Cinco entrevistas e um eclético painel sobre o universo feminino


por Raimundo de Moraes__
Em homenagem ao 8 de março, o Mirada traz cinco entrevistas realizadas pelo escritor e jornalista Raimundo de Moraes, que fez das perguntas não só uma breve coletânea de opiniões, mas também um eclético painel sobre o universo feminino e suas múltiplas manifestações – seja na arte, no dia a dia e nos desafios do combate à violência contra as mulheres. 

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Gerusa Leal
O que te levou (e leva) a escrever?
Na base de tudo, a leitura. Fui uma criança muito introversiva, que sempre adorou ler, vício que adquiri com um pai também leitor inveterado, e escritor tão autocrítico que acabou pouco publicando. Até hoje prefiro ler. Escrever foi uma descoberta feita outro dia, há uns vinte anos quando, aposentada precocemente, me valendo da legislação previdenciária da época, e abrindo mão de quase um terço do salário, comecei a prcurar algo interessante para fazer.


Existe literatura feminina e literatura masculina? Ou é tudo literatura, tudo junto e misturado?
A expressão “literatura feminina” geralmente me chega como uma forma de desqualificar a literatura escrita por mulheres. Para mim é mais importante pensar, na literatura, na representação construída por mulheres no universo dos escritores. Os estilos, as temáticas, os focos narrativos, personagens masculinos e femininos, os mais diversos, estão presentes na literatura escrita por mulheres. Trabalham questionando ou ratificando os papéis tradicionais de gênero, e nisto querem fazer parte ou negar a existência de uma “literatura feminina”, o que só cada trajetória, cada obra e cada perspectiva crítica poderá dizer. É, em geral, possível se identificar, pela leitura de uma obra, se o escritor é homem, é mulher, é gay? Sim, com raras exceções é possível. Cada gênero narra a partir de um lugar de fala próprio. Para mim, muito mais importante que isto é perceber que são mulheres, e ainda constituem um número muito menor que os homens no universo dos escritores publicados, a despeito da qualidade da literatura escrita por mulheres
Qual ou quais personagens femininas te impactaram mais?
São várias. Em geral, personagens fortes, do ponto de vista literário. Mas em geral também, não correspondem às personagens consideradas fortes por representarem mulheres tidas como fortes. É que personagens são seres de papel. Mas vamos lá, citando apenas algumas: a protagonista inominada do conto da Lygia Fagundes Telles, Pomba enamorada, ou uma história de amor; Macabéa, da obra A hora da estrela, de Clarice Lispector; Félicité, do conto Um coração simples, de Gustave Flaubert. Todas três personagens têm a mesma força literária, construídas pelas escritoras ou pelo escritor. Há outras tantas mais, mas vamos ficar por aqui.
A maternidade trouxe que mudanças em sua vida?
A primeira mudança radical que a maternidade trouxe em minha vida foi uma reviravolta total em minha ordem de prioridades. Meu filho passou a ser minha prioridade zero. Uma felicidade até então desconhecida. Mas nem tudo eram flores. Ir ao banheiro na hora em que sentia vontade, um banho morno mais demorado depois de um dia pesado, uma noite inteira de sono, passaram a ser sonhos de consumo. Nunca romantizei a maternidade. Faria tudo de novo. Mas amor de mãe, amor de filho, para mim, é construção. Permanente. Claro que as gratificações são de tal ordem que não dá pra descrever para quem não tem filhos. Mas por escolha minha desisti de uns projetos, adiei outros, e descobri outros. E desde que comecei a escrever, meu filho costuma ser meu primeiro leitor, aquele mais crítico e sincero. Aliás, ele é assim em relação a tudo. Por isso confio em suas críticas e sugestões, muitas vezes solicitadas por mim. E me apoia em qualquer projeto que eu pretenda empreender. Minha vida teria sido, seria completamente diferente não tivesse sido a maternidade. Para o bem e para o mal.
Jesus pregando na goiabeira, “cidadões” querendo escola sem partido e um mundo de “dejeitos” à nossa volta. Como podemos definir o Brasil atual, Gerusa?
Bizarro, repressor, distópico. Às vezes tenho a impressão de que vivemos num Brasil que não mais existe. E não me refiro a um Brasil que já existiu. Sinto como se o Brasil, hoje, fosse apenas o resultado de narrativas ficcionais. E de que até nós, brasileiros que aqui permanecemos, principalmente os que não fazem o pacto ficcional, inventamos uma vida a cada dia para não sucumbirmos à ameaça de aniquilação que vai nos tornando sombras daquilo que podíamos, que teríamos tudo para ser. É difícil se manter resistência sem nenhum túnel de onde poderia vir uma luzinha, ainda que fugidia. Fica bem difícil se dedicar à criação literária em tempos assim.
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Gerusa Leal, 65, é psicóloga de formação, contista e poeta amadora. Conquistou, em 2007, os prêmios Maximiano Campos (contos), e Edmir Domingues (poesia) da Academia Pernambucana de Letras, com o livro Versilêncios, publicado em 2009. Em 2012 recebeu o Prêmio Elita Ferreira de literatura infantil da APL com o livro Carolina. Em 2016 publicou, com o grupo Autoajuda Literária, o livro Escrever ficção não é bicho-papão, pela edições Geni, e o e-book Dias Feitos de Séculos, Vida Secreta Publicações. Em 2017 lançou o livro de microtextos Se, pela Livrinho de Papel Finíssimo. Seus escritos podem ser encontrados, ainda, em edições dos blogs Escritoras Suicidas, Diversos Afins, Escritores & Tal, passeipostei, NotaPE. Blog pessoal: www.flor-de-gelo.blogspot.com

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Nuno Kembali
O que é o projeto O feminino em nós?

O projeto O feminino em nós: conversas sobre literatura e afetividade é uma iniciativa que nasceu em 2018, reunindo os escritores Andrea Campos, Virgínia Leal e eu. Teve duas grandes motivações. A primeira é a percepção de que nunca tivemos, enquanto humanidade, lido e escrito tanto, mas sem que isso tenha significado uma maior capacidade de diálogo e entendimento. Ao contrário, sobretudo no espaço da internet, as pessoas costumam ler sem propriamente ler, e em certos casos formar uma opinião sem que tenham propriedade a respeito das coisas. Nossa percepção, portanto, é de que temos que resgatar os espaços de diálogo presencial, sem com isso deixar de frequentar os espaços virtuais. O outro motivo é que entendemos que o momento atual, no Brasil e no mundo, tem exigido de nós uma atitude política de afirmação de certas pautas, como a pauta de gênero. Talvez o feminino nunca tenha estado tão no centro do debate, embora rechaçado por amplos setores da sociedade. O feminino que glorificamos é aquele que está em todos e todas nós, não o feminino enjaulado de outrora porque símbolo do patriarcado que exigia feminilidade da mulher como condição de existência em oposição ao macho viril, o alfa, esse sim, régua para a definição do outro gênero. O feminino que glorificamos é aquele que está presente em escritoras e escritores, e que costuma abordar os assuntos da vida com maior abertura que a literatura tradicionalmente conhecida como masculina. Com o projeto, temos ido à universidade, praças, bares, cafés, para conversar sobre literatura feminina, ou no feminino, e sobre afetividade com quem quiser dialogar. Falamos a respeito da literatura de autores de quem gostamos, da nossa própria literatura, do mundo em que vivemos e abrimos a palavra para que os presentes falem.

Acha que a masculinidade está em crise ou passando por transformações?

A masculinidade está em crise no Brasil e no mundo, em alguns lugares mais que em outros. No caso do Brasil, temos visto a rearticulação da masculinidade tradicional, em termos políticos, no sentido de evitar o fortalecimento do feminino, que por séculos esteve enjaulado. É lamentável que algumas mulheres e alguns gays não percebam esse movimento, tendo sucumbido a um discurso universalista. Esse discurso universalista apela à ideia de que todos somos iguais. Não somos iguais. Somos diferentes. Em razão dessa diversidade é que precisamos aprender a nos respeitar. O medo do macho tradicional é perder a condição de dominação sobre mulheres e gays, por isso querem manter intocado um suposto direito de discriminar.


Na sua opinião, o que precisa ser feito para combatermos com mais eficiência os casos de feminicídio no Brasil?

O feminicídio alcança as mulheres, incluindo as mulheres trans, que na escala são ainda mais vulneráveis. As mulheres são vítimas de estupros e feminicídio porque existe uma ideologia de superioridade masculina. Sendo assim, não há como combater essas situações apenas com medidas judiciais (penas e prisões), embora essas também sejam importantes. O meio mais adequado para combatermos o estupro e o feminicídio é a educação, em todos os níveis, em torno da igualdade entre os gêneros e entre as raças e etnias.


Poderia citar algumas mulheres que foram (ou são) importantes na sua vida?

Sobretudo as mulheres têm sido importantes na minha vida. Sinto-me profundamente influenciado pela literatura feminina, por entendê-la confessional. Por meio da literatura confessional, muitas mulheres (e homens) se desnudaram literariamente, falaram de si mesmas como não é comum entre os que fazem, sendo homens ou mulheres, uma literatura tida como masculina. Entre as mulheres que me influenciaram na literatura estão Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e Clarice Lispector. A primeira é autora de uma obra que me encanta por construir personagens que se desnudam (como em Alexis e Memórias de Adriano). A segunda porque fez de si um personagem a se desnudar (como em O amante e Olhos azuis, cabelos pretos). A terceira tem uma literatura terna e potente ao mesmo tempo, o que aliás é uma qualidade importante. Entre os autores homens, André Gide é um grande exemplo de uma literatura em que o autor fala de si por meio dos personagens, promovendo essa perspectiva confessional.

De que maneira o feminino que existe em você ajuda na vida diária ou na literatura?

O feminino está em mim numa literatura de tipo confessional. O sentido geral do que escrevo é o de demonstrar as insuficiências do projeto patriarcal. Sobretudo meu olhar sobre o mundo é feminino porque está desapegado das convencionalidades dominantes e dominadoras, essas, tipicamente masculinas.

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Nuno Kembali, 56, é o nome literário do advogado, jornalista e professor Jayme Benvenuto. Atualmente coordena e participa do projeto O feminino em nós. É autor da novela Rota 12: sobre jaguaretês e outros bichos no diadema do tempo (Aldeia dos livros, 2018) e do livro de contos Eu vi Santiago Fumegante (Viseu, 2018). Escreveu também as novelas, ainda não publicadas, O matagal ou o vão combate é mais embaixo; e American Way of Life. Seus trabalhos demonstram a intenção de surpreender o leitor ao abordar temas contemporâneos em linguagem despojada e ágil, quase cinematográfica.


#Ofemininoemnós #feminicídio #feminismo #8demarço #escritor #literatura

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Sabrina Carvalho
Foto: Marília Pinheiro
Sabrina, os oráculos e o mundo esotérico também podem ajudar na militância para termos algum dia um mundo melhor?
Eu adicionaria aos oráculos, que na verdade são instrumentos fortes de autoconhecimento e autobusca, muitas outras terapias integrativas que ajudam a fortalecer e empoderar, mas também cuidam do corpo sutil e nossas energias. O processo de militância envolve a necessidade de uma conexão ao nosso poder pessoal, assim como a capacidade de expansão das possibilidades e a proteção e limpeza energética desgastada pelo enfrentamento. É muito gratificante para mim poder contribuir em alguns momentos de fortalecimento dos “eus” que lutam por dias melhores.

O tarô te escolheu ou você o escolheu?
Acredito que o Tarot me escolheu, mas também posso tê-lo escolhido em vidas anteriores. Só sei que minha sensação de conexão e missão com esse instrumento é muito forte e me acompanha desde de criança, primeiro com as cartas de baralho e depois, na minha juventude, como o próprio tarot.

