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por Adriano B. Espíndola Santos__
A vitória , 1939 - por René Magritte |
Escutei,
ao longe, indícios. Logo o arrepio e o asco, feito unhas raspando a
parede lisa da sala, percorreram o meu corpo. O mal-estar iminente, a
galope, atravessava as entranhas e arrancava meu coração, boca
afora.
Era
real. Incrível. Mal pude acreditar, em pleno começo de ano. O
sujeito entrou e sentou, com louros, no mesmo espaço que eu. E aí?
Recolhi-me à insignificância de um mero trabalhador. Eu,
simplesmente, fui forçado a dividir o ar com um sujeito que detonou,
durante cinco meses, a minha vida e a da minha família. Que podia
fazer naquele estado de submissão? Repito, para me convencer, sou um
reles assalariado; e os ganhos valem mais a pena que a cordialidade,
humanidade, etc., etc., etc. E quando o dinheiro não valeu mais que
qualquer pessoa?
O
sujeito, por pura implicância, intrínseca desfaçatez, vinha
ganhando, aos poucos, a simpatia do patrão, que, coitado, pode
acabar se ferrando como eu me ferrei. E ele sabe; isso é o pior. Ele
acompanhou a minha tormenta, o desgaste sobre-humano irresistível
por que passei. Mas, sem fugir à regra, para o chefe foi um
grandíssimo mal-entendido. Ao passo que, assim, ele disse, em outras
palavras: “Você está pirando, rapaz”. E ri – ar blasé
derramado. E não consigo esquecer o mantra que ele adquiriu (pagando
caro) nos últimos tempos: “Controle emocional, Silvério! Controle
emocional, rapaz!”.
Estou
vendo, reparando a cara dos dois, que gracejam: “Grande negócio!”;
ainda mais, zombando da minha presença. Ganhos mútuos? Talvez. Ou
um pensando em ganhar um pouco do outro. A única certeza: nenhum
naquela sala estava absolutamente tranquilo, relaxado. Eu, por ter de
permanecer ali, como funcionário imediato, atado aos comandos do
chefe. E eles, com os seus blefes; treinamentos para controle
emocional; tons ponderados e toques milimetricamente calculados de
mãos; maneiras circunspectas que se olham, para transparecer
confiança, certeza e, por fim, vantagens recíprocas.
Tentei
me alhear, primeiramente, mas os sons aumentaram, sem controle.
Dispersei-me, completamente. Enquanto estavam lá, não conseguia
trabalhar.
Fui
arrastado e me espalhei; vaguei e aventurei-me a passear pela praia,
onde eu queria estar. Então, um chiste medonho me sugou à
realidade; outra frase de efeito, e, como bons e velhos conhecidos,
expertos em negócios, certificaram efusivamente que processo iria
continuar.
Quando
pensei que o sujeito ia despedir-se, virou-se, enfocou o patrão, e
articulou: “Aproveitando o ensejo, e o coworking?”. Meu
chefe, de braços abertos, sem o abraçar, quase o pegou no colo,
acolheu como quem acolhe um parente vivido anos no exterior, e
exclamou expansivo: “Ótima oportunidade!”, e desembestou a falar
que teria o maior prazer em recebê-lo e fazer parcerias; que
precisava de uma pessoa comprometida como ele, para desenvolverem
bons trabalhos; e o principal, claro que iria proferir: “Vamos
ganhar muito dinheiro em 2020!”.
O
embuste, enfim, se foi. Depois de passado o estorvo, da energia
pesadíssima que comprometia o lugar, pensei mais e desejei que o meu
chefe tivesse tino e sorte. Ele não tem o filtro natural para
despachar o mal-estar. Ele não sente. Já percebi. Sorte ou azar?
Não sei. Ele, infelizmente, tem a propensão para pensar em cifras,
números. E eu, que achei que podia livrá-lo dos absurdos
inconvenientes, não pude. Sou, além de tudo, impotente.
________________________
Adriano
B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do
livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado
humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para
se sentir vivo: o coração inquieto.
por
Alessandro Caldeira___
Durante
toda a minha juventude brinquei só. Fingi ter amigos, amigos da
espécie mais rara que só criança consegue presenciar: os
imaginários. No entanto, a presença deles nunca foi capaz de sanar
a minha infelicidade. Depois de horas brincando, até eles voltavam
para a casa e, assim, eu voltava a ficar só. Desde então, descobri
que a solidão era a casa onde eu morava e por isso que ninguém
sobrevive quando peço para entrar.
