por Taciana Oliveira |
Ruy Guerra e Carla Brasil debatem o colapso do tempo em lançamento de "Cronofagia" no Rio
O cineasta Ruy Guerra e a poeta Carla Brasil se encontram no dia 13 de novembro, às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo, para um bate-papo que promete refletir sobre a aceleração, a exaustão e a solidão da vida contemporânea. O evento marca o lançamento do livro Cronofagia (Editora Appris), obra de estreia da autora. A conversa entre os dois artistas nasce da urgência do tema. Ruy Guerra — cineasta, dramaturgo e poeta — assina o prefácio do livro, onde define a escrita de Carla como “nefelibata com pés no esgoto”, sintetizando a tensão entre lirismo e realidade que permeia seus versos.
Reunindo 37 poemas, Cronofagia mergulha nas contradições da modernidade e nos efeitos do tempo sobre o corpo e a mente, explorando a pressão por produtividade e o esgotamento emocional da era digital. A obra apresenta ainda um projeto gráfico autoral, concebido pela própria autora, que tensiona palavra e imagem em uma experiência estética integrada. “A poesia é um ato de insurgência, onde é possível transformar o sufocamento diário em verso e provocar o leitor a sentir o ritmo e o peso do tempo”, afirma Carla Brasil.
Multiartista radicada no Rio de Janeiro, Carla Brasil transita entre literatura, design, artes plásticas e fotografia, com um olhar inquieto e provocador. Premiada nacionalmente com o Prêmio Poesia Agora — Primavera 2020 (Editora Trevo) e a Seleção Poesia Brasileira — Poetize 2021 (Vivara Editora Nacional), a autora assina também a direção visual de Cronofagia.
1. Seu livro trata da aceleração e da exaustão do tempo contemporâneo. Que experiências pessoais ou sociais mais te impulsionaram a transformar essa angústia em poesia?
Acho que tudo o que vivo — pessoal e socialmente — passa por esse mesmo lugar que não é só meu, mas de todos: essa nossa relação catastrófica com o tempo. Com o tempo do nosso tempo. Independente do cenário de cada vivência, que no meu caso, foi no mercado corporativo, como executiva, tudo nessa relação parece estar desmoronando. O tempo, há muito, deixou de ser só aquele ativo que nos falta. Virou algo muito maior. Uma força. Voraz, corrosiva, impetuosa, que devora tudo o que encontra pela frente: os momentos com quem amamos, nossos sonhos, nossa saúde e até nosso simples direito de não fazer nada com ele. E como disse a poeta portuguesa Matilde Campilho, a poesia não salva o mundo, mas salva o minuto. Então acho que fundo foi isso, não sei se consegui transformar essa angústia em poesia, acho que não, mas consegui suspender o tempo em que eu estava sob o seu domínio: o instante em que uma poesia nascia.
2. No prefácio, Ruy Guerra descreve sua escrita como “nefelibata com os pés no esgoto”. Como você interpreta essa definição? Ela dialoga de como você vê sua poesia?
Confesso que foi a definição mais elogiosa e precisa que já recebi na vida. Vinda do Ruy, que tem esse olhar capaz de atravessar a superfície das coisas, foi quase um diagnóstico. Acho que ele não sintetizou meu estilo, mas meu espírito. Ele parecia saber, até mais que eu, que tem pessoas que só conseguem existir por entre esses extremos, entre o impulso do voo e os pés sujos, afundados na realidade. Nessa vida que acontece entre o ideal e o real. Entre o que a gente quer, e o que a gente tem.
Mas se não fosse assim, eu talvez nem pertencesse a esse tempo. E pensando bem, talvez ele não estivesse se referindo só a mim. Mas a todos nós que seguimos sonhando, esperando, criando e até se iludindo, mesmo quando tudo aqui embaixo é lama.
3. Você assina também o projeto gráfico do livro. Como foi o processo de criação visual de Cronofagia e de que forma o design dialoga com os poemas?
Cronofagia é uma espécie de expurgo, impresso e adensado em palavras, imagens e sensações. Então desde o início, esses elementos nasceram juntos exatamente porque eu não conseguia separar essas camadas. Algumas ideias pediam corpo, forma, espaço. E foi aí que chamei o Daniel Uires.
Ele entendeu isso de imediato. Criou a partir do incômodo, da falha, da falta do espaço entre uma palavra e outra, tensionando e amplificando seus múltiplos significados. Além disso, o trabalho dele tem uma presença muito física. Suas ilustrações entram com a força que nem sempre a palavra sustenta.
4. Vivemos uma era de hiperprodutividade e ruído constante. De que maneira você enxerga o papel da poesia como ato de insurgência e pausa nesse cenário?