A maternidade trouxe que mudanças em sua vida?
Trouxe mudanças primordiais e estruturais. Me sinto mais forte e mais motivada para alcançar meus objetivos, pois a saúde, a segurança e a felicidade dos filhos acabaram me motivando a me conectar com minhas verdades e minhas buscas. Para fazermos filhos felizes precisamos ser felizes... Além disso sou canceriana... Aí já viu, né?
De alguma maneira você já foi vítima de machismo?
De muitas maneiras, incontáveis maneiras, vindas de gêneros, locais e épocas diferentes. Acredito que toda mulher já foi ou é vítima de machismo todos os dias. Mas claro, existem graus de machismos, alguns que já toleramos, outros que precisamos acionar a polícia. Sinto que às vezes precisamos fazer alguns malabarismos para poder entender como conduzir machismos leves e estruturais sem estressar o dia a dia com amigos, companheiros, filhos, irmãos, pais – ou seja, os homens que amamos e admiramos. Mas nosso dever educador desses homens que nos importam é essencial para mim, e se for necessário enfrentar e estragar um momento descontraído. Ok, graças às Deusas isso já é normal e aprendemos no dia a dia a enfrentar esses machismos.
Usando sua intuição de bruxa: se o tarô pudesse mandar uma mensagem para todas as mulheres do mundo neste 8 de março, qual mensagem seria?
A princípio eu achei que só uma, mas a mensagem vem de duas cartas: a Força e a Imperatriz.
A Força, arcano XI para alguns baralhos e arcano VIII para outros. Independentemente de sua numeração, esse arcano nos lembra que o amor e nossa capacidade de amar nos conecta muito mais com nosso caminho do que se deixarmos nosso leão dominador destruir esse ambiente agradável que queremos construir. Todas conhecemos a necessidade diária de matar os leões que vêm de fora, mas manter os nossos leões interiores em suavidade nos dá mais destreza e inteligência para os movimentos.
E a Imperatriz, arcano III, fala do nosso império que é nosso corpo, que é nosso fruto e nosso prazer. Cada dia estamos mais conectadas com o domínio do nosso território amoroso e com muito amor colheremos os frutos do nosso plantio. Cada dia mais donas de si, sim, agora que somos nossas imperatrizes novamente, nossa ordem máxima é espalhar amor nesse mundo. Lutar sempre e com amor!
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Sabrina Carvalho, 38, mãe de dois filhos, é editora da Livrinho de Papel Finíssimo, taróloga e há 12 anos é pesquisadora da área do esoterismo e terapias alternativas.
#Feminismo #Maternidade
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Marta Almeida
Segundo pesquisa do Geledés – Instituto da Mulher Negra – no crescente índice de feminicídios no Brasil, mais de 50% desses casos são cometidos pelos próprios familiares da vítima. A violência doméstica é um problema muito antigo em nosso país. Como combatê-la?
Através da informação, é necessário que possamos fazer com que nós mulheres negras possamos ter acesso às políticas públicas, a exemplo da educação, saúde, emprego e renda, moradia, saneamento entre outras. É necessário campanhas educativas, termos mais delegacias das mulheres, as casas-abrigos entre outros afins.
Você acha que as cotas raciais podem diminuir, de fato, as dificuldades das mulheres negras ao acesso à escolaridade e abrir espaço em suas respectivas carreiras profissionais?
Com certeza, pois é uma ação reparatória. As cotas fizeram com que nós, mulheres negras, pudéssemos ter acesso a um espaço privilegiado que é a universidade, acesso a um diploma. Tudo isso, além de conhecimento, nos leva ao acesso a um bom emprego e com isso o aumento da nossa autoestima.
Como você avalia atuação do Movimento Negro Unificado em Pernambuco nesses quarenta anos de existência?
O MNU de Pernambuco hoje chega os seus 40 anos como uma das mais fortes entidades negras e também como um dos MNUs mais importantes a nível de Brasil. O MNU-PE tem assento nos diversos conselhos estaduais, tais como Igualdade Racial, Segurança Alimentar, Juventude, entre outros. Temos o projeto Cultural Terça Negra, no Pátio de São Pedro. Vários de nossos militantes ajudaram na construção dos organismos de Igualdade Racial nos diversos municípios, inclusive fazendo parte dos mesmos. Tivemos Adeildo Araújo, que integrou a equipe da Coordenadoria de Negros e Negras de Olinda.
A maternidade trouxe que mudanças em sua vida?
Trouxe sim, com certeza, pois o meu tempo era dedicado exclusivamente ao movimento social. Depois de minha filhota Talita, hoje com 5 anos, tive que abrir mão de muitas coisas, por exemplo encontros, reuniões. Tive que readequar o meu tempo, pois agora sou mãe. Inclusive para que ela possa entender o meu trabalho. Pois ela é filha de mãe e pai militantes.
Nelson Mandela disse uma vez que, assim como as pessoas são ensinadas a odiar, elas também podem ser ensinadas a amar. Você acredita numa sociedade mais fraterna no futuro? Ou mudam os cenários e os figurantes e surgem outros tipos de preconceitos?
Sim, pois é para isso que vivemos, por uma sociedade libertária, democrática, soberana, livre, uma sociedade socialista/comunista, uma sociedade de equidade, fincada nos valores panafricanistas e afrocentrados, valores de Zumbi e Dandara, nos valores da ancestralidade, do Ubuntu. Com isso sabemos que fazer o enfrentamento ao sistema capitalista, ao patriarcado, ao sexismo não é fácil, pois o mesmo se modifica e se fortalece, a exemplo do que estamos passando hoje no Brasil e na América Latina. Estamos tendo um crescimento da direita e extrema direita onde muitas coisas na qual muitos morreram para conquistar, agora estamos infelizmente perdendo. Então não podemos abrir mão de ter fé e esperança no processo da luta.
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Marta Almeida, 40, é formada em Pedagogia com especialização em Psicopedagogia e em Educação Especial. Faz parte da direção do Movimento Negro Unificado-PE, da União Brasileira de Mulheres, da CMP-PE, sendo atualmente conselheira estadual de Segurança Alimentar. Coordenou o Fórum de Juventude Negra, o ENJUNE, o Encontro de Jovens Feministas e Jovens Negras Feministas, Fórum de Juventudes de Pernambuco. Participou de diversas conferências nacionais como Igualdade Racial, Mulheres, Juventude, Segurança Alimentar e Saúde; Cidades, Direitos Humanos, Educação, entre outras afins. Marta faz parte da Tradição de Matriz Africana, sendo ekedí (zeladora dos orixás).