Me
é estranho que a infância ainda me seja um desejo porque não
lembro muito bem dela. Mesmo tendo 15 anos, a minha infância é um
passado distante. Mas quando perguntam meu nome, eu respondo: Rafael,
mas na infância eu sei que só atendia às vozes do vazio que se
aproximava e me perguntava: você tem nome, garoto? E eu respondia,
com os olhos assustados, só que cheios de esperança dessa pessoa
desconhecida que habita no escuro dos meus dias ser meu novo amigo:
tenho sim! Me chamo solidão.
Hoje, no auge da minha pré-adolescência, onde a pele não queima no sol e nem enruga na chuva, portanto, com boa saúde, não escapo da minha insanidade que habita em mim constantemente e dos meus pensamentos que me tornam criança novamente, como diria Graciliano, eu misturo coisas atuais a coisas antigas.
Hoje, no auge da minha pré-adolescência, onde a pele não queima no sol e nem enruga na chuva, portanto, com boa saúde, não escapo da minha insanidade que habita em mim constantemente e dos meus pensamentos que me tornam criança novamente, como diria Graciliano, eu misturo coisas atuais a coisas antigas.
É
por isso que muitos me pegam de surpresa por lugares que nem são
mais meus ou que se quer existiram, e numa atitude desesperadora e
impaciente, me acudam, “acorda”. A minha vida é reduzida em
alguém sempre me pedindo para eu acordar. Não as culpo. Elas querem
que eu esteja perto, mas quando “acordo” nego que estivesse
dormindo.
“Estava
sim!”, afirma de forma veemente e irritante a Lari. Ela é a minha amiga,
sei que é; principalmente quando ela diz que “se preocupa com as coisas
que eu tenho na cabeça”, mas quando ela fala desse jeito me sinto aborrecido
porque tenho a impressão de que faço parte de uma espécie diferente.
É legal ser diferente, porém só quando as pessoas percebem que
você é diferente, caso contrário, você só fica sozinho.
“Por
que têm tanto medo da solidão, Rafa?”, a Lari me pergunta isso
todos os dias (irritante!), mas eu minto que “não sei”, em parte
porque eu quero que a Lari pare de ser chata e não se intrometa onde
não é chamada, mas é porque, também, não quero entrar em
assuntos que me doem.
Só
que mais uma vez me ponho distraído e volto a viver coisas
antigas...
Continua...
____________________________
Alessandro
Caldeira é
jornalista, santista e nas horas vagas prefere postergar qualquer um
desses títulos para se dedicar à literatura, música e cinema.
por
Rebeca Gadelha__
Artista: Asteroid |
Tenho
(re)visitado essas memórias até se tornaram lugar-comum,
revisito-as com uma xícara de chá, como se me preparasse para algo:
poderia ser o começo de um novo dia, o fim de uma fase, o meio de
qualquer coisa que já passou da hora de terminar. Quando criança,
costumava dizer “meu pai caiu no mar e um navio passou por cima”
era a explicação infantil para justificar o descaso da ausência.
Alguns anos depois, mamãe me disse, com uma voz macia, que meu pai
vinha me visitar — e então meu mundo virou do avesso — então
ele não havia caído no mar, se perdido entre o infinito de água
acima e abaixo, mas estava lá em algum lugar e finalmente este lugar
seria perto de mim. “Ele quer te conhecer” e foi assim que se
começou o processo de idas e vindas, sem permanências. Conto nos
dedos suas visitas e suas promessas — quero ter contato com você,
dessa vez vai ser diferente — já na terceira vez que mamãe
anunciou com a mesma voz macia a visita deste ser distante, eu disse
“NÃO” e somente vovó me convenceu do contrário, ao que parece,
avós tem um certo jeito para convencer pessoas. Nada foi diferente,
tudo ficou no lugar, exceto a criança em mim, que deslocava-se cada
vez mais para algum lugar estranho, as somas de decepção minando
aquela vontade de ser completa, aquela nostalgia pelo o que não
existia.
