Missa de Sétimo dia


Um conto de Fernando Ferrone







– Oi.
– E aíííí?
– Tudo bem.
– Viu a mensagem que te mandei?
– Vi sim.
– Você vem?
– Não vai dar.
– Que que houve? Você já não veio no enterro, por que não vem pra missa de Sétimo Dia?
– Eu tô trabalhando, não tem como mesmo. Diz pra Célia que não vai dar.
– Olha, Fa, eu sei que tem como dar um jeitinho. Faz esse esforço, a mãe vai ficar feliz.
– Ju, eu já disse que não dá. Não insiste.
– OK. Como está o Gael?
– Ela tá bem sim. Tá com o pai agora. Tirei a tarde pra trabalhar aqui.
– Mas é sábado...
– E daí, Ju? As pessoas trabalham de sábado também, ué.
– Fa, o pai gostava de você, sabia?
– É mesmo? Ele tinha um jeitinho especial de gostar, então.
– Você sabe como ele era. Mas não era de maldade.
– Meu querido, eu pouco me importo se era de maldade eu não. Eu também não desgostava
 dele por maldade. Maldade não tem nada a ver com isso, não.
– Fa, eu tenho um amigo, um conhecido, que me disse uma vez uma coisa muito legal. Era,
 tipo, não carregar essas coisas nas costas pra sempre. Se livrar do fardo das tristezas, acho 
 que isso que ele disse: “fardo das tristezas”. Ninguém precisa levar isso, não.
– Mas por que que você acha que é um fardo pra mim?
– Olha, se fosse comigo, eu ia ficar muito mal.
– Você é você, Júnior. Eu sou eu. A Célia é a Célia. O velho era o velho. Estamos OK?
– Faz isso pela mãe.
– Eu faria, Ju. Eu faria mesmo. Apesar de tudo. Mas é que não vai dar mesmo.
– Fa, o que que você faz afinal que não pode esperar um dia só? A missa dura só uma 
 horinha. Uma e meia se o padre novo lá resolver dar uma esticada no sermão. Mas a gente 
 nem precisa ficar até o final. Ela vai ler o nome do pai no começo. A gente dá mais um
 tempinho lá pra não ficar feio e vaza.
– Eu tenho um projeto pra entregar na semana que vem. E tá atrasado.
– Mas você não tem direito a pegar uns dias de folga lá de luto. Eu li isso em algum lugar. É,
 tipo, artigo da CLT. Deixa eu conferir aqui no Google...
– Ju, se liga: eu não sou contratada. E mesmo se fosse, não faria diferença. Se eu conseguisse 
 entregar o projeto com um dia de trabalho, eu ficaria sem fazer porra nenhuma na beira da
 piscina que eu não tenho só dando like em fotinho sem graça no Insta durante todos os dias
 do prazo menos um e faria tudo no último entregando-o garbosamente no prazo. Mas não
 funciona assim. Os projetos precisam, na real, de todos os dias do prazo mais n, por n entenda
 um número natural maior ou igual a um tendendo a um caralhão.
– Por que você faz isso, Fa?
– Por que eu faço o quê?
– Você fica se exibindo.
– Como que eu tô me exibindo, Ju?
– Você fica falando desse jeito, como se falasse lá com os seus amigos afetados da faculdade,
 fica falando difícil, as pessoas se sentem burras. Cê lembra da última vez que você voltou? 
 Aquela vez em que a gente foi lá no Atol?
– Que que tem aquela vez?
– Foi muito chato, Fa. Você ficava fazendo piadinha sem graça com o nome do local. Com o 
 nome das bebidas. O pessoal só queria conversar de boazinha, relembrar os velhos tempos, e 
você ficou falando de coisa de faculdade, umas nerdices. Todo mundo te achou arrogante.
– Todo mundo é muita gente, Ju.
– O Marquito achou.
– Sério? Mas eu não falei nada por mal, não, cacete. Eu só tava tentando ser engraçada.
– O Marquito achou que você tava bem arrogante. E ele gosta de você, hein?
– Porra, Ju, sei lá. Desculpa.
– Tá bom.
– Então tá, preciso desligar aqui. Tô atrasada mesmo.
– Fa, se você voltasse a gente poderia sair de novo com a galera. Tá todo mundo aqui. Daí é
 uma segunda chance, né? O Marquito falou de você outro dia, viu?
– Júnior, você é muito insistente. Não fucking dá. Você tá me irritando.
– Fa, olha, eu queria conversar pessoalmente, mas acho que não vai dar, então, lá vai. Preciso 
 de dinheiro. Tô fodido de dinheiro. Me ajuda, por favor.
– Como assim, Ju?
– Eu tô devendo uma grana pro Betão.
– Mas é o quê?
– Eu tô devendo uma grana pra ele. Ele já me cobrou uma vez. Disse que da próxima vez não
 vai ser na conversa, não.
– Júnior, seu arremedo de orangotango, eu não quero saber por que que você tá devendo 
 dinheiro pra ele porque eu tenho certeza de que eu vou ficar puta da vida com isso e se algum
 dia eu acabar voltando praí eu juro que eu vou te esganar, seu débil mental, imbecil, porra,
 Júnior!
– Valeu, Fa, valeu mesmo.
