por Taciana Oliveira__




O que a gente mais precisa é aprender a se levantar desse lamaçal que invadiu casas, ruas, escolas e instituições. Ele tomou conta de templos, batizou o judiciário, abençoou o legislativo, executivo, excluiu o juramento de ética da grande imprensa. Essa lama toda faz pouco caso dos direitos humanos, aplaude políticas excludentes, favorece uma hipocrisia cínica que elege imbecis. E são essas mesmas pessoas que querem definir a sua vida, o seu direito de ser. Desmerecem a história, sua condição sanitária, a garantia de segurança, sua identidade sexual. Eles vandalizam ecossistemas, apoiados em uma moral cristã que Cristo rejeitaria. É urgente tirar essa sujeira de cada cômodo, avenida, hospital e aldeias... A nossa apatia também responde por esses corpos enterrados na lama.

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Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.

por Taciana Oliveira__








Hoje acontece o lançamento de Quintais do Cariri – pequeno registro do brincar, de Letícia Graciano Nunes (Aliás Editora, 2018). Tive oportunidade de conversar com a autora nesses últimos dias. A partir dessas conversas produzimos duas peças audiovisuais para divulgação da obra. Quintais do Cariri – pequeno registro do brincar é um livro para educadores, crianças e adultos. É uma pesquisa alimentada pelo resgate oral, pela memória e por afetos. Abaixo segue o texto de divulgação do Aliás, coletivo do qual tenho a alegria de ser uma das participantes, e os vídeos produzidos para o lançamento do livro.

Quintais do Cariri – pequeno registro do brincar

Ao fechar os olhos lembrando de sua infância, que momentos felizes te percorrem na pele? Que cantigas você ouve? Que brinquedos e utensílios esquisitos hoje não há mais entre nós, que essa nova geração não domina?! Bila, raia, cirandas, elástico, carniça, pega-pega, bandeirinha, pistas de carrinho na areia, xibiu, quintais e quintais plenos de alegria!
Quem registrou as brincadeiras das nossas crianças no território do Cariri Cearense, foi a Letícia Graciano Nunes, mãe de Cora e campeã de voos altos em balançadores de árvores. Uma sábia escutadora de histórias que andou pelo Crato, Juazeiro do Norte e Potengi fotografando e conversando com pessoas adultas e crianças que – oxalá! – continuam a exercer seus papeis do bem brincar pelo mundo afora! Quintais do Cariri – pequeno registro do brincar  traz desenhos feitos em lápis de cor, giz de cera, explicações de como se brinca e até partituras para se cantar/tocar as canções que outrora embalavam as brincadeiras.
Letícia Graciano Nunes

Um registro dos dias de ventos a transpassar os cabelos, de suor escorrendo pela testa, de pé no chão dos terreiros e aquela sensação maravilhosa de andar de bicicleta sem as mãos! O livro é um convite às percepções, sem forçar a nostalgia, pois ainda há muito o que se brincar pelo espaços e quintais!
O livro foi agraciado com edital Mais Infância, apoiado pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, Lei 13.811, de 16 de agosto de 2006, que permitiu sua materialização.
Pensado em parceria com a Aliás Editora, editora independente que publica e projeta ações de mulheres, sejam elas cis ou trans, pelo mundo. Parida em setembro de 2017, a Aliás Editora possui diversos títulos no mundo, entre publicações físicas e virtuais, exposições, formações e o enorme desejo de seguir caminhando rumo àquele lugar no mundo aonde as mulheres sejam escutadas/lidas/pensadas.
SERVIÇO



Quintais do Cariri – pequeno registro do brincar
Autora: Letícia Graciano Nunes
Ano de Publicação: 2018
Editora: Aliás Editora
Nº páginas: 38







                                                             


                                                                  ----

Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.