Veio-se
então a vez que seria a última — e dentro de mim acredito que já
sabia — porque agora seria diferente, porque eu já tinha 20 anos e
éramos adultos, poderíamos falar sinceramente um com o outro, abrir
o jogo sobre questões do passado, lavar a roupa suja que se
amontoara nos quartos escuros. Não houve sinceridade que bastasse,
nem todo a roupa suja foi lavada, talvez fosse preciso todas as águas
do mundo para isso, talvez bastasse um pouco mais de vontade. O fato
é que sabia que ele não ficaria, não importava o que fosse dito e
que, sabendo disso, fosse melhor que fosse embora para sempre e
sumisse de uma vez. Continuaríamos como dois estranhos: ele como um
nome na certidão de nascimento e eu como um nome no imposto de
renda. Uma relação de ausências convenientes, principalmente para
ele — que ainda recebe descontos aqui e ali do leão por me
declarar como dependente. Alguns trocados por mês para poupar o que
o dinheiro não compra: tempo.
Este
texto é parte da série Reminiscências, que narra a tentativa de
uma garota de recuperar parte da história de sua família a fim de
compreender a si mesma. Clique aqui
para ler o prólogo.
Rebeca
Gadelha
nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia
dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é
apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de
avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi
responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual
em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário,
publicada pela Editora
Aliás.
Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios
sobre a Loucura e
Fale
com Elas sob
o pseudônimo de
Jade
.
por Baga Defente
Nota do Autor
Primavera Árabe, golpe de estado no Egito, revelação dos esquemas de espionagem da NSA. Guerra na Síria, Papa sulamericano, morte de Mandela e Chávez. Legalização do casamento gay, descriminalização do aborto e liberação da maconha — os três no Uruguai.
Jornadas de Junho, incêndio na boate Kiss, ampliação dos direitos das domésticas. Lançamento do programa Mais Médicos, prisão dos condenados do Mensalão, o sumiço do pedreiro Amarildo:
Dentro e fora do país, 2013 foi um ano tumultuado.
A nível pessoal & subjetivo, também.
Em junho de 2013, enquanto explodiam as manifestações (a priori) contra o aumento das tarifas de ônibus, eu amargava o término de uma relação.
Quase dois anos antes, havíamos — minha então companheira, nossos dois filhos e eu — trocado o cinza da cidade pelo verde do interior e vivíamos em um bairro rural.
Após a separação, optei por continuar ali, morando sozinho em uma pitoresca edícula “hobbit” — espécie de bunker encrustado em um pequeno morro, com arcos de bambú sustentando o telhado e a base das janelas ao nível do solo —, acompanhando online, em tempo-real, toda essa movimentação na capital enquanto encarava uma ressaca afetiva, que nasce o meu interesse pela política.
Até então eu me dizia um ser apolítico. Seis anos passados, nas mais diversas esferas — pessoal, social, profissional, artística — a Política é um dos meus temas centrais.
Este livro pretende ser um relato poético-político-pessoal dos fatos ocorridos no Brasil dos últimos anos.
Um retrato subjetivo do golpe jurídico-midiático de 16, cujo ápice foi o impeachment da primeira presidente mulher do país, e suas consequências — as quais estamos vivemos e, pelo visto, ainda viveremos por um bom tempo.
Por isso, creio ser válido comentar algumas coisas: primeiro, os poemas aqui apresentados seguem sua ordem de escrita. Assim, podemos ver uma certa inocência no poema de abertura, na crença de que “o gigante havia despertado”.
Inclusive, no início da edição deste livro, em parte por vergonha dessa ingenuidade — e por não mais compartilhar algumas das visões ali proferidas —, não o havia incluído nesta seleção; porém, conforme o livro foi tomando forma, achei importante tê-lo aqui, justamente por marcar o início, ainda que inconsciente, desta nova fase.
Poema dos anos 20, o único desta seleção previamente publicado — em Pingalove, meu livro de poemas anterior —, é aqui repetido por ter sido escrito durante a bizarra sessão da câmara que culminou com o afastamento de Dilma
Rouseff, um marco político tornado poético.
Na sequência temos o Poema de Repúdio, escrito para ser lido durante a abertura da 7ª Conferência Municipal de Cultura de Botucatu, em maio de 2016
O evento contemplava a leitura e aprovação do regimento interno da conferência, além de algumas intervenções artísticas; essa foi a minha, feita de supresa, sem aviso prévio, visto que fui integrante da comissão organizadora.
A leitura gerou desconforto em três ou quatro presentes, que foram embora e depois reclamaram nas redes sociais.
Por receio de retaliação do público, integrantes do poder público cogitaram a possibilidade de adiar as atividades do dia seguinte. Insistimos em seguir com a programação.A conferência transcorreu sem problemas com recorde de público.
