por Taciana Oliveira__
Na pré-adolescência a minha solidão era reflexo da total falta de empatia com o núcleo familiar que foi me imposto. Durante alguns longos anos não morei com minha verdadeira família. Consequência de um processo traumático que culminou com o desquite dos meus pais. Para preencher esse vazio passei a devorar intempestivamente os livros da estante da minha tia, ou os muitos que chegavam pela mãos dos meus irmãos. Posteriormente me apaixonei por música popular. Virei uma fiel ouvinte de programas de rádio, colecionadora de publicações musicais e consequentemente adoradora de vinis.
Ainda hoje vou-me embora pra Candeias
Ainda hoje meu amor eu vou voltar
Da terra nova nem saudade vou levando
Pelo contrário, pouca história pra contar
Candeias, Edu Lobo
Candeias, Edu Lobo
No comecinho da década de 1980, meu pai adquiriu um apartamento no bairro de Candeias, próximo às praias de Piedade e Barra de Jangada. Esse imóvel virou quase que uma “casa de veraneio” frequentada por parentes e amigos. Depois de um longo hiato nossos encontros tornaram-se quase que regulares nos finais de semana. Mas ainda assim sempre persistia um silêncio, uma distância incômoda, consequência infeliz da nossa separação. Foi em Candeias que perdi as contas de quantas vezes ouvi a voz de Gal Costa nos corredores do Edifício Ramalho Ortigão. Seu Euclides adorava ouvir a cantora baiana entoar os versos do compositor Lupicínio Rodrigue: Volta!/ Vem viver outra vez ao meu lado...
O álbum em questão era uma coletânea de grandes sucessos, e vinha com as gravações originais de Baby, London London, Não identificado e Divino Maravilhoso. Escutar aquele vinil, naquele instante, era um sopro de esperança, um presságio do que estava ainda por vir.
Atenção ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção para a estrofe e pro refrão
Pro palavrão, para a palavra de ordem
Atenção para o samba exaltação
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção para as janelas no alto
Atenção ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção para o sangue sobre o chão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Divino Maravilhoso, Caetano Veloso
Li mais livros e escutei bem mais canções do que falei com meu próprio pai. Nossa esparsa convivência nesse mundo foi permeada por desencontros. Euclides era uma figura folclórica, mas era respeitado por seus clientes, amigos e funcionários. Um torcedor fanático do Sport, um folião incansável, boêmio e frequentador do histórico Bar Savoy. Meus dois irmãos herdaram comportamentos e hábitos semelhantes ao dele. É através deles que me reconecto a algumas lembranças e ao principal legado do Seu Euclides: a honestidade. Não há um final de conto de fadas nessa narrativa. Há erros e acertos. Algumas atitudes poderiam ter sido evitadas, outras careciam de uma maior atenção. Quando recordo do homem que foi meu pai, desenho sequências de um filme por vezes melancólico, mas extremamente coerente para o que aconteceu dentro das suas limitações. De vez em quando ainda sinto o cheiro doce e perfumado do fumo irlandês que ele guardava no bolso da camisa de linho. São fragmentos da infância, polaroides da adolescência, registros de discussões inúteis de pessoas que se amavam tanto e não sabiam verbalizar o óbvio. Enquanto me preparava para escrever esse texto coloquei na radiola o álbum lançado por Gal Costa, em 1969. Comprei essa raridade de um rapaz, que comercializava vinis antigos na calçada onde antes funcionava o Savoy. Coincidência? Não sei. Deixemos a baiana cantar!
Você precisa saber da piscina
Da margarina, da Carolina, da gasolina
Você precisa saber de mim
Baby, baby, eu sei que é assim
Baby, baby, eu sei que é assim
Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto
Baby, baby, há quanto tempo
Baby, baby, há quanto tempo
Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais
Não sei comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul, da América do Sul
Você precisa, você precisa, você precisa
Não sei, leia na minha camisa
Baby, baby, I love you
Baby, baby, I love you
Baby, Caetano Veloso
*Para Euclides de Oliveira Melo, meu pai.
Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.
por Tadeu Sarmento__
Se
em “Os ratos roeram o azul” – belíssimo e imagético
título do livro de estreia de César Gilcevi – o poeta traz à
tona a imagem angustiante e indignada de um artista pobre e pardo na
periferia de Belo Horizonte; em “Retrato do poeta quando devedor
de aluguel” (seu trabalho mais recente, lançado pela Editora
Letramento), essa periferia é ampliada até abarcar todo um país
injusto como centro e, a comunidade de marginalizados iguais ao
artista, como algo maior, bem mais perigoso (listados no poema
“noturno ponto50”). Por conta disso, trata-se de um livro de
extrema virulência política, repleto de referências bíblicas que
convivem com pinceladas da música e da cultura pop e erudita, além
das religiões de matriz africana.