Pra mim, tanto escrever como ler poesia hoje é quase um ato de sanidade. Porque a normalidade é que é enlouquecedora. Então, quando você faz isso, é como sair pra respirar fora da caixa (de remédios, inclusive). A poesia é talvez o lugar mais honesto para se estar, onde nossas pequenas humanidades encontram identificação, cumplicidade e alguma decifração na voz de outros como nós. O espaço dela é aquele momento em que nada precisa ser útil, rápido, lúcido ou comercializável.
É realmente tanto ruído nesse mundo, que a gente esqueceu de ouvir. Por sorte, a poesia não.
Poemas do livro
Hino Marginal Brasileiro (págs. 17 e 18)
Ouviram de quem sangra às margens sádicas
De um povo inócuo um brado decepante,
E o sol da liberdade, em passos túrgidos,
Virou-se dessa pátria neste instante.
Se quem furtou nossa igualdade
Conseguiu nos dominar com braço forte,
Teus governos, insanidades,
Atrofiam o nosso povo até a morte.
Ó pátria armada,
Castigada,
Jaze! Jaze!
Brasil, um sonho inverso, um braço rígido
De pavor e insegurança à terra desce,
Se em teu brumoso céu, tristonho e insípido,
A imagem do teu erro resplandece.
Distante da sua própria natureza,
És cego, és pobre, esquálido, corroso,
E o teu futuro espelha essa fraqueza.
Terra calada,
Entre outras mil,
És tu, Brasil,
A mais roubada!
Pros filhos deste solo és tão hostil,
Pátria amarga, Brasil!
Trabalha dor brasileiro (págs. 23 e 24)
Trabalha a dor o brasileiro
do fogo do canteiro
ao som fabril do cinzeiro
Nas ruas dos sonhos varridos
pelas arestas das casas
aos panos e às traças.
Trabalha a dor o brasileiro
no lixo que recolhe
no lixo que escolhe
Na comida que não come,
no estômago que grita
No tudo que constrói
e não habita
Na roupa que costura
e não pode usar
No tudo que serve
e não pode pagar
Aos lugares que conduz
sem poder entrar.
Trabalha na dor o brasileiro
pela terra que é tanto sua
quanto não é
nasce, produz, padece
só não morre
(porque nesse préstimo abusivo,
só morre quem tá vivo).
O tal do trabalhador brasileiro
é mesmo o homem do avesso
a parte execrável escondida
nas próprias entranhas da vida.
Nossos tempos (págs. 36 e 37)
Somos tempos do luto da alma
nascidos onde há tudo e tudo falta
O tudo que nos cansa
em tudo que não nos basta
Recipientes vindo com furo
nesse mundo confuso
denso, sem ser profundo
complexo, sendo mesmo complexo.
Programados para tudo
máquinas que não somos
máquinas que nos tornamos.
Mas ao nos programar
esquecerem que a matéria-prima do ser
vem de outro lugar
de um outro tempo que não cabe nesse.
Deve ser por isso que bugamos,
Assombrados pelo futuro
ameaçados com o passado
Com a mesma bula tratamos isso tudo
Enquanto robotizados
esperamos o milagre do algoritmo
ou da vacina que há de salvar-nos
Mas que até agora, nada.
Redes de Ais (pág. 47)
deslisa, printa
arrasta, clica
cancela quem não se explica
alterna, rola
comenta, silencia
venera quem viraliza
enfurece, engradece
emburrece, enlouquece
quem de felicidade adoece
distorce, contorce
estorce, torce
para quem os endosse
confunde, infunde
difunde, contunde
quem nesse mundo insurge
Elas (págs. 57 e 58)
Onde nascia a vida
agora pousa morto o grão.
O ventre que abrigava sorte e pão
se desfaz em mofo
alimentando vermes
que são menos vermes
que aquele que os serve.
Poderia ser abrigo,
não fosse sangue
Poderia ser vida,
não estivesse fria.
Da casa que produz o dia
à noite que cospe o coração que dorme.
De onde vem esse diabo
que jamais devia ser encarnado
capaz de tirar a vida
da única que pode dar
(até pra quem Deus duvida)?
Agenda de eventos:
Sessão especial e bate-papo com Ruy Guerra
Data: 13 de novembro
Horário: 19h
Local: Livraria Travessa — Botafogo (Rua Voluntários da Pátria, 97), Rio de Janeiro
Disponível em: editoraappris.com.br
Carla Brasil é poeta, escritora e multiartista, vivendo e criando no Rio de Janeiro. Sua produção transita entre literatura, design, artes plásticas e fotografia, sempre com um olhar inquieto e provocador. Premiada nacionalmente — com o Prêmio Poesia Agora — Primavera 2020, da Editora Trevo, e a Seleção Poesia Brasileira, Poetize 2021, da Vivara Editora Nacional —, Carla assina também o projeto gráfico de Cronofagia (Editora Appris), evidenciando a integração entre palavra e imagem.


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