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Por Adriane Garcia___


Por Taciana Oliveira__

por Adriane Garcia__


por Adriano B. Espíndola Santos__


por Adriane Garcia__

por João Gomes__



por Adriane Garcia___


Por Adriane Garcia__

Segundo Paul Ricoeura imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve.” Há um “pequeno milagre”, como chama Ricoeur, no reconhecimento de algo que, não estando mais lá, é reconhecido como tendo estado.
O livro Fabulário (ed. Confraria do Vento), de Ana Santos, divide-se em três partes: Museu mínimo, Microcosmo e Fabulário. As três partes dialogam entre si, dando unidade ao livro. Seu centro é a memória como motor para a narrativa. Já em Museu mínimo fica clara a composição a partir do memorial que a poeta traz, um museu da infância – esse lugar privilegiado da memória; pois a infância se aproxima dos contos de fada para o bem e para o mal naquilo que traz de tragédia e mágica.
É pela memória que Ana Santos cria as imagens de Fabulário, buscando um elo entre passado e presente. A forma encontra o tema, já que as fábulas e os contos de fada trazem um arcabouço da memória coletiva. Se a lembrança da poeta é uma experiência individual, ao transformar essa lembrança em poesia ela seleciona aquilo que pode dialogar com o outro, na sua também experiência individual; experiências únicas, mas que se encontrando podem se reconhecer, traduzindo valores, sentimentos e sensações universais. No poema Retrato de família, por exemplo, a poeta escreve como quem pinta. O poema é uma verdadeira composição e o leitor, ao ver o retrato, pensa nos próprios retratos de família que poderia pintar. Para além das descrições, na sexta estrofe, há um susto comum a todas as pessoas – é a constatação da finitude, da perda:
(Se alguém escavasse
o quintal da infância, acharia ossos
de aves e cães, uns brinquedos
terrosos, o corpo desfeito
de um fantoche antigo.)

Para além da beleza, versos exatos, Ana Santos trabalha com uma variação criativa de poemas, tanto de elementos quanto de forma. Sua memória, a princípio pessoal, é também memória crítica, cultural, coletiva. Ao contrário do que poderia facilmente acontecer com um livro cuja matéria prima é a lembrança (ser apenas solitário), Fabulário é solidário, e lança o olhar que da imagem interior vai ao outro. No poema Curtas, as fábulas atualizam, como rápidas cenas cinematográficas, a dor da maternidade confrontada com a morte: Maria canta/ e embala/ o corpo quente. Do seu menino. // O corpo esfria: // Maria / canta mais alto.”
Em Fabulário, encontramos seres e objetos comuns ao imaginário geral. Ana Santos os reorganiza de maneira a dar sentido para os fragmentos, afinal, não é possível acessar o passado completamente tal qual tenha sido. A memória, sendo seletiva, está sempre sob suspeita, e mesmo com aqueles que partilhamos as mesmas histórias, há divergências na narrativa. É que a experiência é única e intransferível e está subordinada ao tempo e às perspectivas de cada um. Ainda que o caráter individual da lembrança seja inegável, também é inegável que a memória se constrói em teia de relações sociais. Fabulário traz histórias reais que perambularam pelo mundo, fábulas que se parecem com o comum dos dias, mas que a poesia eleva ao status de símbolo e metáfora. Alguns poemas falarão da experiência pessoal da poeta, outros daquilo que ela viu, ouviu, pois a própria pessoa é também uma composição de memórias. Há um temor por perder aquilo que nos constitui primordialmente, o risco do apagamento que a todo tempo nos lembra a morte. Thomas Wolfe, em O menino perdido, escreveu uma frase que vem a calhar: “Tudo se perde a tal ponto que parece nunca ter acontecido... a ponto de ser algo com que sonhamos em algum lugar”. Ana Santos sabe e confessa: “Receio perder a memória. Escrevo por precaução.”

HIBERNAÇÃO

A tia-avó antiquíssima
fez a brusca
revelação:

não era eu
o menino da foto,
tesouro único
da infância.

