A crise e a razão existencial do torcedor

por Alessandro Caldeira__



Gostaria de iniciar fazendo a seguinte pergunta: o que é futebol para você? A conclusão deve ter estourado e jorrado livremente em seu peito. No entanto, permita-me emendar a uma outra: qual a forma como você torce?
O que desejo com essas duas perguntas é que você, leitor, tenha um momento de reflexão de como chegou a essa tarefa de torcer todos os dias para a mesma equipe que causa profunda dor na derrota, porém, tal sentimento possui graça na vitória.
É possível encontrar, agora, algum desses torcedores: o que torce porque o pai ficou azucrinando a sua vida mostrando o quanto é feliz quando vibra com a sua equipe.
Aquele que, também, viveu ganhando presente dos pais sempre relacionado com futebol e com o time de coração deles, mas só por isso resolveu torcer para o rival.
Há um destino mais profundo, no entanto, onde, normalmente quando criança, ocorre a descoberta do choro, seja de alegria ou tristeza, de um ente querido enquanto assiste a uma partida de futebol. Pela primeira vez você sente que precisa salvar alguém e a condição é somente torcer para o mesmo time.
A partir daí não é mais uma questão de torcer ou não, trata-se de uma sucinta razão existencial onde o emocional de outrem atinge seu patamar de espírito mais elevado.
Percebe que há uma história sendo mudada e, talvez, até sinta que foi o responsável para um novo rumo da sociedade.
Nesse momento, em meio às lembranças, qualquer um que estiver olhando para você é capaz de decifrar uma ponta de passado no seu rosto como que balançando e te levando de volta às suas origens.
A criança que você recordou está, provavelmente, balançando as suas perninhas com um olhar de soslaio. Um átimo invisível, mas que, se pudesse, daria tapinhas naquela criança agradecendo-a.
A história, entretanto, está cravada em muito dos acontecimentos futebolísticos em todos esses tempos.
Toda torcida é símbolo do que seu time construiu. Por exemplo, existem torcedores que não se orgulham exatamente do tanto de título, mas do que representaram à memória do esporte.
Mesmo quando uma equipe é criada somente para esse objetivo e não necessita mais de sua existência para mover sentimentos.
O Fc Start, por exemplo, clube que foi fundado na sua maioria por jogadores do Dínamo de Kiev e funcionários de uma padaria, onde teve a missão de derrotar uma equipe nazista.
Como a torcida da Ponte Preta, Bangu e Vasco que podem se orgulhar de serem os primeiros times a abolirem a ideia de não aceitarem negros em seus elencos.
Em meio a todos esses sentimentos que o futebol proporciona, podemos aplica-los para a situação atual da qual vivemos em meio à pandemia.
Num momento em que o futebol é paralisado, para que o sentimento continue correndo entre as veias é necessário que se volte às origens.
Assim como os clubes estão fazendo se solidarizando para ajudar ao combate da doença oferecendo seus estádios como recurso para a saúde pública.
Ou, então, jogadores como Phillipe Coutinho que, em meio à quarentena encontrou uma maneira de melhorar as condições dos funcionários do Vasco doando alimentos e relembrando-nos que ainda pertence àquela instituição.
Provavelmente ainda há de nascer outros torcedores que nem sabem que o futebol é mais que a questão de “vida ou morte”, mas que, na verdade, seja como Fernando Pessoa escreveu: "Sou esse intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim"  
Talvez o torcedor que você está esperando nascer não aconteça, dessa vez, porque um ente querido chorou ao ver uma partida, mas porque viu o Clube ou seu jogador voltando ao lugar de onde partiu e o reconhecendo através de um gesto de afeto.

* Você também encontra este texto no blog Afinta
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Filme russo, Match (Partida), Dir. por  Andrêi Malyukov (2012) conta a história do time FC Start, que durante a Segunda Guerra Mundial, se torna, um símbolo de resistência contra a Alemanha de Hitler.

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Alessandro Caldeira — Jornalista com aposentadoria precoce, se formou melhor no ramo da timidez, mas desbocado (não é, Clarice?). Para livrar de meus traumas vejo futebol com frequência, leio compulsivamente sabendo que nunca vou ser um daqueles personagens já que Belchior está constantemente nos meus ouvidos, dizendo: a vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior.