouco: ajudante de pedreiro (o famoso servente), marceneiro, vendedor de blusas, estampador, pintor, entregador, artesão de couro, músico, cantor, mecânico de bicicleta e outras profissões que já nem lembro mais. Esse caminho me fez aprender de tudo um pouco, e isso foi me forjando. 

Aprendi com meu pai a sua profissão, mas ouvia dele que bom mesmo era ter a carteira assinada — coisa que ele nunca teve em vida. Passei anos no chão da fábrica, carteira assinada e tudo mais. Aquilo já era o auge para alguns da minha família; carteira assinada era massa demais para aquele povo. Meu tio Zé, um grande trabalhador intelectual formado sob o sol, por outro lado, ficava no meu ouvido dizendo: “vá estudar, estude pra não terminar como eu”. Essa frase dele sempre me atravessou — e também ao meu irmão. Porque até hoje achamos nosso tio Zé um cara fantástico, e ser como ele, ou saber fazer o que ele faz, seria incrível também. Mas a gente entendia o que ele queria dizer. Era uma aula de economia política que ele nos dava fora da universidade. 

Aprender de tudo um pouco, quando se é filho da classe trabalhadora, é saber sobreviver sambando miudinho, ali na malandragem. Essa necessidade se dá por um contexto social que diz, todo dia, a meninos e meninas parecidos comigo que talvez sonhar não seja o ideal. O ideal mesmo é saber fazer algo, conseguir um emprego e ajudar em casa. A falta do básico retira da vida humana o direito de escolha — principalmente dos filhos da classe trabalhadora, majoritariamente negra —, o direito de se perguntar o que realmente querem aprender, fazer ou sonhar. 

Bem… eu não tive esse direito de escolha até então. Hoje, me esforço para ter, para poder escolher, errando ou acertando. 

Enquanto eu pintava aquele quarto, mergulhei em mim mesmo e nas minhas lembranças. Ao fundo, tocava Racionais, e o Brown dizia: “senhor de engenho, eu sei, sozinho cê num guenta”. Ele tem razão: os patrões não aguentariam um dia no lugar de um filho da classe trabalhadora. Esse mergulho interno, temporal, só me mostrou uma metáfora: quem sabe fazer de tudo um pouco nunca terá uma parede vazia, suja ou sem cor. Ao final, ela mostrará de onde venho, quem eu sou e quem me ensinou. 

Quem me ensinou não foi “a vida” — ela só está. Quem me ensinou foi a classe trabalhadora, da qual sou filho e por quem sonho um novo mundo. Quem me ensinou foram homens e mulheres negras, que me ensinaram para que eu pudesse me proteger e sobreviver nesse mundo que mói preto. 

Por fim, eu pergunto: vocês foram ensinados cedo demais a fazer o quê? E, depois de aprender, o que fizeram com isso? Só sei que, por aqui, ainda tem um pouco de tinta. E, dentro dessa metáfora, vocês também podem escolher, hoje, o que pintar e o que fazer em suas paredes.



Douglas Souza - Nascido no Parque Veras: músico, pagodeiro, produtor cultural, graduando em história, pesquisador da história negra do Ceará, fundador do Fortaleza negra.