por Taciana Oliveira___

Arquivo de Talles Azigon
Lembro daquele novembro de 2012: Juazeiro, Crato, um céu que brilhava em outra intensidade. Lembro do All Star cor de laranja, do almoço no Guanabara, das conversas sobre Camus, Cassiano Ricardo, do carnaval de Recife e Olinda , do mar de Iracema e do sorriso de Talles Azigon. Depois de alguns anos retomamos o nosso papo. O rapaz que eu conheci no sol do Cariri conquistou um punhado de sonhos.
Quando nos conhecemos em 2012, no Crato, você caminhava para os primeiros passos da criação de uma editora independente. Alguns meses depois, na companhia de amigos, nasce a Editora Substânsia, responsável pela promoção de novos nomes da literatura e de renovar a cena literária independente do teu Estado. Conta dessa tua trajetória como editor e de como funcionava a curadoria para as publicações da editora.
A Substânsia, que vai completar cinco anos de existência, é uma editora independente, que nasceu em Fortaleza, da vontade de três pessoas, eu, Madjer Pontes e Nathan Magalhães, de ver boas e bons escritoras e escritores que até então não conseguia ter sua obra impressa em livros, publicados em edições bem acabadas, bem editadas. Foram mais de 35 livros publicados, livros de poemas, romances, ensaios, crônicas, contos, traduções... um catálogo que não faz feio perto de uma grande editora. Os nomes e os títulos publicados, alguns recebemos por email, alguns já conhecíamos e desejamos publicar. A publicação geralmente é coparticipada, sendo que também arriscávamos investindo em projetos especiais, como a coleção mormaço e a edição bilíngue de Electra, traduzido pelo Professor Orlando Araújo.
Tua história como poeta vai além da publicação dos teus livros. Você sempre teve, mesmo que indiretamente, uma preocupação em evidenciar o papel do artista na construção de um pensamento crítico. Agora com a criação da Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária, você aposta na formação de crianças e adultos da tua comunidade. Como surgiu a ideia de transformar tua casa em uma biblioteca comunitária?

Eu nunca acreditei em arte pela arte, sempre acreditei em arte pelo outro, logo, pela vida. Tive no meu trajeto um sem número de pessoas, bibliotecárias, poetas, musicistas, educadores, que facilitaram a construção do meu pensamento, que foram minhas interlocutoras, minha universidade. Desde pequenino, quando comecei a gestar em mim a maravilha da leitura, juntar livros que eu conseguia, comprava, ou garimpava das casa de amigos que não fazia muita questão deles e eu os pedia pra mim, na prateleira da sala da minha vó, fingindo ser uma biblioteca, era um dos meus passatempos prediletos. Quando conheci uma moça chamada Anitta Moura, criadora de um movimento chamado Livro Livre, que compartilhava livros em espaços públicos e criava pontos de compartilhamento de livros, eu pensei, essa é a hora, vamos lá. Fiz a biblioteca, que já eu certo antes mesmo de existir, não poderia ser diferente, os livros pautam minha vida. 
Arquivo de Talles Azigon
Tua produção poética transcende as fronteiras cearenses, não apenas por ser uma narrativa atemporal, mas por proporcionar ao leitor uma identificação genuína, sem medo de contrapor a realidade careta e covarde que tanto combatemos. Fã confesso de Bandeira e Cacaso, tua poesia transborda o direito pleno de existir/resistir: Meu coração não é covarde/mesmo amando dois/nunca amará pela metade. Como e quando nasce a poesia em Talles Azigon?
A poesia está guardada nas palavras, é tudo que eu sei, também sou fã do Manoel de Barros, da Cora Coralina, da Conceição Evaristo, da Carolina de Jesus, da Cecília Meireles, do Francisco Carvalho, do Mário Gomes, da Clarice Lispector, da Adélia Prado, sem falar de todas as escritoras e escritores que editei, e que não cito, pois seria injusto, já que não dá pra listar todo mundo. É bem difícil afirmar com convicção como nasce a poesia, pois é tão múltiplo, pode ser de uma gozada, ou dá vontade de dar uma gozada, da raiva, da contemplação, do tédio, do deslumbramento. Eu acho que vivo em estado de poesia, não que isso seja um dom, ou uma dádiva, acho que isso foi uma escolha de vida, por isso me alimento de palavras a todo momento, amo falar, amo escutar histórias, amo conversar. Minha casa tá aberta vinte e quatro horas para quem quiser debater qualquer assunto. Nunca fui uma pessoa silenciosa, tanto que um dia escrevi pensado em Orides se toda palavra é crueldade, todo silencia também o é.
No momento em que o país atravessa um imenso descaso as causas humanitárias, e grupos alimentam o discurso de ódio as minorias, recordo do seu resgate a obra de Maria Carolina de Jesus, tua luta incessante em valorizar uma política de igualdade em todos os setores. Dentro desse contexto nos presenteia com uma lista de dez títulos imprescindíveis para a formação de um leitor.
Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus
Estrela da Vida Inteira, Manuel Bandeira 
A faca no Peito, Adélia Prado 
A hora da Estrela, Clarice Lispector  
A casa, Natércia Campos 
A importância do Ato de Ler, Paulo Freire 
Cinco Semanas Em Um Balão, Júlio Verne 
Os Pestes, Road Dhal 
Menino do Mato, Manoel de Barros
Olhos D’água, Conceição Evaristo
Você acaba de lançar a segunda campanha colaborativa para o financiamento do *Saral#2. Conta como foi o lançamento da primeira publicação. Qual a importância de continuar a lançar novos nomes sem as amarras do mercado editorial?
O saral surgiu depois de eu ter lançado dois livros e editado outros 30, eu me toquei de que estava fazendo literatura ainda para poucos, mesmo a frente de uma editora independente. Então eu pensei em fazer um livro que cada uma/um pagasse de acordo com suas possibilidades financeiras. Acho que devemos propor sempre outras coisas, não se submeter ao que está estabelecido. Tanto que eu começo o saral afrontando afirmando vocês querendo ou não, isto é literatura.
           
