A mente plástica de Ana Frango Elétrico

por João Gomes__




De uns tempos pra cá infelizmente li menos poesia. Não li da forma convencional de ser ler, acompanhando a produção contemporânea ou relendo os já canonizados. Quando lemos um poema somos poetas também ao estar junto do ritmo, ao fazer do verso som saindo da página. Ainda assim, escrevi menos poemas, alimentei a procrastinação, não mais experimentei a palavra em suas infinitas possibilidades de sentido. É a repetição que aprimora o dom, fazendo parecer fácil contornar as soluções para o que nunca se soluciona. Os atuais tempos difíceis jogam alguns no silêncio, outros vão à luta com o corpo, a voz, a palavra. Em contrapartida canções me embalaram na tristeza e na alegria, me permitiram ficar conectado com o criar de uma forma mágica. Valeu tanto quanto ler livros de poemas, mas qual a relação entre essas duas expressões que se encontram?

Das minhas recentes descobertas, em meio a tantas possibilidades, tantas conexões e achados, descubro a Ana Frango Elétrico. Digo assim porque descobrimos músicas soltas de alguns artistas, mas nem sempre conseguimos sentir emoção ao ouvir um álbum completo. Um hit ou música chiclete ouvimos até a exaustão, mas um álbum bem produzido fica no imaginário de nossos retornos. Faço assim com livros de poesias, e não seria diferente com álbuns. Não pode ser regra, dada a dificuldade de encontrarmos na produção atual seleções bem embaladas. Dentre as que ouço estão Letrux, Liniker, Duda Beat, Bárbara Eugênia, Tulipa Ruiz, Alice Caymmi, Johnny Hooker, Mahmundi e etc. Claro que aqui o que vale é o gosto, a empatia. Não me sinto também fã ensandecido, apenas fruidor do que considero estético. 

Ana Frango Elétrico sabe por onde transita. No site que hospeda Dicionário Cravo Albin da MPB lemos: “Cantora. Compositora. Baixista. Guitarrista. Violonista. Poeta. Artista plástica. Estudou piano e teoria musical. Lançou o livro de poemas Escoliose: paralelismo miúdo.” Descubro que em maio de 2017 Ana Fainguelernt publicou cinco poemas no 1º Volume dos Cadernos do CEP 20.000, sarau organizado pelo poeta carioca Chacal. Não me provocou estranhamento encontrar uma canção presente em seu segundo álbum, Little Electric Chicken Heart, dentro dessa mesma antologia. O poema que se tornou a canção Torturadores narra em poucos versos o antes e depois da ditadura e como reagimos no presente-futuro da história: “pesquisando / o nome e o endereço de torturadores / só pra contar / pros netos / e porteiros / que tem todo / o direito de saber”.

Foto : Hick Duarte



Ana Fainguelernt, bem antes de lançar seu primeiro trabalho, Mormaço queima, passou a assinar Ana Frango Elétrico, para facilitar na pronúncia e possivelmente evitar correções. Ou, como é de se imaginar, Ana Electric Chicken para o mundo. Com o seu segundo álbum, conhecemos melhor o seu pequeno coração elétrico de galinha. Numa época onde há mais pretensão e quase nada de criatividade, Ana vem trilhar seu caminho no que ela chama de “bossa-pop-rock decadente com pinceladas punk”, consciente de si e da sua força criadora. Seu primeiro trabalho musical tem 7 músicas e o segundo 9, no que já é possível ver, como miragem, o fura o olho desse furacão, que ouvimos na canção “Promessas e Previsões”. É tudo estranhamento, versos poéticos para o entender próprio de cada um, mas arranjados em ritmos conhecidos pelo imaginário coletivo por meio das referências da artista.

Sobre esse gosto pessoal por apreciar álbuns da mesma forma como leio e releio livros de poesia, Ana Frango participou na edição de 2017 da Flip, em Paraty, na Mesa Páginas Anônimas (Música). A proposta do debate foi mostrar ao público as diferentes formas de difusão de conteúdo, produções ligadas à música e gêneros na literatura. Após a conversa, entre os músicos e compositores Matheus Torreão, cantor pernambucano radicado no Rio de Janeiro, e Blackyva, performer transexual nascido William na comunidade da Rocinha e que mistura Shakespeare com Beyoncé, os três jovens artistas apresentaram um pocket show cada. 

Mas Ana Frango não começou na Flip, passou a ser conhecida nas ocupações que aconteceram em março de 2016 e que tomaram 65 escolas públicas do Rio. Seu processo de amadurecimento sempre foi aberto, apresentações em modo de ensaio, para um público de variados gostos e idades. No mês do Carnaval, Ana Frango Elétrico é umas das atrações confirmadas no Festival Rec-Beat, com palco central no coração do Recife.



Como é possível perceber, a poesia é o cerne da boa música. Percebo que não li menos poesia, se escuto diariamente Tom Zé, Caetano, Rita Lee, Gil, Calcanhotto, Cazuza e tantos outros poetas que cantam seus versos década após década, sempre descobrindo novos significados. As letras de Caetano e Calcanhotto atravessaram as páginas de livros, foram organizadas pelo poeta carioca Eucanaã Ferraz. Poemas de Antonio Cicero são canções de sua irmã, Marina Lima, também de Adriana Calcanhotto e depois de anos musicados foram impressos em seu primeiro livro de poesias, Guardar. As de Chico Buarque foram reunidas no projeto História de Canções, organizadas por Wagner Homem. A cantora Zélia Duncan cantou os poemas de Itamar Assumpção, o Zeca Baleiro musicou para 10 mulheres intérpretes algumas odes da poeta Hilda Hilst e etc.

Letra de canção e poema já foi muito discutido, hoje parece ser mais tranquilo, basta se ater às referências, desde a Semana de Arte Moderna de 1922, a Tropicália, a Bossa Nova e nossa poesia contemporânea. Não é pouco, e o século 20 foi de uma riqueza estrondosa para quem deseja se debruçar sobre tantas possibilidades. E Ana Frango Elétrico carrega tantas referências em suas canções que é impossível não se emocionar, mesmo que a artista não goste de ser comparada, talvez por estar buscando e experimentando um agito elétrico por meio das suas composições, de suas escolhas sonoras dentro de uma rede cada vez mais ampla. Escuto seu trabalho como se tivesse um plaquete de poemas em mãos, mas com a diferença sinestésica do som. Ouçam a Ana Frango, vejam seu videoclipe da canção "Roxo" e, como ouvimos ou lemos nessa letra, “se de noite, cada dia que liga a luz, é um novo dia para o seu peixe”.







#BOSSAPOROCK   #SURREALISMOANTROPOFÁGICO   #MORMAÇOQUEIMA
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 Foto: Hick Duarte
Ana Frango Elétrico é compositora, faz parte das bandas Almoço nu e marmota é marmita qué, dentre outros projetos e sons com amigos. Frango Elétrico devido a preguiça alheia na hora da leitura e consequentemente do pronunciamento das consoantes de seu sobrenome. Informações da página do Facebook.




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João Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.