Para mim, serviu para sentir e observar o poder mobilizador e transformador que a Poesia possui, mesmo quando não nos damos conta disso.
Então a vida seguiu, o país afundou e, graças ao Grande Acordo Nacional — com Supremo, com tudo — e suas consequências, os poemas deste livro se fizeram ser escritos.
Torço, realmente, para que possamos, o quanto antes, celebrar nossa saída do fundo desse poço lamacento cheio de alçapões — mesmo que isso signifique não mais (precisar) escrever poemas políticos.
Baga Defente, abril de 2019
________________________________________________
Baga
Defente é
poeta, artista visual & produtor cultural, sempre utilizando o
Acaso como sua principal ferramenta criativa. Em 2011 trocou o cinza
da cidade pelo verde do campo e se mudou da capital paulista para um
bairro rural no interior, onde divide seu tempo entre trabalhos
comissionados através do NADA∴Estúdio
Criativo
e sua produção autoral, a qual se manifesta em vídeos, pinturas,
colagens e textos que abordam e mesclam relações humanas
afetivo-sociais, política & ocultismo.
Desde
2015 também se dedica à publicação independente, produzindo
livros artesanais de pequena tiragem e grande cuidado, tendo até
agora lançado 13 títulos, quase todos de sua autoria.
Conheça
mais procurando por @bagadefente e @NADAestudiocriativo pelas redes
sociais.
por
Rebeca Gadelha__
Artista: Smile |
Horácio
veio do Norte com seu irmão, deixou na floresta um outro,perdido à
beira de um rio, apenas a espingarda deixada para trás. Na cidade ao
lado da capital comprou umas terras num povoado, fez um sítio,
casou-se com Chiquita, viveu da terra, dos bichos, teve filhos e
filhas — todos os nomes começavam com a letra M . Dizem estes que
Horácio ajudou a construir a cidade, hoje nada resta dele além de
uns poucos papéis na secretária de planejamento: Horácio é apenas
um nome que se perdeu, dentre tantos outros, no meio da história de
uma cidade — como tantas outras — que cresceu engolindo gente.
por
Rebeca Gadelha__
Artista:
kirisawa Juuzou
Isto
é o que sei (e não é muito):
Os bisavós teriam fugido para casar, bisavó teria morrido poucos anos depois, “doença” era tudo que vovô dizia; bisavô a seguiu pouco depois, o corpo precipitando-se de encontro à via férrea — se o fim foi proposital ou acidental, isto não o sei, vovô também nunca disse e só agora começo a desconfiar da veracidade desses fatos. Segundo vovô seus pais haviam fugido da Europa para o Brasil, pois os pais de seus pais eram contra o casamento, o que o avô (homem do qual eu nunca soube o nome) de meu avô fazia no Brasil na época da morte de seu filho eu nunca soube, também nunca questionei até este momento. O fato é que meu avô acabou indo morar com o pai de seu pai, um homem duro do qual ele nunca falava o nome. Falava da fome, das surras, das picadas de escorpiões, mas nunca o nome dele. Seus irmãos foram todos desbaratados em uma geografia incerta: alguns ficaram com os tios, outros com os avós maternos e somente um irmão — que tinha exatamente o mesmo nome do pai — juntou-se a ele na infelicidade de ser criado pelo avô paterno. Aos 15 anos meu avô e seu irmão falsificaram documentos e entraram para as forças armadas, era a década de 1940, num estado abandonado por deus e pelo estado como o Ceará, as opções eram poucas: mendicância, crime, tentar a sorte em Fortaleza e, se falhar, cair nas duas primeiras alternativas. Ouvi isso direta ou indiretamente de alguns dos poucos colegas militares que conheci, também ouvi dos filhos de outros, que encontrei por aí: “naquela época era a alternativa mais honrada para não morrer de fome”. Honrada ou não, foi a alternativa que meu avô escolheu, juntou-se à Marinha ainda antes de 1950 e os frágeis laços que tinha com sua família foram se desfazendo. Quando estava no mar — ou antes de viagens que sabia ser longas — depositava todo o ordenado para a esposa e o confiava ao bom senso da mulher, sem nunca saber se realmente voltaria. Já quando nasci, na década de 1990, só lembro de um cartão postal de minha tia-avó, enviado dos Estados Unidos, uma casa coberta de neve em uma rua qualquer, palavras de saudade que não esperavam resposta. Nunca soube muito da família de vovô: havia dois primos padres, um sobrinho era pistoleiro, a irmã perdera o útero para um câncer, outra estava nos EUA (talvez até fosse esta a do câncer), mas vovô nunca realmente se explicava, de forma que ele próprio parecia mais uma lacuna do que homem.