Sobre o Saral: A campanha colaborativa para o Saral#2 vai até 20 de fevereiro. Colabora aqui: https://goo.gl/5AzqJh
                                                                                                             






     Videopoema O ópio do povo - Talles Azigon
     Direção Roteiro e Edição: Taciana Oliveira

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Talles Azigon é poeta, produtor cultural, editor, mediador de leitura, curador de eventos literários e contador de histórias. Foi um dos fundadores da Editora Substânsia, editora cearense independente com mais de 35 títulos publicados. Foi Secretário Geral do Conselho de Políticas Culturais de Fortaleza, representando no mesmo o segmento da Literatura, no biênio 2013/2014






                                                           




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Taciana Oliveira é cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.












por Taciana Oliveira___


Divulgação

Patrícia Naia é poeta, periférica, ativista e produtora do Slam das Minas PE. Conversamos um pouco sobre sua trajetória e os preparativos para as novas performances e batalhas poéticas em 2019.

1 - O Slam nasceu na década de 1980 nos guetos e periferias americanas. Poesia, hip hop e grafite construíram uma cena e ajudaram a produzir uma identidade de resistência e reconhecimento cultural nos Estados Unidos. No Brasil essa onda toma força em 2008 com uma série de eventos dedicados ao rap e a poesia. Em 2015 acontece o primeiro Slam em Brasília, e no ano seguinte em São Paulo. Você é uma das organizadoras do Slam das Minas em Recife. Conta como foi a ideia de trazer o evento pra a cena urbana recifense. Fala um pouco desse diálogo com o Slam das Minas de SP.

Eu e Amanda Timóteo já trabalhávamos com o Controverso Urbano, acompanhávamos o Slam Resistência, e o Slam das Minas SP por vídeos, materiais e etc... O Controverso Urbano é um coletivo que realiza saraus em praças e lugares públicos da cidade, daí, eu e Amanda ficamos empolgadas em trazer o Slam pra cá, ficamos confortáveis porque já tínhamos essa experiência, e achávamos muito importante ter um espaço para mulheres mostrarem suas produções literárias, compartilhar experiências… Então, em agosto de 2017 fizemos o primeiro evento.

2 - No Slam a poesia reverbera a autonomia do corpo feminino dentro do espaço urbano. As batalhas poéticas apresentam bem mais que um desafio de rimas. Elas conectam uma geração de mulheres que atuam para quebrar uma estrutura social de cerceamento aos seus direitos e a sua opção de ser. Podemos considerar que o evento por ter participação exclusiva de mulheres é também um espaço de “segurança“ para abordar pautas relativas a repressão sexual, preconceito racial e homofobia? 

Claro. Trazer o espaço pra cá, tem tudo a ver com isso. Com criar espaços seguros onde as mulheres se sintam a vontade, confortáveis e animadas em ver outras mulheres mostrando suas produções, suas performances literárias, seus trabalhos.
Além disso, é um espaço que gera visibilidade, trocas, identificações e com certeza se torna um espaço de reivindicações, de protesto através da poesia.

3 - Você é natural de São Paulo, radicada em Recife desde os 08 anos de idade. Sua trajetória é periférica. Vivemos em uma capital que registra altos índices de violência contra as mulheres. Violência essa que se manifesta também em agressões verbais e na repressão religiosa e sexual. Sua criação literária é fruto desse olhar sobre essa cidade e da sua condição de mulher negra e lésbica?

Sem dúvida. Sempre digo, que gosto muito de escrever sobre a cidade e todos os meus sentimentos em relação a ela, sejam os de medo, de alegria, de bem-estar, ou de protesto. O que escrevo hoje é fruto das minhas experiências vividas na favela, na zona norte de Recife, das minhas vivências enquanto professora, mulher negra dentro desse contexto urbano tão violentador. Hoje eu escrevo muito do que eu vivo, e também crio outras vidas através da poesia.

4 - O Punho fechado no fio da Navalha (Editora Castanha Mecânica, 2017) e o zine A Vida é delas são obras com sua assinatura. Sua poesia carrega visceralidade e potência aliadas a uma postura feminina de resistência. O poema é sua geografia. Vou pegar carona em um dos seus versos e te pergunto: O poema é o caminho do teu corpo?

