Popular

Escrevam-me, de Renato Negrão

 por *|Adriane Garcia |



Escrevam-me, de Renato Negrão, é uma coletânea de poemas ímpar. Seu projeto de escrita, sua temática, forma, tudo no livro resulta em um conjunto original e criativo aliado ao trabalho gráfico de Elza Silveira. Renato Negrão é um artista multimídia com vários trabalhos ligados à visualidade; sua fotografia, por exemplo, explora o código verbal no recorte, na síntese das frases curtas, nas palavras obtidas do retrato de paisagens urbanas, das vias públicas, criando composições poéticas concisas, verdadeiras sintaxes visuais, foto-poemas. Nessa perspectiva do artista é que Escrevam-me é construído. 


São vários poemas curtos que compõem a vibrante edição, de um amarelo solar. Nela, a persona-lírica se apresenta como naqueles classificados de revistas e jornais para procurar companhia — namoro ou amizade. Esses anúncios, antes da Internet e dos aplicativos de relacionamentos, funcionavam como uma espécie de “Tinder” impresso. Eram caracterizados pela brevidade das descrições pessoais sucintas, em que o remetente expunha suas qualidades mais atrativas e também estabelecia quais, para seu interesse, o destinatário precisaria ter: “músico de boate, compositor român- /tico, curtidor de rock, surf e danças, /quer corresponder-se com jovens /compreensivos.”. Geralmente se indicava uma caixa-postal para a resposta ou mesmo o endereço para se iniciar uma possível correspondência.


Da menina que é escritora ao motoqueiro que quer se corresponder com cocotas, os convites sugerem mais do que anunciam: “sou guia turístico e gostaria de trocar /postais com quem quer conhecer a /bahia”.  O convite lança a possibilidade de, no futuro, estarem no mesmo lugar. O livro mostra personas-líricas jovens, com orientações sexuais e interesses diversos (ou a mesma persona-lírica, em diversas formas, uma hidra de muitas cabeças, polifônica). Quase todas têm em comum gostar de postais (a primeira edição vem com um marcador de páginas em forma de postal com o desenho da capa). Não por coincidência, o poeta, quando de seus projetos “Confluências poéticas, Mostra de poesia mineira em Barcelona” e “Tecendo Afrografias, Mostra de literatura mineira em Luanda e Maputo”, realizados em 2022 e 2023, respectivamente, fez uma campanha de financiamento coletivo em que envolvia postais nas recompensas. 


A troca afetiva é central em todos os versos. O desejo de estar com o outro, primordialmente, ou primeiramente, pela escrita. Em Escrevam-me cada pessoa oferece o melhor de si movido pela esperança do encontro. É interessante que as diversas páginas mostrem pessoas que poderiam se corresponder com outras do próprio livro; por exemplo, a pessoa da página 49 poderia escrever para a pessoa da página 61 ou para as três garotas da página 79; a da página 77 agradaria a todas aquelas procurando amizade, já que é “sem restrições”. Outras são bem específicas: “quero corresponder-me com garotas /interessadas em magia e levitação”.


No posfácio de Rafael Zacca a importante informação de que o objeto base para os versos de Escrevam-me veio da revista Pop. Essa revista, que circulou na década de 1970, foi a primeira publicação especializada para jovens no Brasil, fruto de transformações culturais advindas da contracultura e dos movimentos gay e feminista. Havia novos modelos de juvenilidade e questionamentos sobre o conservadorismo social. Assim, a revista Pop foi um veículo importante que, como toda mídia de massa, construiu representações que simulavam a realidade, escolhendo o que era representado e o que era invisibilizado. Nos anos 70, uma revista como a Pop representava uma juventude “transada” de classe média, a branquitude, em capas que retratavam a heteronormatividade, a despeito do conteúdo, por vezes mais ousado. 


Na década de 70, apesar do crescimento econômico do país e o aumento do consumo de bens culturais — em que o surgimento da Pop é exemplo sintomático — havia profundas disparidades econômicas de raça e gênero. Basta olhar a própria indústria editorial, na década de 70, praticamente toda masculina e branca; na Pop, entre 6 diretores houve uma mulher; nunca uma pessoa negra. A aposta de que os jovens inconformados seriam bons consumistas gerava uma oferta de consumo alternativo, um consumo transado. Em um artigo de Maureen Schaefer França, intitulado Juventude “transada” nas capas da Pop, primeira revista jovem do Brasil, o pesquisador interpreta as capas e seus signos de diversão, alegria, despojamento, liberdade, bom-humor, relacionamentos, cores vibrantes, casais jovens sorridentes, pares (sempre um garoto e uma garota), sempre pessoas magras, uma única vez a capa trouxe duas pessoas negras (integrantes do grupo As Frenéticas). Sucesso, beleza e riqueza eram associadas à parcela privilegiada da população. Ainda assim, a revista, em seu conteúdo, tensionou o conservadorismo com a moda unissex, mesmo que o unissex tenha se dado a partir da roupa masculina. Quando trios, a revista sempre trouxe um homem e duas mulheres. Em uma capa, apenas, duas mulheres. Nenhuma com dois homens. Era a juventude “transada”, pero no mucho.