Os bisavós teriam fugido para casar, bisavó teria morrido poucos anos depois, “doença” era tudo que vovô dizia; bisavô a seguiu pouco depois, o corpo precipitando-se de encontro à via férrea — se o fim foi proposital ou acidental, isto não o sei, vovô também nunca disse e só agora começo a desconfiar da veracidade desses fatos. Segundo vovô seus pais haviam fugido da Europa para o Brasil, pois os pais de seus pais eram contra o casamento, o que o avô (homem do qual eu nunca soube o nome) de meu avô fazia no Brasil na época da morte de seu filho eu nunca soube, também nunca questionei até este momento. O fato é que meu avô acabou indo morar com o pai de seu pai, um homem duro do qual ele nunca falava o nome. Falava da fome, das surras, das picadas de escorpiões, mas nunca o nome dele. Seus irmãos foram todos desbaratados em uma geografia incerta: alguns ficaram com os tios, outros com os avós maternos e somente um irmão — que tinha exatamente o mesmo nome do pai — juntou-se a ele na infelicidade de ser criado pelo avô paterno. Aos 15 anos meu avô e seu irmão falsificaram documentos e entraram para as forças armadas, era a década de 1940, num estado abandonado por deus e pelo estado como o Ceará, as opções eram poucas: mendicância, crime, tentar a sorte em Fortaleza e, se falhar, cair nas duas primeiras alternativas. Ouvi isso direta ou indiretamente de alguns dos poucos colegas militares que conheci, também ouvi dos filhos de outros, que encontrei por aí: “naquela época era a alternativa mais honrada para não morrer de fome”. Honrada ou não, foi a alternativa que meu avô escolheu, juntou-se à Marinha ainda antes de 1950 e os frágeis laços que tinha com sua família foram se desfazendo. Quando estava no mar — ou antes de viagens que sabia ser longas — depositava todo o ordenado para a esposa e o confiava ao bom senso da mulher, sem nunca saber se realmente voltaria. Já quando nasci, na década de 1990, só lembro de um cartão postal de minha tia-avó, enviado dos Estados Unidos, uma casa coberta de neve em uma rua qualquer, palavras de saudade que não esperavam resposta. Nunca soube muito da família de vovô: havia dois primos padres, um sobrinho era pistoleiro, a irmã perdera o útero para um câncer, outra estava nos EUA (talvez até fosse esta a do câncer), mas vovô nunca realmente se explicava, de forma que ele próprio parecia mais uma lacuna do que homem.
Morreu
e hoje não sei nada sobre ele. Sei que me recitava poesia e falava
sobre universos alternativos e radiação, falava sobre psicologia e
mediunidade (era espírita, creio eu), suas únicas palavras sobre a
ditadura eram sempre “entrava gente para nunca mais sair”. me
pergunto se teria adiantado inquirir, investigar esses fatos de
verdades dilaceradas que vovô sobre si, creio que não. Vovô sabia
guardar segredos.
_____________________
Rebeca
Gadelha
nasceu no Rio em agosto de 1992, cresceu em Fortaleza, na companhia
dos avós. Geógrafa sem senso de direção, artista digital, é
apaixonada por animes, mangás, games e chá gelado. Tem medo de
avião e a única coisa que consegue odiar de verdade é fígado. Foi
responsável pela diagramação, ilustrações e concepção visual
em Balbúrdia, participa da coletânea Paginário, publicada pela
Editora Aliás. Atualmente escreve para as revistas do Medium Ensaios
sobre a Loucura e Fale com Elas sob o pseudônimo de Jaded.
Eis o Manifesto Balbúrdia Poética: 80 tiros, composto por 24 poemas escritos por 24 poetas oriundos de diferentes regiões do país. Vozes que reverberam outras milhares de vozes. Mulheres e homens que alimentam o fogo da resistência. O Manifesto nasce como resposta contrária à celebração messiânica da ignorância, ao déjà vu fascista travestido de Ordem e Progresso. Esse é o nosso território: a palavra. Este é o nosso verbo: existir.
