Martin Scorsese não encontrará um parque temático se assistir Coringa


por Taciana Oliveira__



O cineasta americano Martin Scorsese, diretor de filmes como Taxi Driver, O Touro Indomável e os Bons Companheiros afirmou na revista Empire que suas tentativas de acompanhar os filmes contemporâneos de super-heróis fracassaram:

Eu tentei, sabia? Mas isso não é cinema. Honestamente, o mais próximo que consigo pensar deles, tão bem feitos quanto eles, com os atores fazendo o melhor que podem sob as circunstâncias, são os parques temáticos. Não é o cinema de seres humanos tentando transmitir experiências emocionais e psicológicas a outro ser humano.

Sábado fui assistir Coringa, direção de Todd Phillips. Previsível, mas não imprescindível, registrar aqui a magistral atuação de Joaquin Phoenix na pele de Arthur Fleck, o vilão e arqui-inimigo do Batman. Esqueçam as outras produções, e principalmente se libertem das comparações. O Coringa de Phoenix é fiel ao nosso tempo e a nossa insensível realidade. Roteiro, direção de arte, tudo se encaixa na performance do ator. Há trechos do filme que são extremamente perturbadores. A tristeza que gargalha em um cenário de profunda melancolia. Na sessão que eu estava presente a platéia soltava risadas desconcertantes nas  sequências de extrema catarse homicida, durante surtos psicóticos do personagem. A banalidade não se encontra no sangue e na brutalidade, elementos coadjuvantes da produção. Mas  sim na aceitação da violência e da loucura como elementos cômicos. 



O filme é uma poderosa crítica a hipocrisia travestida de controle social. O personagem do Coringa é reflexo da invisibilidade proposta as minorias e ao que é considerado descartável na sociedade. A violência é consequência da falta de empatia e da exclusão social. A risada dolorosa que transpassa boa parte do filme é de uma dor e solidão atroz. Rir de tudo é sinal de desespero. Algumas pessoas ainda não percebem isso. A equilibrada e eficiente direção de fotografia expõe a decadência e a desconstrução do que é minimamente necessário para as relações humanas. As risadas no cinema também atestam que o espectador não se conectou a mensagem. Há uma poderosa crítica ao humor irresponsável e ao que a sociedade hipocritamente condena, mas reproduz. Saí da sala de cinema ainda sob o efeito do filme. Uma das melhores produções que assisti nos últimos anos. 

Em tempos de fascismo vigente Coringa não é uma obra sobre uma história em quadrinhos, mas sobre o mundo atual. O documentarista Michael Moore, diretor de Tiros em Columbine, escreveu em uma rede social:

Fomos informados de que a polícia estará presente em todas as sessões neste fim de semana em caso de ‘problemas’. Nosso país está em profundo desespero, nossa constituição está em pedaços, um maníaco desonesto do Queens tem acesso aos códigos nucleares – mas por algum motivo , é de um filme que devemos ter medo.
Eu sugeriria o contrário: o maior perigo para a sociedade pode ser se você não for ver este filme. A história que conta e as questões que ela suscita são tão profundas, tão necessárias, que se você desviar o olhar da genialidade dessa obra de arte, perderá o que ela está nos oferecendo. Sim, há um palhaço perturbado, mas ele não está sozinho – estamos de pé ao lado dele. Coringa não é um filme de quadrinhos. O filme se passa em algum lugar da década de 70 em Gotham/Nova York, a sede de todo o mal: os ricos que nos governam, os bancos e corporações a quem servimos, a mídia que nos alimenta com as notícias diárias que pensam que devemos absorver.

Martin Scorsese não encontrará um parque temático se assistir Coringa, mas um filme que responde pelo nosso tempo.





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Taciana Oliveira é mãe de JP, cineasta, torcedora do Sport Club do Recife, apaixonada por fotografia, café, cinema, música e literatura. Coleciona memórias e afetos. Acredita no poder do abraço. Canta pra quem quiser ouvir: Ter bondade é ter coragem.