Ombros caídos olhando para o inferno, de Constança Guimarães


por Adriane Garcia__







Guta, Dora, Ana, Fátima, Suzane, Sílvia: mulheres nas quais é possível ver uma multidão de outras mulheres, atravessando o tempo (sem plural, pois é um só o tempo da violência). O delegado: um homem que representa a misoginia, o machismo e os ciclos sem interrupção da cultura do estupro. Ombros caídos olhando para o inferno, romance de Constança Guimarães, narra em terceira pessoa, mas por uma voz narrativa claramente comprometida em falar pelas silenciadas, a vida de mulheres que têm suas histórias e seus corpos marcados pelo jugo masculino.

É interessante notar que o algoz, o delegado, não tem nome, que seu nome seja o título de sua profissão, uma profissão ligada ao poder e, muitas vezes, ao abuso de autoridade. Ao chamar o personagem de delegado, Constança dá a ele uma dimensão metafórica e coletiva; afinal, sabemos, o nome do delegado é Legião.

O romance se utiliza de uma estrutura fragmentada, cada momento apresentando a história de uma personagem. O recurso funciona bem, inclusive por deslocar o protagonismo de uma personagem para outra, além de gerar curiosidade e suspense durante a leitura.

Também é de se notar que a voz narradora assume certas características do processo de memória das personagens. No início da narrativa, é possível perceber a tentativa consciente de Guta não se lembrar de nada, de parar qualquer processo que possa levar à memória de seu passado tão doloroso. Porém, sendo inútil esforço, um simples objeto pode desencadear o caleidoscópio de lembranças. A voz narradora também parte desse desencadeamento, usando a força que certos eventos possuem como motor para narrar. Em outro exemplo, Dora sempre se enoja da aparência física do delegado, pois lembrar-se dele é lembrar-se de seus aspectos repugnantes e sentir novamente o nojo; os mesmos detalhes são repetidos pela voz narradora.

A violência do delegado sobre as mulheres de
Ombros caídos olhando para o inferno não decorre do fato de ele ser um monstro. Constança Guimarães fala de um homem normal, bem adaptado, escolarizado, branco, que conseguiu emprego, posição, família. Não é uma exceção, e sim um representante de muitos homens em condição semelhante. O que permite ao delegado fazer o que faz – e isso a escritora Micheliny Verunschk analisa com lucidez na orelha do livro – é a naturalização da violência do homem sobre a mulher, é a naturalização do patriarcado a ponto de ser introjetado e não suscitar questionamentos. Os abusos e crimes cometidos pelo delegado parecem a ordem natural das coisas, quando são a ordem cultural das coisas. Ângela Davis em seu Mulheres, raça e classe alerta para esse tipo de estuprador. Não o “estuprador típico” mostrado pelos telejornais para sustentar os mecanismos racistas do capitalismo, mas o “estuprador anônimo”:

“… em primeiro lugar, por que existem tantos estupradores anônimos? Não seria esse anonimato um privilégio usufruído pelos homens cuja condição social os protege de processos judiciais?”

Dados do Ministério da Saúde, coletados entre 2011 e 2017, mostram que, no Brasil, a maioria das ocorrências de abuso sexual, tanto com crianças quanto com adolescentes, ocorre dentro de casa e os agressores são pessoas do convívio das vítimas, geralmente familiares.

Os prejuízos do patriarcado para a humanidade são incalculáveis, mulheres e crianças com depressão profunda, famílias disfuncionais, paternidades negadas, maternidades indesejadas, potências profissionais anuladas, infâncias violadas, feminicídios, mantendo metade da raça submetida à outra metade, utilizando para isso todos os mecanismos da violência física e psicológica. Um ciclo de infelicidade que não se restringe apenas às mulheres, volta-se contra a própria humanidade e impossibilita qualquer vida plena.

As mulheres em Ombros caídos olhando para o inferno apanham, apanham muito – e algumas delas são estupradas pelo homem de bem, pelo homem da família. Em uma sociedade que naturalizou a violência contra a mulher, ela muitas vezes não pede ajuda, não enxerga socorro possível a não ser o que pode ser executado com as próprias mãos. Constança Guimarães constrói um romance sobre o machismo e sobre a força das mulheres, sobreviventes de um mundo que as ameaça, todos os dias.

A vida adulta da Fátima menina começou a partir de uma aposta entre o escrivão e o delegado. O escrivão duvidou que o delegado fosse capaz de ter mais uma mulher na confusão de sua vida. E o delegado, rindo numa arrogância, disse que comeria todas as meninas de 17 anos que atravessassem a sua frente. Eles conversavam, fumavam e tomavam café em copos de vidro na entrada da delegacia, para fora da porta, num avarandado de muro baixo que circundava todo o térreo daquele sobrado antigo, até o começo do enorme pátio onde eram estacionadas as viaturas. Fátima passava na calçada, voltando do açougue, onde tinha ido comprar 350 gramas de acém para macarronada especial que a mãe ia fazer para o aniversário do Álvaro. O irmão adorava macarronada. O delegado e o escrivão se olharam e definiram o futuro da menina que queria fazer o curso de normalista, ser professora e ler muitos livros para seus alunos.
A paquera começou naquela tarde mesmo. O delegado interpelou Fátima, sob o pretexto de lhe dar instruções sobre como andar em segurança para não ser molestada pela rua. Ela agradeceu, ele jogou um charme, ela não soube o que dizer, ele a elogiou, a menina ficou sem graça e sorriu, ele não perdeu tempo e disse que aquele era o sorriso mais bonito que já havia visto em toda a sua vida. Fátima ficou cardíaca e seduzida, quando agradeceu já era um inseto voando em direção à teia, sem escape. “Comer menina educadinha é diferente. Essa aí eu vou preparar. Quero gamadinha, na minha mão”, dizia o delegado naquela noite, enquanto pegava suas coisas, chave do carro, carteira e arma, para ir para casa. O mundo para Fátima começava a se fechar em uma abóboda, que travou hermeticamente e, num súbito, ela se adaptou ao ar rarefeito, só décadas depois notaria as pedras nos pulmões ressentidos.”
(p. 159/160)
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Ombros caídos olhando para o inferno
Constança Guimarães
Romance
Ed. Urutau


Constança Guimarães é mineira, jornalista, mãe da Sofia e autora do livro de contos urbanos A Sereia da Contorno e suas histórias, publicado em 2017 pelo Selo Leme (projeto finalista do Rumos Itaú Cultural 2016). É professora de Maratona de Escrita no Ateliê Estratégias Narrativas – sempre o melhor sábado do mês.
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Adriane Garcia nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2006, no curso de pós-graduação em Arte-Educação, na UEMG, interessou-se por estudar sobre a desconstrução do Arraial do Curral del Rei e a construção da primeira cidade planejada da República, com destaque para as questões de esquecimento e memória. Tendo vivido sempre na periferia (norte) da capital mineira, o olhar voltado para as origens e a exclusão social acompanha sua poesia. Publicou os livros Fábulas para adulto perder o sono (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (Ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (Ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (Ed. Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rei (Ed. Conceito, 2019)