Um Carnaval de disparos

por João Gomes__


Trecho da tela  "Eu vi o mundo...Ele começava no Recife" de Cícero Dias



       Nasci no Recife, capital do frevo, patrimônio imaterial da humanidade. Digo mais: cresci no Recife Antigo, ou Bairro do Recife, onde acontece o Carnaval de rua mais inclusivo e multicultural do país. Mas só de alguns anos pra cá passei a perceber como a festa de Momo acontece, ofertando todo o período como palco do espetáculo, suas ornamentações e tradições contendo tanta historicidade. O frevo, que nas palavras de Câmara Cascudo é “a grande alucinação do Carnaval pernambucano”, o maracatu da Rua da Moeda, os trios elétricos que arrastam multidões no tão aguardado Sábado de Zé Pereira com o maior bloco de rua do mundo, o Galo da Madrugada e etc. Isso sem falar nas ladeiras de Olinda, com prévias todos os finais de semana muito antes e blocos passando a todo instante. Eis nossa riqueza cultural que impulsiona a economia antes e durante a festa.


É um privilégio ser recifense, viver o ano todo esse desdobramento e preparo para que a festa aconteça, gerando aquela saudade e ressaca esperando pelo próximo Carnaval. Neste 2019, os homenageados são a cantora, compositora e percussionista Gerlane Lops e o sambista Belo Xis. Nada mais justo do que homenagear os representantes do povo, artistas que conseguem chegar e fazer cantar e dançar nossa cultura popular. Ano passado tivemos como homenageados Nena Queiroga, que não falta um Galo da Madrugada com seus sucessos de frevo tão agarrados na efervescência do sábado de calor e alegria, junto ao compositor Jota Michiles. Nunca tinha visto um Carnaval tão bonito, dado ao povo como resposta de que é possível, nem que seja por alguns dias ou horas, viver ritmos e letras com tantas boas energias.

Claro que nem tudo são flores, e a violência leva senão um pouco ou toda a alegria de alguns durante a festa, tudo empacotado em estatísticas na tão temida quarta-feira de cinzas. Antes é um momento de prevenção, de descobertas por meio de exames rápidos de Dsts, campanhas contra o machismo, lgbtfobia, de encontro de um amor e não apenas algo rápido em becos ou banheiro químico, gerando em alguns casos precoces divórcios, gravidez com autor sumido na folia. É a festa onde tudo acontece e tudo só vale quando não tira o direito de existir do outro, que ensina como é possível estar numa multidão. Costuma-se dizer que o ano só começa depois do Carnaval, talvez também pelo que leva de gastos durante toda a folia, e que pode ser recuperado depois. Mascarados, fantasiados, travestidos, livres, enrustidos, curiosos e tímidos, todos brincam. Ninguém fica de fora, ninguém se segura em si, todos caem no furacão de ritmos, com ou sem dinheiro.

Não fosse algo bonito de se sentir e ver, turistas não ocupariam toda a rede hoteleira, as residências de Olinda não se alugariam e o encontro de povos de todos os lugares do mundo não viriam para onde, como se transcreveu no piso do Marco Zero, praça que abriga o polo mais importante e central: “Eu vi o mundo... Ele começava no Recife.”, título de uma pintura de Cícero Dias. De fato, temos esse espírito de grandeza, e daqui saíram pro mundo e se inspiraram poetas, compositores, pintores. Como não se sentir importante, se tudo que fazemos guarda tanta vibração renovada ano após ano. O compositor Capiba, Alceu Valença, Chico Science, Naná Vasconcelos, Antônio Nóbrega e tantos outros. Um destes apenas acende a cidade inteira pro mundo todo ver.

As reticências do título de Cícero Dias em “Eu vi o mundo…” sempre me deixa receoso de como acontecerá mais uma vez esta festa, que pra muitos  pode ser a última. Ainda mais quando sabemos que o mal ao povo, este mesmo povo que não se mobiliza por um país melhor, mas que lota as ruas para fugir da mesma realidade que ele constrói, pode estar num fiasco dia após dia. Com o pronunciamento de Paulo Guedes, entre o “coração mole da esquerda” e o “coração não tão bom da direita”, ficamos divididos a um extremismo que tenta reduzir e simplificar direitos e liberdades. E o Carnaval rompe tudo, chega chutando a porta, com sua doce ilusão por meio das canções, do comportamento de efemeridade proveitosa muitas vezes irresponsável. Mas não nos negamos: é o momento de esquecer tudo

É como no que ouvimos e dançamos em é “um bicho comendo o outro” de maneira tão canibal e desumana. Atualizando a canção seria um fascista matando sob a máscara da imbecilidade outro, matando ativista de direitos de interesse a quem mais precisa, impedindo que o pobre possa ingressar na universidade pública, agredindo quem pensa diferente e se justificando em nome de Deus. Este Carnaval é mais que cultural, é político no sentido simplista da palavra, entupido de moral e escasso de ética do judiciário e do legislativo. Até pouco tempo, Bolsonaro desceria não a rampa do planalto, mas sim as ladeiras de Olinda como um boneco gigante, provocando disputas acirradas pelo que já foi disparado contra o povo sem exceções. É Dominguinhos quem canta: “Quem é rico mora na praia. Mas quem trabalha nem tem onde morar.” Boa e triste analogia do que se sujeitou o povo em nome de um emprego possibilitado apenas por curso técnico, sem direitos numa escravidão disfarçada de conquista.

Em pensamento só peço uma coisa ao Bicho Maluco Beleza da canção de Alceu Valença, que “Com teu charme, teu mistério, teu sorriso largo, és o terror da família, não tens compaixão”: que este Carnaval possa mostrar que podemos todos ir juntos, que somos em algum sentido todos iguais, somos da mesma nação e aqui no Recife todas as regiões e expressões culturais se misturam. Eu mesmo já fui violentado durante o Carnaval, que com tamanha revolta consolei o meu direito de ir e vir me fazendo escrever um poema que transcrevo aqui junto com a composição de Daniela Mercury em parceria com Caetano Veloso, quando antes já sugeriu que “é proibido proibir”, a canção “Proibido o Carnaval”.

Pierrô ferido | João Gomes

O tempo pisado
é ínfimo, funciona-se
a emoldurar mortais
com predicados sujeitos
iguais à dureza estátua.
Visualizado momento
perdido, funda adornos
à carranca,
lava mármore de outrem,
término refaz
de entendimentos
vossa máscara.








                                                                 

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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.