Hoje a poesia é o caminho pelo qual eu me acesso, me conecto com minha ancestralidade, me conecto com histórias de representatividade, me renovo. Então, de todas as forças existe um caminho de mão dupla entre mim e as poesias que eu escrevo, e que eu leio.

5 – Agora em janeiro acontece mais uma edição do Slam das Minas. O que você espera para os próximos meses em um país alimentado pelo ódio as minorias? A literatura será bandeira, estandarte de combate a intolerância?

A poesia que é produzida no Slam tem uma característica forte de manifesto acho que esse ano essa vai ser uma bandeira importante de luta para quem trabalha no cenário literário.
Após o evento de janeiro, estamos preparando a edição de 2019 das batalhas, fazendo parcerias com escritoras de outros estados, projetos. Acredito que 2018 foi um ano muito importante para o Spam das Minas PE. Alcançamos coisas grandes, visitamos escolas, realizamos batalhas na cidade e fora dela, aprovamos editais, enfim. Para 2019 o desejo é dobrar essas realizações, estamos trabalhando duro, com afeto e resistência para isso.


 Fotografias de Bárbara Ellen

Fotografia: Bárbara Ellen
Fotografia: Bárbara Ellen
Fotografia: Bárbara Ellen
Fotografia: Bárbara Ellen



por Tânia Consuelo___

Francesca Woodman
Viver reprisando mais uma vez. 
Algo redundante. Estava cansada da cor estéril do esmalte. O cigarro dourando os dentes, enegrecendo os lábios. Diacho epidêmico. Agosto na vida. E quem escreveu essa obra. Quem foi que não recriou as histórias da vida? Melinda sempre a cozer e empanturrar. Comida encomendada pelo diabo. Olhava para o lado e um ramo de arruda para contrabalancear. A pequena que tanto sonhava? A minha querida olhando para onde não tinha gente. Era sempre assim e eu tentava imaginar o que passava. Não era às vezes que colocava os olhos para a parede. E eu parava e vagava meu pensamento a tal ponto que tudo ao redor perdia o foco, passava a me comunicar com o passado. Refazia uma a uma as questões ao me relacionar com o mundo. Muitas pessoas eu lembrava e de repente um gosto de sangue na boca. Fazia muitas costuras com sentimentos de mágoas e ponderava cada rancor. As intrigas iam se desfazendo na minha cabeça. Aquilo que vinha na minha mente, sentimentos que se interpunham a qualquer angústia. E meus impulsos que não pretendiam reconhecer certas ousadias. Não adiantava voltar atrás dos que vêem a vida por um ângulo tão arbitrário. Que se mentem o tempo todo. A ilusão que está sempre pronta a revidar e tolher-se depois de uma intriga. E pensava o quanto era interessante saltar de um ponto e ver a vida de fora. Qual um satélite para com a Terra. Por esta premissa, o desgosto não mais me abala. A angústia se desfaz. Não sou eu que tive ausências, pois exilar-se é também uma forma de dizer que em algum lugar existe o não-exílio. Para que ter medo da loucura? O reflexo de uma loucura está no profundo da alma. E quando me tenho raso eu simplesmente adoeço. Porque não dá mais para ver certas coisas quando se prefere a superfície para nunca temer o óbvio que é a vida. Então pretendes encarnar sempre do mesmo ponto para sentir somente uma parte do existir. A dor é o revés da tolice.


por João Gomes___

Recordo a primeira vez que tive acesso, por meio do YouTube, com o trabalho de Liniker. Ao primeiro contato senti medo daquele estilo tão potente, capaz de desestruturar o turbilhão de significados contidos em sua maneira suave e poética de dizer as coisas com uma sintonia estarrecedora. Fui inteiramente abduzido. Tudo ali, inclusive o grupo Os Caramelows, era dado em fatias no momento certo, e nada sobrava. Ora com um vozeirão no estilo Tim Maia, ora com uma voz suave, às vezes rouca e às vezes grave, suas canções, como sugere o título do seu primeiro disco, Remonta (2016) o amor e suas raízes. É realmente de se tombar, e tombar o preconceito.

Seu EP de estreia, Cru (2015), foi gravado ao vivo para imprimir a força do momento de natureza íntima, e realizado de forma colaborativa através da plataforma Catarse. Em uma semana, um dos vídeos gravados chegava a um milhão de visualizações, e uníssono e eternamente os internautas agradecem que a black music de seu estilo tenha adentrado na nova música brasileira, fazendo muitos se gostarem ainda mais, por meio de tanta identificação. Música de ou sem qualidade vicia, e quando possui autonomia e referências que transcendem, já viu aonde pode chegar. E tudo isso sem ambição, somente para empoderar sua existência, seu direito de estar e fazer o que bem desejar, embora carinhosamente já seja chamada de deusa pelos fãs.