Era Artur,
o primo achado, uma noite,
calçando patins solares,
na fenda de um lago
congelado.
Os mesmos olhos
grandes e claros.

Não há provas
da criança que fui –
e bem posso
ter sido a outra.

Quem sabe ainda
estou dormindo
naquela floresta azul?

É verão em Varsóvia.
O lago líquido
Guarda meus olhos,
os olhos
do primo Artur.

ORAÇÃO

Meu Deus,
que exista algo
além do vácuo
adivinhado.
Afinal, tudo que amei
será cinza, será pó, será
nada?

Estou no exílio,
em minha tenda
de carne e ossos.
Corto o cabelo,
uso esta máscara
triste:
assim me conhecem.
Guardo as verdades
em relicário –
o que conto são lendas
assombrosas.

Vindo
de onde vim, percorri
obscuros caminhos.
Minha pátria
não tem nome,
meu mapa
é uma flecha em voo.
Eu temo a hora
e a forma
do retorno.

Para que nos matura
o trabalho do tempo?
Para que nos degrada?
Por que esta alegria
gasta em vão?

Que a vida
resista à vida,
polén disperso
na brisa.
Que haja sentido
em nossa
ilusão dividida.
Amém.

TELEGRAMAS
I
FUGI DE TREM ARRANHA-CÉUS COCA E PASTEL FELIZ DEMAIS ADEUS.
BRAÇOS ABERTOS FEIJÃO NO FGO ROSÁRIO E VELA AMÉM.

II
CASA INUNDADA PLEURA INFLAMADA SÓ PÃO MOFADO QUE DEUS ME AJUDE.
VOU PARAR CHUVA VOU PLANTAR TRIGO LEVAR QUEM SABE EXTREMA-UNÇÃO.

III
MARIPOSA MORRE LANTERNA CHINESA SAUDADE QUERO MORRER TAMBÉM.
NA VITROLA TE RECUERDO AMANDA AINDA VIVO NÃO SOU MANUEL.

IV
LIÇÕES TERRÍVEIS SINTAXE ÁLGEBRA NOITE ANO NOVO ESTAREI AÍ.
SORTE NAS PROVAS CHAMPANHA FOGOS MANDINGAS MIL.

V
ESTOU EM HYDRA TOCANDO LIRA ENQUANTO ISSO VOCÊ NO INFERNO.
NÃO SE PREOCUPE CARNE QUEIMADA MAS AH QUE BÁLSAMO NO PEITO.


***
Fabulário
Ana Santos
Poesia
Confraria do Vento
2019

Você também pode acessar essa resenha: OS LIVROS QUE EU LI
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Ana Santos nasceu em 1984, em Porto Alegre. É mestra e doutoranda em Estudos de Literatura pela UFRGS. Em 2008, foi contemplada com a Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Artística para escrever O que faltava ao peixe (Libretos), livro de contos publicado em 2011 com edição financiada pelo Fumproarte. Em 2017, estreou na poesia com a coletânea Móbile (Patuá), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2018. Com Fabulário (Confraria do Vento, 2019), venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2017, na categoria Poesia.
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Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018).