E
o retrato do poeta devendo aluguel é apenas um dos diversos retratos
dessa odisseia cheia de buracos, na qual os poemas funcionam como
percursos narrativos cujos “heróis” desejam subverter as
injustiças sociais. Há também o “retrato do poeta pardo tentando
escapar do navio negreiro”; ou o “retrato do poeta usando
anúncios de empregos para limpar a bunda”, ou ainda “o retrato
do poeta na rodoviária de Itabira”. Em cada um destes, percebe-se
a tentativa de Gilcevi em denunciar toda a realidade através da
fúria e da imaginação, antes que o Moloque burguês, representante
das forças que sempre estiveram no poder, consiga destruí-lo. Ou
cooptá-lo.
É
para evitar a capitulação que o autor retorna para beber na fonte
de sua ancestralidade (“gênesis; cap. I”) ou de seu passado,
onde “a rua da infância continua no mesmo lugar”. Sua escrita
vigorosa denuncia o pesadelo de uma normalidade excludente em cada
esquina e, para tanto, costura frases certeiras (“sob a caixa
torácica \ o cofre alarmado”) com visões noturnas, além de
descidas ao inferno a mando de Deus. Isso sem falar no humor. Por
exemplo, em um poema de César Gilcevi, a “Comala” de Juan Rulfo
se transforma em uma biqueira para a qual os filhos se dirigem atrás
do fantasma do pai.
A
poesia de Gilcevi se coloca contra os valores de uma sociedade que
não representa os pobres, utilizando-se das mais diversas imagens do
sincretismo religioso, e assumindo totalmente a condição de poeta
periférico decidido a denunciar que, na mesma semana em que “Ana
foi embora”, os “fascistas tomaram o poder”. E é em
consequência da percepção das situações críticas da interdição
da cidadania em nosso país que a interlocução do poeta com a
violência do mundo real se dá.
No
que se refere à forma, não se trata apenas de ler Gilcevi em função
de suas pontes de estilo (e de temática) com autores como Roberto
Piva, Drummond e Allen Ginsberg, mas de pensá-lo, principalmente, a
partir de sua filiação a um tipo de lirismo moderno, de espectro
baudelairiano, que compreende seu vínculo com o pensamento
politicamente performático, relacionando-o com as camadas sociais
marginalizadas. É a partir dessa chave que é possível compreender
o “Retrato do poeta quando devedor de aluguel” como um
manifesto político sobre o nosso tempo (“um monumento à justiça
brasileira / erigido com 450 kilos de cocaína”), lendo seus poemas
como pontiagudos objetos político-culturais, positivamente a serviço
de certas ideias transgressoras que contribuem para a subversão de
determinados discursos que naturalizam a exclusão da sociedade.
Ao
agir sobre a consciência humana, acendendo seus alertas, a palavra
do poeta pode despertar a indignação que nos levaria à luta por
condições mais justas, por realidades mais humanas e mais justas,
nas quais exerceríamos o direito à liberdade de viver, e não
apenas de sobreviver? Não sabemos. O que se sabe é que a poesia
sempre terá algo a revelar, ainda que seja só o mundo real, bem
diante dos nossos olhos. O caos da pobreza, a certeza de que “a
poesia nunca salvou ninguém” e o abandono social que o poeta
descreve, tornam o trabalho com a escrita a representação certeira
dos modos de sobrevivência em um país violento com os que não têm
nada nem ninguém por eles. A solução? Ler os poemas de César
Gilcevi. Ou “ir a Brasília matar o presidente”, como deseja o
“José” do poema “2016”.
Retrato
do poeta quando devedor de aluguel
César
Gilcevi
124
páginas
Editora
Letramento
34
reais
César
Gilcevi publicou o livro/cd Os ratos roeram o azul pela
Editora Letramento, em 2016. Vocalista da banda Cadelas
Magnéticas, lançou o EP Encruzilhada (2017), disponível nas
plataformas digitais. Retrato do poeta quando devedor do aluguel é
uma publicação da Editora Letramento, 2019.
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Tadeu
Sarmento é autor dos livros breves fraturas portáteis
(Fina-Flor Editora, 2005) e Paisagem com ideias fixas
(Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias
anônimos (Cepe Editora, 2016) e O Cometa é Um Sol que
não deu certo (Edições SM, 2019)
por Taciana Oliveira__
Na
seção Fotogramas desse mês apresentamos alguns dos registros que
compõem a exposição A Luta Yanomami, de Claudia Andujar. A
fotógrafa é celebrada com uma retrospectiva do seu trabalho na
Fundação Cartier, Paris. Claudia Andujar, La Lutte Yanomami
estreou no dia 30 de janeiro e vai até 10 de maio. Depois, segue para
Suíça, Itália e Espanha (fevereiro de 2021). A exposição conta
com o apoio do Instituto Socioambiental, Instituto Moreira Salles e
a Hutukara Associação Yanomami.