Divulgação

Com formação cultural do samba ao soul, Liniker de Barros Ferreira Campos, ou simplesmente Liniker, cujo nome é uma homenagem ao futebolista inglês Gary Lineker, vem de uma família de músicos profissionais da cidade de Araraquara, interior de São Paulo. Performático em todos os sentidos, tendo primeiro estudado teatro na Escola Livre de Teatro de Santo André na adolescência com o desejo de desenvolver seu visual não-binário, inicialmente se apresentava com uma mistura de turbante, saia, argolas, batom e bigode. Mas sabemos que Liniker é muito mais que isso, e não alguém que deseja apenas chocar. Em entrevista ao EL PAÍS, questiona: “Por que colocar uma calça jeans e uma camiseta e mostrar meu trabalho só com a voz? Meu corpo é um corpo político.”

Mesmo muito jovem (nascido, pasmem, em 1995), através de suas referências sentimos o quanto é orgânico e clássico o seu trabalho, tendo uma força capaz de se inserir em qualquer público liberto. Tássia Reis, Tulipa Ruiz, Clube do Balanço, da música brasileira atual, Nina Simone, Etta James, Beyoncé, Mariah Carey, Caetano, Gil, Gal e Cartola são as referências e o que ouve Liniker. Com o apoio do público internauta, seu começo viralizou e fez sua carreira virar da noite para o dia. Mas nada veio pronto, suas composições vêm desde os 16 anos, cartas que não tinha coragem de enviar aos garotos que desejava ter algo, quando agora nos embala os corações como salvação da nossa música nacional. Tamanha a força, sente-se que veio para permanecer.

Para que o público idolatre um artista, nem sempre seu trabalho precisa ser consistente. Chocar, ou simplesmente lacrar, tombar, também qualquer um pode ter esse desejo maior e vir a realizá-lo, esquecendo outros requisitos, ou não tendo como interferir nisso, por mais que faça parcerias para alavancar mais ainda o efêmero sucesso na mídia. Liniker começou por baixo, o mais baixo átrio de nossos corações, com o sucesso Zero, onde entoa o seu autobiográfico “Peguei até o que era mais normal de nós / E coube tudo na malinha de mão do meu coração” para cantar uma sofrência tão comum quando em questão de amor “A gente fica mordido, não fica?”, e bem mais ainda quando esta mesma canção já ultrapassa os 22 milhões de visualizações. Podem até dizer que sofrência é o que vende, depois do cantor baiano Pablo, ou da drag e cantora Pabllo Vittar e, mais recente e com mais apuro estético, a recifense Duda Beat que também estourou com o álbum Sinto muito.

A autonomia de opinar foi dada a todos após o surgimento da redes sociais, mas só o de opinar, ser diferente 24h e independente não, ainda é visto como doença, palhaçada, vontade de aparecer, oportunismo. Felizmente Liniker nunca sofreu agressões físicas por ser o que é, esse cruzamento entre o masculino e feminino, um ser não binário, isto é, fora do contexto limitador que conhecemos biologicamente. Mas ultrapassar todos esses gêneros, e com um talento tão arrasador, não é para muitos por mais que queiram. Para alguns, Liniker não precisava de nada além da voz, sendo todo o resto apelatório e descabido, isso como se estivéssemos na era do rádio e não da imagem. Ainda para isso da apelação, citemos Nego do Borel no seu clipe Me solta, onde sempre travestido beija outro homem para ultrapassar no momento os 140 milhões de visualizações de uma música pensada somente para baile funk. No mesmo vídeo, alguém alfineta: “Critica o cara, mas no Carnaval sai vestido de mulher e se amarra.” Quando é para a minha alegria, pode, não é errado, mas se o outro ultrapassa o mês da folia, é doença e apelação.

A cantora Liniker, como prefere ser chamada, no feminino, já saiu das fronteiras brasileiras, chegando recentemente a participar do Tiny Desk Concert produzido pela NPR Music, rádio de titularidade pública e sem fins lucrativos do EUA. Em tradução livre, sobre o concerto de Liniker e os Caramelows, escreveram na descrição do vídeo: “Assistir a esta performance é testemunhar um feitiço sendo lançado, nota por nota. [...] Você tem que voltar para a mistura de jazz e música brasileira no final dos anos 50 para apreciar a afinidade que nossos dois países tiveram um pelo outro musicalmente.” Também anteriormente esteve na TV portuguesa RTP, fazendo todos os apresentadores dançarem com uma composição que parte da sofrência para o amor propriamente de alguém-ele-mesmo que é chamada de Tua. Aí está uma troca positiva entre as nações, de caráter cultural e não ideológico, de riqueza cultural e não de bestialidade fascista.