#feminismo #movimentonegro #jovensnegrasfeministas

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Alice Elihimas


Por que a gastronomia como profissão?
Quando eu era mais nova, num passeio da escola, tive contato com o açúcar, a sociologia do doce, de Gilberto Freyre. Daí tive vontade de entender o Nordeste através do que a gente comia. Mais tarde, fui reparando que as cozinhas dos restaurantes do meu pai eram majoritariamente ocupadas por homens. Quando percebi que as mulheres tinham esse acesso negado na cena gastronômica, resolvi fazer da cozinha minha trincheira. É daqui que jogo as granadas pra desconstrução do patriarcado e é aqui que tô treinando pra executar meu sonho (quando eu crescer eu quero ter uma escola de cozinha profissionalizante pra mulheres).

A cozinha é um espaço democrático para homens e mulheres? Ou existe machismo?
Engraçado essa pergunta ser agora. Nesse momento tô no escritório do restaurante atualizando umas fichas técnicas e acabou de subir uma funcionária pra se queixar de um funcionário que mandou ela "trabalhar que quem tá no comando é ele", mesmo eles tendo cargos semelhantes.
Quando decidi trabalhar em cozinha, meu pai me contou relatos das amigas dele na cozinha e dos assédios que passam sempre. Tudo de brincadeirinha, sabe? Puxam a alça do sutiã, ficam olhando quando a gente se abaixa. Diz "vai cozinhar em casa". Lembro quando assumi o restaurante de um funcionário que pediu pra sair. Disse que não ia ser coordenado por uma menina não.
Escoffier, o pai da gastronomia colonizada, quando padronizou a cozinha numa estrutura bélica, disse que a mulher não podia estar ali, porque era incapaz de seguir padronizações. E aí a gente sempre vê a figura da mulher que cozinha como uma semidemônia, né? Na literatura tem Gabriela, que conquistava sobretudo pelos quitutes e pelo cheiro de tudo isso. São formas "sutis" de negar esse espaço e de nos silenciar. Mas tem um monte de mulher vindo com uma força danada numa velocidade bem alta e sem debrear.
Existe um jeitinho feminino e um jeitinho masculino de cozinhar?
Existem polos positivos e negativos em tudo, que podem ser executados por homens e mulheres. Mas li uma vez que é o lado feminino que nos permite respeitar melhor as idiossincrasias na cozinha. Diz-se que uma boa mãe acerta o ponto do sal de cada filho. Cruel pensar dessa forma, né? Na mulher mãe servindo a família.
O famoso chef Paul Bocuse, que se encantou em 2014, disse que a cozinha é a paz no mundo. De que maneira você acha que a gastronomia ajuda a te melhorar como pessoa? E de que maneira ela pode ajudar outras pessoas?
A cozinha pode ser a paz no mundo, mas ela pode segregar também. A gente tem que ter muito cuidado pra não romantizar a gastronomia, sabe? A cozinha é maior que eu. Tudo que acontecer a ela, eu vou sentir. Só há um jeito de tornar a cozinha um agente de paz: descolonizando-a.
Se um dia você for mãe e tiver uma filha, quais conselhos daria para ela enfrentar esse mundo tão violento?
Saiba amolar suas facas. Faca cega produz os piores cortes.
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Alice Elihimas, 23, formada em Gastronomia pela Faculdade Senac de Pernambuco e pós-graduanda em Gastronomia Vegana, pela Faculdade Metropolitana do Recife. Vegana, feminista e mulher na cozinha.

#gastronomia #feminismo #feministaemulhernacozinha