por Adriane Garcia___


por Adrianne Garcia__


por Tadeu Sarmento__



por Adriane Garcia__


por Rebeca Gadelha__


por Adriane Garcia__

Por Adriane Garcia___





por Tadeu Sarmento__



Se em “Os ratos roeram o azul” – belíssimo e imagético título do livro de estreia de César Gilcevi – o poeta traz à tona a imagem angustiante e indignada de um artista pobre e pardo na periferia de Belo Horizonte; em “Retrato do poeta quando devedor de aluguel” (seu trabalho mais recente, lançado pela Editora Letramento), essa periferia é ampliada até abarcar todo um país injusto como centro e, a comunidade de marginalizados iguais ao artista, como algo maior, bem mais perigoso (listados no poema “noturno ponto50”). Por conta disso, trata-se de um livro de extrema virulência política, repleto de referências bíblicas que convivem com pinceladas da música e da cultura pop e erudita, além das religiões de matriz africana.
E o retrato do poeta devendo aluguel é apenas um dos diversos retratos dessa odisseia cheia de buracos, na qual os poemas funcionam como percursos narrativos cujos “heróis” desejam subverter as injustiças sociais. Há também o “retrato do poeta pardo tentando escapar do navio negreiro”; ou o “retrato do poeta usando anúncios de empregos para limpar a bunda”, ou ainda “o retrato do poeta na rodoviária de Itabira”. Em cada um destes, percebe-se a tentativa de Gilcevi em denunciar toda a realidade através da fúria e da imaginação, antes que o Moloque burguês, representante das forças que sempre estiveram no poder, consiga destruí-lo. Ou cooptá-lo.
É para evitar a capitulação que o autor retorna para beber na fonte de sua ancestralidade (“gênesis; cap. I”) ou de seu passado, onde “a rua da infância continua no mesmo lugar”. Sua escrita vigorosa denuncia o pesadelo de uma normalidade excludente em cada esquina e, para tanto, costura frases certeiras (“sob a caixa torácica \ o cofre alarmado”) com visões noturnas, além de descidas ao inferno a mando de Deus. Isso sem falar no humor. Por exemplo, em um poema de César Gilcevi, a “Comala” de Juan Rulfo se transforma em uma biqueira para a qual os filhos se dirigem atrás do fantasma do pai.
A poesia de Gilcevi se coloca contra os valores de uma sociedade que não representa os pobres, utilizando-se das mais diversas imagens do sincretismo religioso, e assumindo totalmente a condição de poeta periférico decidido a denunciar que, na mesma semana em que “Ana foi embora”, os “fascistas tomaram o poder”. E é em consequência da percepção das situações críticas da interdição da cidadania em nosso país que a interlocução do poeta com a violência do mundo real se dá.
No que se refere à forma, não se trata apenas de ler Gilcevi em função de suas pontes de estilo (e de temática) com autores como Roberto Piva, Drummond e Allen Ginsberg, mas de pensá-lo, principalmente, a partir de sua filiação a um tipo de lirismo moderno, de espectro baudelairiano, que compreende seu vínculo com o pensamento politicamente performático, relacionando-o com as camadas sociais marginalizadas. É a partir dessa chave que é possível compreender o “Retrato do poeta quando devedor de aluguel” como um manifesto político sobre o nosso tempo (“um monumento à justiça brasileira / erigido com 450 kilos de cocaína”), lendo seus poemas como pontiagudos objetos político-culturais, positivamente a serviço de certas ideias transgressoras que contribuem para a subversão de determinados discursos que naturalizam a exclusão da sociedade.
Ao agir sobre a consciência humana, acendendo seus alertas, a palavra do poeta pode despertar a indignação que nos levaria à luta por condições mais justas, por realidades mais humanas e mais justas, nas quais exerceríamos o direito à liberdade de viver, e não apenas de sobreviver? Não sabemos. O que se sabe é que a poesia sempre terá algo a revelar, ainda que seja só o mundo real, bem diante dos nossos olhos. O caos da pobreza, a certeza de que “a poesia nunca salvou ninguém” e o abandono social que o poeta descreve, tornam o trabalho com a escrita a representação certeira dos modos de sobrevivência em um país violento com os que não têm nada nem ninguém por eles. A solução? Ler os poemas de César Gilcevi. Ou “ir a Brasília matar o presidente”, como deseja o “José” do poema “2016”. 

Retrato do poeta quando devedor de aluguel 
César Gilcevi 
124 páginas  
Editora Letramento 
34 reais

César Gilcevi publicou o livro/cd Os ratos roeram o azul pela Editora Letramento, em 2016. Vocalista da banda Cadelas Magnéticas, lançou o EP Encruzilhada (2017), disponível nas plataformas digitais. Retrato do poeta quando devedor do aluguel é uma publicação da Editora Letramento, 2019.



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Tadeu Sarmento é autor dos livros breves fraturas portáteis (Fina-Flor Editora2005) e Paisagem com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (Cepe Editora, 2016) e O Cometa é Um Sol que não deu certo (Edições SM, 2019)



por Adrianne Garcia__



por Tadeu Sarmento__



por Adriane Garcia__



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