“Estou
ligada ao índio, à terra, à luta fprimária. Tudo isso me comove
profundamente. Tudo parece essencial. Talvez sempre procurei a
resposta à razão da vida nessa essencialidade. E fui levada para
lá, na mata amazônica, por isso. Foi instintivo. À procura de me
encontrar”
Claudia
Andujar, em texto publicado no catálogo da sua mostra.
por Taciana Oliveira_
No ano de 2015, a fotógrafa Kamila Ataíde foi a cidade de Custódia, no Sertão de
Pernambuco. Um amigo a tinha convidado para criar um ensaio fotográfico que apresentasse o ambiente solitário onde vivia sua avó. Todas as fotografias foram captadas e editadas com celular. O Mirada escolheu algumas imagens desse ensaio para ilustrar a seção Fotogramas desse
mês.
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Foto: Kamila Ataíde |
por Kamila Ataíde__
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Andrei Tarkovscki é um gatilho, um convite à memória. Foram às minhas lembranças mais caras da infância a que fui atirada. Quando recebi o impulso de escrever sobre ele, pensei que das tantas coisas as quais eu o atribuo, a que eu poderia falar com mais propriedade e, aliás, a mais presente quando lembro das suas obras, é o impacto emocional e afetivo ao qual ele me lança sobre minha própria vida, mais especificamente, sobre a minha infância. Fui rememorando cada um de seus filmes e noto que há sempre uma sensação de nostalgia em mim impactada pelas representações intensas e pungentes de cada momento em que ele projeta um traço de memória. Particularmente, as minhas lembranças mais ternas da infância se desenham na minha mente exatamente com determinadas características de cores e texturas de algumas das suas películas. Isso não só acontece com memórias reais, mas com alguns dos meus sonhos mais significativos.
Tarkovscki trouxe uma verdade onírica e humana às narrativas, que através das características visuais e linguagem fotográfica escolhida por ele me atira sobre cenas calorosas dos 5 ou 6 anos de idade, como também aos sonhos mais conflitantes. A rua da minha casa às 7 horas da manhã, as tardes chuvosas e à meia luz, assistindo TV na companhia da minha avó sentada na cadeira de balanço - fui levada a essa memória ao assistir Nostalgia (1983) e me deparar com a cena do quarto de hotel, onde o personagem Gorchakov está deitado na cama e a iluminação vai se modificando aos poucos no quarto, os cachorros que tive, a tarde em um sítio de algum parente, em algum lugar do mundo, as correrias de fim de semana no meio da rua.
Revisitando alguns trechos do filme O Espelho (1975) para escrever esse texto, fui arrebatada por memórias inéditas de algum lugar no espaço-tempo da minha infância. Apenas alguns flashes de um campo arborizado, pessoas muito altas por perto e uma luz de fim de tarde. Andrei ainda dota desse poder. A cada vez em que paro para revisitar alguns de seus filmes, eles extraem de mim alguma cena esquecida e guardada no fundo da memória.
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O Espelho (Andrei Tarkovski, 1975)
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Nesse mesmo filme, O Espelho (1975), Tarkovscki traz uma leitura da própria vida através do paralelo entre passado e presente e sugere - através de algumas características do filme como a utilização dos mesmos atores para personagens diferentes – a percepção de como algumas vidas são reflexos de outras, como uma reprodução hereditária de comportamentos. Isso me faz pensar sobre como vi e ainda vejo algumas histórias da minha família se repetirem com o passar das décadas. Cada uma das películas me convidou, em determinado momento, a viajar no tempo até algum instante considerado importante para a cabeça de uma criança entre os 4 e os 10 anos. E cada uma dessas películas também me convidou à refletir como os elementos de uma linguagem fotográfica, seus aspectos técnicos, dramáticos, suas composições, a iluminação, a música, o silêncio em momentos cruciais, são capazes de inspirar e encaminhar o espectador a regiões tão pessoais da própria vida e, por mais destoante que possa ser a realidade da personagem com a do espectador, ainda assim, gerar algum segundo de identificação e viagem no tempo. Tarkovscki é realmente um convite à memória, a dele e a nossa, da forma mais sensível e humana que se pode fazer.
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Andrei Tarkovski nasceu em 1932, na extinta União Soviética. Filho de uma atriz e de um poeta, foi criado pela mãe (seu pai abandonou a família quando Tarkovski tinha cinco anos). Formado em geologia, mas apaixonado pela sétima arte, cursou a Escola Soviética de Cinema (VGIK). Dirigiu A Infância de Ivan (1962), Andrei Rublev (1966) Solaris (1972) e Stalker (1979), Nostalgia (1983), O Sacrificio (1986) entre outros títulos. É considerado um dos maiores cineastas do século 20 e talvez seja apenas superado, em grau de importância no cinema russo, por Sergei Eisenstein.
Faleceu em 1986 em consequência de um câncer no pulmão.
Faleceu em 1986 em consequência de um câncer no pulmão.
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