– Qual o número da sua conta?
– Eu não tenho conta, não.
– Como assim? Você tinha.
– “Tinha”, do verbo “não ter mais”. Tive que fechar.
– Cê tá de brincadeira comigo. Puta que o pariu, Júnior. Tá louco.
– ...
– Qual o número da conta da Célia? Eu deposito na conta dela e você saca com o cartão dela, 
 ou pede lá pra Rose do banco sacar o dinheiro pra você sem cartão mesmo. Ela te conhece, 
 conhece a Célia. Em cidade pequena essas coisas são mais simples.
– Fa, não dá não.
– Por quê?
– Porque se você depositar na conta dela ela vai ter que fazer lá o negócio lá do imposto de
 renda e daí que vai ter que pagar mais imposto e ela vai brigar comigo por causa disso.
– Júnior, de onde foi que você tirou essa ideia?
– Foi a Gabi lá do escritório do Dr. Elias que disse que é assim.
– Pois a Gabi tá errada. Não é assim que funciona. Aliás, Júnior, se você aceita um conselho 
 que ninguém tem coragem de te dar, a melhor coisa que você poderia fazer na vida, além de 
 parar de pedir dinheiro pro Betão, é tirar de vez a Gabi da sua vida. Ela já não te causou
 problemas suficientes por umas duas reencarnações?
– Fa, você tá muito enganada sobre a Gabi. Ela é muito legal comigo. Ela nunca me deu
 problema nenhum.
– Júnior, você nunca teve problema com ela porque quando vocês tiveram quem teve que
 resolver fui eu. Ou você esqueceu quem foi a otária que teve que ir na farmácia comprar a 
 pílula do dia seguinte? Porque os bonitões aí estavam com vergonha de encarar o Tião da
 Farmácia e parece que vocês programaram bem pra quando a Analu estivesse de férias. Daí
 nem a alternativa de passar com ela no horário de almoço do Tião vocês tinham. E vieram
 choramingar pra mim, porque parece que eu não tenho honra nenhuma pela qual zelar, então
 eu posso dar minha cara lá no balcão e me expor ao diz-que-me-diz de por-que-será-que-a-
 Fabíola-Neves-tá-comprando-pílula-do-dia-seguinte-meu-deus-do-céu? Fecha aspas.
– Ai.
– Que foi?
– Teve isso mesmo. Desculpa, Fa.
– Deixa pra lá. Vou te mandar pelo correio.
– Vai mandar o quê?
– A grana que você quer.
– Que grana?
– Caralho, Júnior, você não precisa de grana nenhuma, né?
– Ah sim, a grana do Betão, preciso sim.
– Júnior, fala a verdade. Você inventou essa história aí pra eu voltar, né?
– Não, tá, quer dizer...
– Ju, você não aprende mesmo, né? A vida toda tentando ser malandro. Para com isso, não é
 você.
– Desculpa, é que eu queria que você voltasse mesmo. Queria que a gente pudesse se reunir. 
A mãe não diz, mas ela tá triste com a morte do pai.
– A Célia deveria é estar aliviada.
– Fa, foi uma vida inteira juntos. Teve momentos bons e momentos ruins. Agora, ela tá 
sozinha. Não é fácil pra ninguém.
– Eu não lembro de nenhum momento bom...
– Fa, olha, você tá cheia de mágoas. Eu entendo, juro que entendo. Eu não sou estudado igual
 a você. Eu sou meio lerdo pras coisas, sim. Mas eu sei o que as pessoas sentem. Sei quando
 alguém tá jururu. A mãe tá assim. Ela não tá comendo direito, não. Ela emagreceu. Ajuda ela
 nessa fase, vai. Não é mais sobre o velho, é sobre a mãe.
– Tá bom, Ju, vejo como faço. Levo o notebook, tento trabalhar aí um pouco. Não vai ser um 
dia fora que vai atrasar mais o que já tá pra lá de atrasado.
– Putz, Fa, que da hora! Fiquei felizão!
– Tá bom, Ju, quando que vai ser a missa?
– Que missa?
– A missa de Sétimo Dia do pai.
– Ah, já foi.
– Como que já foi, Júnior? Você me disse que seria ainda.
– Ah, é que o padre novo ia viajar e a mãe não gosta lá do substituto então ela pediu pra rezar
 a missa de Sétimo Dia antes.
– Porra, Ju... não fode.
– Desculpa. Você vem, né?
– Caralho... vou sim.
– Traz o Gael?
– Trago.
– Massa! Vou fazer um churras pra nós! Vou fazer chouriço pra ti, você adora, né?
– É tchoríço, Júnior. Tipo contra-filé. Pede contra no açougue pra não ter erro. Chouriço é 
 outra coisa. Mas valeu. Já tô no lucro.
– Beijos, Fa.

– Beijo.



Fernando Ferrone nasceu em Jardinópolis, SP, em 1981. Em 2003, concluiu a faculdade de Ciências Sociais (Unicamp) e, em 2005, apresentou dissertação de mestrado em História Contemporânea (Université de Bourgogne, França). 
Desde 2006 reside em São Paulo, capital. É tradutor e autor do romance à deriva (2017, edição independente). Publicou contos pelo site Ruído Manifesto, Atualmente, trabalha em seu segundo romance, provisoriamente intitulado A Longa Noite de B.