Liniker sem nenhuma afetação é brasileiríssima, com uma identidade própria, dona de um trabalho visceral e sobre ser ele ou ela responde: “Quando me questionam sobre gênero, eu falo que eu não sei quem eu sou e eu acho que é importante viver essa dúvida também. Eu não preciso ter uma certeza de ‘sou homem’ ou ‘sou mulher’, meu corpo é livre, meu corpo é um corpo político, ele merece a liberdade dele e eu preciso caminhar com isso, aceitar que eu sou assim”, disse em entrevista ao G1. É para isso que se luta, para empoderar e sair do “menina veste rosa e menino veste azul” que não acrescenta nada na evolução humana, pelo contrário, resume e encerra junto com o fascismo todas as problemáticas de nosso tempo.


No entanto: dissonâncias é uma antologia da editora Castanha Mecânica que reúne 23 autoras e autores que escrevem sobre a recente atmosfera pós-eleitoral, cujo discurso aprovado nas urnas enaltece violências, ameaças às minorias, redução de direitos trabalhistas e enriquecimento da classe patronal. São 23 distintos lugares de fala, usando da construção literária, para resistir a uma narrativa delirante de extrema direita que se alimenta de revisionismos históricos e fake news para aniquilar multiplicidades e colocar em subalternidade o conhecimento e seus agentes de difusão.
Estão na antologia: Adilson Silva Didil, Ane Montarroyos, Bell Puã, Caio Lima, Carlos Gomes, David Biriguy, Enoo Miranda, Ezter Liu, Flávia Gomes, Fred Caju, Guedes, João Gomes, Jonatas Onofre, Katarine Araújo, Lucas Holanda, Maria Samara, Odailta Alves, Pedro Tostes, Philippe Wollney, Renata Santana, Rodrigo Acioli, Samarone Lima e Thays Albuquerque.


Lançamento:
12/01 – 21h13, Sebo Casa Azul, Rua 13 de maio, 121 - Carmo, Olinda/PE






por Aleksandro F. de Paula___


Imagine uma pessoa sendo criada com todo o cuidado, todo o carinho do mundo, dentro de um ambiente familiar seguro e feliz. Seus pais evitam que ela tenha contato com qualquer coisa que sugira a violência — filme, desenho, gibi, brincadeira — isso é coisa para menino, ela é uma garota, sempre a encheram tão somente de mimos e afeto.

Imagine que essa garotinha, já então uma adolescente, tem seu coração invadido por todo o feitiço, toda a mística encantadora do amor. Já então com uma tonalidade um pouco diferente do que estava acostumada, mas com a mesma substância do amor cuidadoso e verdadeiro de que sempre fora alvo. Sua vida, de repente, é um conto de fadas. O príncipe encantado, um garotão que responde aos olhares de princesa, as deixas de apaixonada. Ele se diz encantado por ela também, ela enlouquece de amor. Agora sua existência é tudo aquilo; tantos contos de fadas assistidos e, então, ela era a protagonista. E o cara é um príncipe mesmo, enche-lhe de todo carinho e da afeição que ela sempre tivera.

Alguns meses de convivência e, de repente, ela recebe o primeiro tapa; informação difícil para apreender. Fica chocada com aquilo, mas, acima de tudo, está apaixonada. Como uma esponja, o seu amor absorve esta nova palavra sentida na pele virgem: Violência. E continua amando-o “mais que tudo”, como costuma dizer-lhe e repetir ao ouvido
Um segundo tapa já não é tão traumatizante, embora, o que sente, então, recorde a dor na alma do primeiro ato.

O terceiro, o quarto tapa... e, mais tarde, o primeiro murro; um olho roxo é mais evidente que a primeira olheira, causada pelas noites de insônia, quando o conhecera. O amor talvez seja a doença da alma. A mulher tem dessas coisas em sua singeleza; uma amiga dela nunca esquecera o primeiro amor, ainda que tenha durado tão pouco. O dela poderia perdurar por muito e muito tempo, se...

Quando o primeiro dente quebrado e a primeira tentativa de ele feri-la com uma faca de mesa acontecem, ela talvez já tivesse assimilado o termo “Violência”. Mas, ao contrário, se desespera ainda. Passa pela cabeça como seus pais não a prepararam para aquilo. No entanto, mais difícil de trazer consigo aquela feia cicatriz no tórax, é aceitar viver sem o seu grande amor. O primeiro e único amor.