Todo esse entendimento torna o livro de Renato Negrão ainda mais interessante. A colagem, técnica que Negrão utiliza em Escrevam-me, é uma arte milenar de composição que envolve o desmonte, a mistura, a combinação de materiais existentes para criar algo novo. É assim que o poeta recorta e cola a revista Pop e tudo que ela significa, criando uma outra coisa: cortando os anúncios que mais interessavam ao seu projeto de palavra e imagem, dando a ele uma capa com o retrato de um jovem negro, Aroldo Pereira, agitador cultural, criador do Psiu Poético e integrante do Grupo de Literatura e Teatro Transa Poética. A fotografia de Aroldo Pereira também é recortada e colada entre item de consumo (bebida enlatada) e itens religiosos que remetem à diáspora africana e à cultura afro-brasileira (espada-de-são-jorge e sapatos de Zé Pilintra). É assim que a revista Pop, que não chegou ao jovem Renato Negrão (ele foi tê-las em mãos em 2016, quando recebeu três exemplares de presente, em uma residência artística) foi apropriada por ele, cortada e colada como matéria de versos, fazendo de um objeto da cultura de massa objeto artístico, agora com o registro de outras transformações. 


Ao escolher a forma de anúncio, o poeta faz a opção pela brevidade e pelo tom prosaico. Porém, no seu trabalho de recorte, Renato Negrão versifica o material, antes prosa, utilizando sutilezas no corte silábico e na translineação. Novas funções e, portanto, novos sentidos surgem. A leitura atenta se beneficia de sutilezas como (negritos meus): “gostaria de corresponder-me com jo-/ vens de todo mundo.” Ou: “gostaria de corresponder-me com jo-/ vens de boa cuca para uma amizade/ legal.”. Ainda a translineação usada para destacar uma palavra importante para o livro: “curto a piração, o rock, a mitologia, a vida,/ a arqueologia, os discos voadores, a com-/ postagem.” Sem contar o componente símbolo de derrisão, que pode ser associado à época pandêmica em que o projeto de Renato Negrão se desenvolvia: “estou interessada em trocar ideias so-/ bre música, conjuntos, artes e mil ba-/ ratos.” Aqui, a translineação fez resultar em dois usos de modo: “se você gosta de amar e viver a vida/ de um modo livre, escreva para mim.”: viver a vida livremente; livremente escrever para mim. 


Escrevam-me abre com falas de Gilberto Gil. Os textos, em uma página, dizem da cultura brasileira com o peso da presença negra na formação dessa cultura; do sentimento de Gil quando criava a música Pai e Mãe e sua preocupação com os presos; da importância do amor. Arte nos trópicos, revista Pop, Gilberto Gil, a busca de um abraço, poesia visual, juventude transada, viagens, postais, o sonho de um encontro, levitação, piano, Peter Frampton, praia, a espera de uma carta, população carcerária, branquitude, negritude, sexismo, Aroldo Pereira, apartheid social, futebol, poesia e um Brasil inteiro que se queira recortar: o poeta reorganiza e cola dando novos sentidos. Escrevam-me é um livro que diz muito sobre o que não está escrito e porque não está escrito. No que é silenciado há uma grande história. Renato Negrão trabalha com as pistas. O livro é tão interessante que é difícil ler e não escrever sobre ele ou para ele: Escrevam-lhe.


*** 

Escrevam-me

Renato Negrão

Poesia

Impressões de Minas

2025



Sobre o autor

Renato Negrão, natural de Belo Horizonte, é poeta, artista visual, compositor, arte-educador, artista performativo e curador independente. É licenciado em Artes Visuais pela Escola Guignard, da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Investiga as relações entre palavra, imagem e som — do livro à performance, da fotografia à música. Ministra oficinas de escrita criativa e realiza leitura crítica e sensível de originais. Publicou Vicente Viciado (Ed. Rótula, 2012), Odisseia Vácuo (Ed. SQN Biblioteca, 2016), Tu Comigo e Você foi sonhade (Ed. do autor, 2025) e Escrevam-me (Ed. Impressões de Minas, 2025)







Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)