E para que não reste nenhuma dúvida sobre o que nos inspira, segue o último texto do educador Paulo Freire:
(…) Se a educação sozinha não transforma a sociedade sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que dizemos e o que fazemos. Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros.
Participam: Adriane Garcia, Álvaro Santi, André Luiz Pinto da Rocha, Ana Argentina Castro Sales, Aymmar Rodriguéz, Baga Defente, Bell Puã, Cândido Rolim, Casé Lontra Marques, David Alves, Flavia Gomes, Fred Caju, João Gomes, Juliana Meira, Leonardo Antunes, Lisiane Forte, Luiz Carlos Coelho de Oliveira, Luiz Martins da Silva, Norma de Souza Lopes, Renan Peres, Ronald Augusto, Taciana Oliveira, Talles Azigon e Tania Consuelo.
#elenão #balbúrdiapoética #manifesto
Coordenação: Taciana Oliveira
Concepção Visual & Projeto Artístico: Rebeca Gadelha
Conselho Editorial: Ronald Augusto e João Gomes
Agradecimentos: Cleudivan Jânio, Miguel Rude e Carla Vilela
Editora: CJA Edições
Link para download: One Drive
Ler mais publicações no Calaméo
__________________________________
Taciana
Oliveira é mãe de JP,
cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por
fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias
e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir:
Ter bondade é ter coragem.
por
João Gomes___
Nunca
me senti tão lembrado, a contragosto dos héteros, por ser o que
sou. Junho é o mês LGBTQ, essa sigla que só cresce, arrastando
multidões e adere quase tudo pela diversidade em si. Nunca também
fui à Paradas, metrópoles, saunas e cinemas pornô. Mas não é por
isso que desejo lembrar nossas conquistas, mas há quem ache que uma
Parada da Diversidade do Orgulho LGBTQ é apenas um Carnaval fora de
época, um golden shower em becos ou mesmo que cirurgia de vasectomia
é a causa de ser homossexual.
Custa
pensar como seria se não houvesse esse embate, essa troca de forças,
de olhares, de repressões e ataques homofóbicos. É um salve-se
quem puder, só deixe que seus amigos saibam, não dê a entender
nada para não morrer. Mas tudo é uma questão cultural, do modo de
agir e pensar, e biológica do modo natural de desejar. Negar a si
mesmo é algo religioso, por isso há os curiosos, os ativos na
homossexualidade e negadores da passividade, donos de uma meta
corporativa de homofobia que os encubra. Há um pensamento bem
verdadeiro que se encaixa a isso: você pode ser gay e não ser
homossexual, e homossexual sem ser gay.
Obra de Leonilson |
Não
haveria necessidade de uma sigla se as pessoas não gostassem tanto
do rótulo, do estar identificado e agrupado para lutar por direitos
óbvios. Com a modernidade, depois da Revolução Sexual, não
deveríamos estar batendo nisso. Mas como o óbvio é ululante, como
sugere Nelson Rodrigues, persistimos em garantir nosso espaço a um
preço caro às vezes. Médicos aclamados por sua atuação, como
Drauzio Varella, pesquisador do tema HIV/Aids, atenta para a questão
biológica citando inclusive a homossexualidade entre animais. Até o
Papa Francisco pede que tudo isso seja esclarecido no julgamento
final e que não cabe a ninguém julgar no mesmo plano, todos merecem
respeito. Mas há quem acuse que toda a cúria é homossexual, as
freiras são bissexuais ou lésbicas e tudo é coberto pela manta
divina.
por Taciana Oliveira___
No artigo Mito construído II: o desenvolvimento da crônica esportiva brasileira, de Felipe Rodrigues da Costa, o autor pergunta: Teria sido Mario Filho que, trazendo uma nova forma de escrever, um estilo mais simples, sepultou a escrita de fraque dos antigos cronistas esportivos? Seria ele a referência do nascimento da crônica esportiva, incorporando ao gênero, além da nova linguagem, respeitabilidade ao ofício da crônica?
No artigo Mito construído II: o desenvolvimento da crônica esportiva brasileira, de Felipe Rodrigues da Costa, o autor pergunta: Teria sido Mario Filho que, trazendo uma nova forma de escrever, um estilo mais simples, sepultou a escrita de fraque dos antigos cronistas esportivos? Seria ele a referência do nascimento da crônica esportiva, incorporando ao gênero, além da nova linguagem, respeitabilidade ao ofício da crônica?