Contudo, quando acontecem os cem números de tapas, de murros, o segundo corte no rosto — resultado de mais uma prova de amor dele — o primeiro e derradeiro tiro, ela, possivelmente, já tivesse assimilado a palavrinha maldita, e, talvez, fosse a única palavra que lhe restasse daquele “amor”. Mas, então, era uma compreensão já tardia e ineficaz, ainda que o manuseio da arma e a precisão dele não o fossem.

O pai dela já não consegue ver o resultado final de sua princesinha no velório. Com tanto amor e carinho a criara, e outro, usando das mesmas palavrinhas mágicas, a levara, tolamente, para aquele fim.




              Conto selecionado da obra O Mecanismo das Horas, Selo Redondezas, 2015.

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Sobre o autor


Aleksandro F. de Paula (Olinda/PE, 1976) é escritor e funcionário público. Publicou O Mecanismos das Horas (Selo Redondezas, 2015), 46 Escritos (Selo Birrumba, 2018), Nada mais e outros poemas (Selo Futurarte – Poesia, 2016) e A Criação do Temor e outros contos (Selo Redondezas, 20170. No prelo: Novos Escritos e Objetos Mortais Inusitados e outros contos.


por Adriane Garcia___
Maria Tereza, protagonista de Canção sem palavras (ed. Scriptum), mais novo romance de Laura Cohen Rabelo, é uma musicista, violonista, filha de um famoso e requisitado luthier. Tendo vivido no universo da música desde seu nascimento, Maria Tereza se torna uma virtuose do violão. A narrativa se concentra especialmente no período de estudos universitários de Maria Tereza, na Escola de Música em Belo Horizonte – quando já fazia concertos em um duo de cordas, com o namorado Arie  e no primeiro ano após a formatura. 
Dos conflitos e angústias comuns aos jovens assim que deixam a faculdade, Laura Cohen dá atenção especial à questão da vocação e da escolha de um projeto de vida. Tanto Arie quanto Maria Tereza entrarão em uma crise que coloca em dúvida não só o lugar que a música ocupa em suas vidas, quanto o lugar deles próprios na relação amorosa. É nesta crise que surgirá a viagem. Tanto Maria Tereza quanto Arie são filhos de mães judias e têm a possibilidade de fazer o “birthrigth”, um programa de turismo educativo para fortalecer a identidade judaica e colocar em contato jovens judeus de todo o mundo com os israelenses. 
Ao partir para Israel, em um grupo de quarenta jovens, Maria Tereza empreenderá uma viagem surpreendente e  aqui o grande mérito de Laura Cohen  o leitor irá junto.


Chama a atenção em Canção sem palavras a fluidez do texto e a forma quase matemática (como a música) em que a narrativa vai se dando. Há um ritmo de imersão para o leitor. Nada é dado de mais ou de menos, a leitura alcança uma verossimilhança total. Laura Cohen é profunda observadora de seus personagens, flagrando suas nuances e pensamentos. Tendo escolhido contar a história na terceira pessoa, mas no tempo verbal do presente do indicativo, Laura Cohen coloca seu narrador “colado” à sua protagonista, tanto que, no fim das contas, o leitor sabe que Maria Tereza existe, que pode ter passado por ela alguma vez e até lamenta não ter ido a um concerto seu.
Outro fato notável é que aqueles que não conhecem Israel ficam com a sensação de já terem ido lá, ainda que em sonho, enquanto leem o romance de Laura Cohen. Se a melhor literatura de viagem é aquela em que o leitor sente o que sente o viajante, fica próximo de outra cultura, ganha informações que pertencem a campos distintos do conhecimento, desenha em sua imaginação o cenário proposto a ponto de parecer ter pisado nesse outro território, Laura Cohen a cumpre em Canção sem palavras.
Além do universo da viagem, o romance traz dilemas intrínsecos aos músicos e aos estudantes de música. Como se já não fosse o suficiente, o leitor curioso encontrará uma espécie de “playlist” para ouvir, já que Maria Tereza em seu percurso de estudos vai nos mostrando o nome de grandes obras e compositores.
Canção sem palavras é um romance múltiplo, com personagens completos e complexos, demasiadamente humanos, procurando seu caminho no deserto. Da crítica geopolítica à condição feminina e à consciência do mito da masculinidade, do sucesso profissional ao sentimento constante de precariedade e da perecibilidade das coisas. Sutilmente, o lugar da viagem  um país jovem numa terra inóspita, que ameaça e é ameaçado – é também metáfora: “Ela tem a impressão de que tudo é frágil e vai acabar ruindo em pedaços um dia.”
“O homem sem cidade ou é um deus ou é um monstro. Ela tem a impressão de que tudo é frágil e vai acabar ruindo em pedaços um dia. O que a salva dessa impressão sedutora e quase confortável de um fim violento é a rotina. Mais do que tudo, ela ama a rotina. Há os dias bons e os dias ruins, e isso ela pode controlar. Acorda, estuda, vai ao restaurante, trabalha, sai mais cedo quando tem aula de violão ou ensaio com o quarteto, volta para casa, estuda, toma um banho, lê, dorme. Sente que está avançando muito no violão, como se algum nó de aprendizado tivesse finalmente se desfeito, e agora ela gasta todo o tempo que tem para tocar tocando, e não se refestelando nas angústias em que se envolvera no Brasil depois que Arie foi embora. O que era uma promessa de ficar melhor finalmente tinha ficado melhor, e ela se lembra da melhor parte dos seus dias, o estudo, a rotina.
Anda muito a pé e pega a bicicleta do tio Jacques e pedala por todas as partes. Gosta de ver os judeus religiosos caminhando pela rua, gosta de passar entre eles, atravessá-los como o presente atravessa o passado. Os mais moços olham, às vezes sorriem como crianças tímidas. Bochechas coradas, homens puros. O sonho de toda religião é manter todos nós como crianças para sempre, sempre puros e sem erro. Vai enrolando para entrar no curso de hebraico, mas aprende aos poucos com a tia Deborah.

— Você não sabe de nada  diz a tia enquanto mexe a panela de molho de tomate.  Seu tio Jacques brigou com seu avô não porque ele queria ir para Israel e ele não deixava. Seu tio Jacques saiu de casa porque ele é gay. Sua mãe não te conta as coisas direito, conta?” (p. 192/193)



Por Juliana Berlim___

A vegetariana de Han Kang (Editora Todavia, 2018)


A literatura, por vezes, emerge de sonhos. Seja da perturbação noturna de Gregor Samsa em A metamorfose de Franz Kafka, seja, dilatando a ideia de literário, da sequência onírica expressiva da peça O sonho, do dramaturgo sueco August Strindberg, o texto poético vem fazendo uso há bastante tempo da ocorrência de sonhos como solução, explicação ou mesmo justificativa de fenômenos que soam inexplicáveis do ponto de vista do realismo. A autora sul-coreana Han Kang parte de premissa semelhante: coloca sua protagonista, Yeonghye, dominada pela forte impressão deixada por uma série de sonhos terríveis que a levam a não querer mais comer, cozinhar, servir ou comprar carne. Graças a esta simples tomada de decisão, súbita e absolutamente pessoal, a moça, bem como os leitores, é levada a (re)conhecer o machismo, a indiferença e a brutalidade das pessoas que a cercam.
Yeonghye passa por um processo voluntário de abandono do humano, em trânsito entre os reinos animal, vegetal e mineral. Mas, combinado a ele, temos o processo de desumanização paralelo conduzido por seus parentes, que vão deixando claro a funcionalidade de Yeonghye em suas vidas, mostrando-a, na maior parte dos casos, como peça-chave em seus processos de ascensão social. A Yeonghye esposa e filha de jovem promissor da malha urbana de Seul é conveniente e, portanto, tolerável. A partir do momento em que o radicalismo de seu vegetarianismo atrapalha as conveniências de suas relações conjugais e familiares, percebe-se o quanto a personagem está envolvida em uma malha de manipulação patriarcal que culminará em seu isolamento social.
O recurso narrativo empregado por Kang é não dar voz, em nenhum momento, à própria Yeonghye. Até que ponto a moça está louca? Mas o livro não se debruça sobre o desequilíbrio mental (aos olhos dos que cercam a protagonista), e sim sobre os efeitos da atitude de recusa da jovem em ser uma mulher onívora. Dos três relatos nos quais se divide o livro, o último é o mais próximo da anima da personagem, justamente o da irmã mais velha e fisicamente muito parecida com Yeonghye, metáfora para o espelhamento contínuo entre as duas irmãs realizado pelas demais personagens. Perceba-se aqui a desintegração e a reintegração de uma na outra.
Que a história desta Bartleby sul-coreana, até mais reativa e violenta que seu original, possa sensibilizar os leitores brasileiros para a boa literatura produzida na Coreia do Sul atualmente (como Sukiyaki de domingo, de Bae Su-ah, lançado no Brasil pela editora Estação Liberdade), em especial no tocante à condição da mulher na sociedade sul-coreana contemporânea.
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Juliana Belim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II. Conduz no mesmo colégio, o projeto de iniciação científica Neuromancers, de leitura e pesquisa sobre romances de ficção científica, bem como faz parte do corpo docente da pós-graduação Lato Sensu Ererebá – Educação Étnico-Raciais no Ensino Básico. Participou de três edições da FLUP – Festa Literária das Periferias, com a publicação de quatro contos no total.