O
jornalista Mario Filho,
irmão do dramaturgo
Nelson Rodrigues,
é pioneiro
na criação de textos que promoveram
uma aproximação do jogador
de futebol
com
o leitor. Mas
é Nelson
Rodrigues, autor
do célebre A Pátria de
Chuteiras, o responsável
pela popularização do gênero. O escritor sabia como ninguém
transformar em arte literária
sua paixão pelo
esporte mais popular do país.
O jornalista Alessandro Caldeira recentemente criou o projeto Afinta, um espaço dedicado ao futebol e a crônica esportiva. Nessa edição publicaremos uma crônica e uma pocket entrevista com o autor.
A
crônica esportiva é um gênero visitado por figuras célebres como
Nelson Rodrigues e Armando Nogueira. Nelson a imortalizou como gênero
literário. Fala pra gente dessa sua paixão pelo jornalismo
esportivo. Nelson está certo quando afirma que “No futebol, o
pior cego é o que só vê a bola.” ?
Eu
acho que a minha paixão pelo futebol começou quando eu era criança.
Sempre fui muito viciado em futebol, mas sempre preferi jogar. Lembro
que eu tinha um jogo de botão e ficava montando campeonatos com
representação da realidade. Criava times, jogadores, montava
escalações, enfim, em dia de jogo eu não assistia futebol. Eu
ouvia no rádio e ia acompanhando enquanto meus times de botão
tinham seus campeonatos particulares. Depois que passou a infância e
a adolescência, tive uma fase que gostei mais de tática,
estatísticas, modelos de jogos e tudo mais.... Só que nunca me
sentia verdadeiramente bem com isso, não sentia que a representação
do futebol estava nisso porque se perde um pouco a humanidade sentida
durante o jogo. A partir daí eu decidi aceitar o que realmente
acredito, que é não só ver a bola, como ela vai até os jogadores,
mas sim o que os jogadores fazem com ela... Seus comportamentos, seus
sentimentos diante da bola.
Afinta
é o teu projeto pessoal. Um espaço para quem acredita na capacidade
de transformar o futebol em arte. Escrever sobre futebol ainda é um
execício afetivo sobre algo que define alma do brasileiro?
Eu
acho que o brasileiro tem muito interesse pelo futebol, de falar
sobre futebol. Embora esse interesse tenha diminuído por questões
afetivas e culturais. Mas vejo ainda assim muitos escrevendo como uma
forma de interagir com quem se interessa. Ainda mais hoje em dia que
as redes sociais, como o Twitter, permitem se falar sobre qualquer
assunto livremente.
O
poeta Paulo Emílio Azevedo diz que "Arquibancada de estádio de
futebol é igual missa de domingo - um senta e levanta danado
esperando Deus marcar um gol pra libertar o delírio" Pra você
futebol é uma liturgia, uma celebração?
O
brasileiro tem uma conexão muito grande com o futebol. A cultura
brasileira permite isso. Não é difícil encontrar um brasileiro que
tenha o sonho de ser jogador, e isso se deve muito à nossa formação
nas ruas. Normalmente são os meninos ou meninas que saíram de uma
família pobre que tem esse desejo. O futebol te permite ser o que
quiser. É aonde o brasileiro tem a capacidade de sonhar e
transformar em realidade através da bola. Sempre tivemos uma
tendência maior em jogar do que assistir futebol. Brasileiro gosta
de sentir o jogo na prática. Mas
isso mudou com o passar dos anos por estarmos presenciando um choque
cultural. Muitos "cientificistas" idolatram o que vem de
fora e expulsam o que vem daqui, rotulando como algo simples e pobre.
Isso gera um desinteresse, a torcida não se identifica com isso. Eu
vejo o futebol como uma celebração. É no campo que o brasileiro se
sente livre para ser o que quiser.
_________________________________________________
O
Drible Interrompido
por Alessandro Caldeira
O
interesse desmedido pela vitória deixou o brasileiro alheio à
tradição da gestualidade corporal na cultura do País.
Certa
vez, numa quadra escolar onde amigos organizavam as “peladas”
todas segundas-feiras, o garoto que mais gostava de driblar recebeu
uma advertência de seu companheiro de equipe: “Não faça muita
firula”. Assim que acabou o jogo, o garoto comentou perto de mim:
“Eu não sei jogar bola”, convencido de que seu estilo de jogo
era errado.
Ao
mesmo instante, senti como se alguém tivesse tirado o sonho daquele
garoto, como um mágico limitado na criação de truques menos
ilusórios.
No
entanto, quem via o pequeno franzino jogar, logo se sentia diferente
perto dele. Em outras palavras, era como se o público obtivesse uma
nova descoberta quando a bola grudava nos pés daquele garoto. Os
comentários de quem o assistia eram os melhores possíveis: “Esse
garoto tem talento”. “Não dê muito espaço, senão já viu! ”.
“Ele não fica nervoso na frente de marcador algum”.
A
expectativa que a “torcida” gerava em cada toque na bola daqueles
pés pequenos e magros o transformava em uma “celebridade”, o
público notava-o, aquele era o momento em que ele podia interagir
com outras pessoas e tornar-se conhecido sem precisar falar, porque é
esse o objetivo do futebol: a conectividade social entre aqueles que
estão presenciando o jogo, dentro e fora da quadra.
Mas,
de repente, após aquele comentário que veio como uma faca em seus
pés, o futebol do menino sumiu junto com a vontade de ser notado
através de seu talento. Assim, o garoto se viu pisando em uma “terra
estrangeira”, deslocado em um espaço que não comportava seus
sonhos.
Entre
os brasileiros, o drible virou uma espécie de ritual profano, uma
dança Lundu. Parafraseando Nelson Rodrigues: Brasileiro é menos
brasileiro no Brasil. E a cena ocorrida naquela quadra fez-me
imaginar o peso daquele garoto em se sentir culpado por apreciar o
lúdico, o imaginativo, ou seja, por conservar o estilo brasileiro.
Se
Garrincha, Pelé e Rivelino tivessem no futebol de hoje, eles teriam
se aposentado sem ter dado um drible sequer na vida, impedidos de
exercerem sua arte por excelência por terem que ceder à obediência
da “ciência-tática”.
Porém,
não é novidade entre os “cientificistas da bola” a concordância
de que o futebol evoluiu e por isso não tem drible, ou de que o
futebol precisa ser mais competitivo, negando o drible como recurso
que leva à vitória.
Mas
eu contra-argumento dizendo que, na verdade, o futebol não evoluiu,
nós é que perdemos a essência do jogo brasileiro porque não
entendemos nada da nossa cultura, substância que se manifesta dentro
e extracampo, e que valoriza a nossa tradição lúdica.
É
mais fácil ver o brasileiro sair de seu País de origem e virar um
alemão, espanhol ou inglês relatando uma certa “cultura
futebolística” que aprendeu no exterior como se fosse ensinar aos
brasileiros um esporte novo.
O
último jogo da Seleção Brasileira, por exemplo, contra a Rep.
Tcheca, surgiu um comentário criticando a forma como o Brasil está
se preocupando demais com a tática, justificando que esse era o
principal motivo pelos jogadores do País não terem mais a
capacidade de driblar.
Não
demorou muito para os cientificistas da bola estufarem o peito e
refutarem a opinião dizendo que o brasileiro não pode ser mais
individualista porque o futebol mudou.
Porém,
a impressão que eu tenho é de que o futebol não mudou, mas a forma
como queremos interpretar o jogo brasileiro sem entendermos a cultura
do nosso país e as influências que dela decorrem.
Tomemos
o Carnaval como exemplo: imaginem um carnaval sem dança, sem todo
seu processo lúdico e, assim, limitando suas gestualidades
corporais, o que aconteceria de imediato? O público jamais teria a
capacidade de interagir com aquilo que está acontecendo porque
perderia a capacidade de sonhar em conquistar o mundo dançando.
A
mesma coisa é o futebol brasileiro: o jogador precisa ter espaço
para desfilar suas gestualidades para que não só ele, mas também o
público sinta prazer em estar participando. Sem isso, o jogador
perde a sua força e seu talento, desconexo com o público e
abandonado dentro de si.
É
o drible do jogador brasileiro que resulta na sua interação com o
torcedor. É a despretensão do jogador que desperta a aproximação
com as suas origens e o faz renascer de uma vida outrora
desconhecida.
Em
suma, cada jogador é um garoto impedido de driblar porque a
competitividade e a vontade de apenas passar a bola para ganhar,
respeitando a mãe-tática, é tão mais forte quanto a nossa
vergonha por termos uma cultura.
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Alessandro
Caldeira é jornalista, santista e nas horas vagas prefere
postergar qualquer um desses títulos para se dedicar à literatura,
música e cinema.
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Taciana
Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club
do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e
literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do
abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.